Gigantismo epistolar
Tratamento dado por Ruy Castro a Mário de Andrade em "Metrópole à beira-mar: o Rio moderno dos anos 20" escancara sua obsessão “riocentrista”
PAUSA DE MIL COMPASSOS | coluna semanal
por Cacá Machado
Em Metrópole à beira-mar: o Rio moderno dos anos 20 (Companhia das Letras, 2019), a primeira referência que Ruy Castro, seu autor, faz a Mário de Andrade surge na página 110 do livro: “Mario fora ao Rio especialmente para conhecer Ronald de Carvalho e Manuel Bandeira. E, como quem pedia um aval, ler para eles um manuscrito ainda inédito, de forte sabor regionalista — seu livro de poesia, Pauliceia desvairada”.
A obsessão “riocentrista” do jornalista já tinha operado de modo semelhante há duas décadas atrás em seu livro Chega de saudades: a história e as histórias da Bossa Nova (Companhia das Letras, 1990) quando se referiu sobre a cultura musical dos nordestinos em solo carioca nos anos de 1950: “aquele ritmo que, para alguns, só servia como coreografia para se matar uma barata no canto da sala”. E ele foi ainda mais longe: “Hoje parece difícil de acreditar, mas vivia-se sob o império daquele instrumento. E o pior é que não era o acordeão de Chiquinho, Sivuca e muito menos o de Donato — mas as sanfonas cafonas de Luiz Gonzaga, Zé Gonzaga, Velho Januário, Mário Zan, Dilu Melo, Adelaide Chiozzo, Lurdinha Maia, Mário Gennari Filho e Pedro Raimundo, num festival de rancheiras e xaxados que parecia transformar o Brasil numa permanente festa junina”.
Para Ruy Castro o Rio de Janeiro sempre foi e será o Brasil. Tudo aquilo que é excêntrico à cultura carioca tem, invariavelmente, um valor estrangeiro. E tudo aquilo que vem dos cariocas, ao contrário, é genuíno e universalmente brasileiro. De modo que aquilo que é “estrangeiro” pode, em sua lógica, ganhar adjetivos subjetivos e preconceituosos como “cafona” (no caso dos nordestinos) ou intencionalmente depreciativos como “regional” (no caso do paulista Mário de Andrade). Nota-se que o contexto em que Ruy atribuiu o regionalismo de Mário nada tem de positivo, ao contrário do que ele poderia reconhecer, talvez, no regionalismo da literatura de Graciliano Ramos ou de Guimarães Rosa. No contexto da construção narrativa do jornalista, Mário é retratado como um jovem escritor provinciano que veio buscar aval no grande centro cultural brasileiro, isto é, na cena literária carioca.
Mas a história do encontro entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira é outra. Foi, na verdade, um encontro de “afinidades eletivas”. Apenas 7 anos separavam os dois. Quando Mário foi ao Rio, em 1921, tinha 28 anos e Bandeira 35. Isto é, jovens autores da mesma geração. Mais importante do que isso, Mário não foi ao Rio procurar aval de ninguém, mas, ao contrário, foi arregimentar adeptos modernistas entre os escritores cariocas. Nas cartas entre Bandeira e Mário de Andrade (Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, Edusp/IEB, 2001) isso fica claro quando, por exemplo, o modernista paulista “exigiu” a presença de Bandeira no encontro na casa do poeta Ronald de Carvalho na rua Humaitá, 64. Como narra com precisão o organizador do grandioso volume epistolar, Marcos Antonio de Moraes, Mário queria conhecer Bandeira “fisicamente”, não por “curiosidade”. Em carta de 1923, o paulistano define o encontro como: “um reconhecimento. (…) Emprego a palavra com a sutileza dos poetas japoneses em seus haicais. Com todas as significações e associações que ela desperta. E daí em diante esse reconhecimento não cessou de aumentar, florir, frutificar”. Quem começou o diálogo epistolar foi Bandeira em 1922. Mário, antes de conhecer o poeta no Rio, havia ficado encantado com o poema “Os sapos” (do livro Carnaval , 1919) que chegou em suas mãos por Guilherme de Almeida. Não à toa, esse poema foi recitado por Ronald de Carvalho nos eventos da semana de Arte Moderna de 1922 e tornou-se pedra de escândalo. Em carta resposta à Bandeira, Mário rememora o encontro: “Quando estive no Rio, o ano passado um desejo eu tinha: conversar com o autor dos ‘Sapos’. Realizei meu desejo. Voltei contente.”
É no mínimo surpreendente como Ruy Castro trata Mário de Andrade em sua leitura sobre o “Rio moderno dos anos 20”. Afinal, em um livro lançado em 2019, que se propõem a contar histórias da modernidade na capital fluminense, depois de aberto o “baú” das cartas de Mário de Andrade (com diálogos com Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Camargo Guarnieri, Fernando Sabino, entre tantos outros), chama a atenção tamanha distorção e manipulação dos eventos históricos em favor de uma leitura particular. Ao longo do livro, Mário de Andrade surge poucas vezes e, invariavelmente, como um item listado entre outros personagens. Aliás, esta forma narrativa baseada na listagem de nomes é recorrente em Ruy Castro: ao invés de mediar relações pelo “reconhecimento” o autor prefere apenas listar nomes como se isso fosse suficiente para que por si só as relações fossem estabelecidas. O procedimento se repete nas quase 500 páginas do livro, como nesta passagem da página 166: “De fato, logo depois do ataque de Lobato, vários foram conhecer Anita e se solidarizar a ela, cada qual por si só. Eles eram Oswald de Andrade, Ribeiro Couto, Guilherme de Almeida, Cândido Motta Filho e Mário de Andrade — que, na sétima visita à exposição, a presenteou com um soneto parnasiano inspirado em O homem amarelo”.
A década de 1920 foi um período chave para a construção da modernidade tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo. E Mário de Andrade foi um grande articulador das cenas culturais das duas cidades. Sua trajetória múltipla como intelectual, artista e gestor cultural foi generosa com o Brasil: partiu como poeta modernista da Pauliceia Desvairada e da semana de 1922 para as viagens do Turista aprendiz e Na pancada do Ganzá (1927/28), imprimiu reflexão crítica e criativa tanto no Ensaio sobre música brasileira como em Macunaíma (ambos de 1928) e acabou chegando na gestão pública pela Diretoria de Cultura da Cidade de São Paulo (1935/38, onde projetou a Missão Folclórica, a Discoteca Pública, entre outras ações). Isto só para ficar no essencial, pois ainda existe o Mário jornalista, crítico de arte e, como vimos aqui, o sujeito que sofria de “gigantismo epistolar”, como confessou em carta à Carlos Drummond de Andrade em 1924.