Imagens do Atlântico Negro

Com mais de 400 obras, mostra “Histórias afro-atlânticas” ocupa o Masp e o Instituto Tomie Ohtake

Andrei Reina
Revista Bravo!
9 min readJun 28, 2018

--

“Unite (First State)”, Barbara Jones-Hogu, 1969

Dividida entre o Masp e o Instituto Tomie Ohtake, ambos em São Paulo, a megaexposição Histórias afro-atlânticas abre neste final de semana com um conjunto de mais de 400 obras assinadas por cerca de 200 artistas — a maioria deles negros — e datadas desde o século 16 até os dias de hoje. Ocupação tardia de autores e autoras antes excluídos dos grandes salões da arte, a mostra está em sintonia com um dos principais debates da arte contemporânea, que avança sobre representações canônicas e reivindica maior representatividade nos museus.

Os trabalhos são oriundos de importantes instituições e coleções brasileiras, americanas, europeias e caribenhas — algumas delas que raramente emprestam obras, como o Museu Nacional de Belas Artes de Cuba e a Galeria Nacional da Jamaica. Artistas pouco vistos no Brasil terão obras expostas, como Archibald Motley, Jacob Lawrence e Aaron Douglas — três dos principais nomes do Harlem Renaissance, movimento que embalou a intelectualidade negra na Nova York dos anos 1920 e 1930.

Histórias plurais

A mostra é um desdobramento da exposição Histórias mestiças, organizada por Lilia Schwarcz e Adriano Pedrosa no Tomie Ohtake em 2014. Eles agora contam com o auxílio de dois curadores convidados — o artista Ayrson Heráclito e antropólogo Hélio Menezes — e do curador assistente Tomás Toledo.

“A gente pode dizer que é uma releitura, uma revisita e uma ampliação também, porque no Histórias mestiças a gente só ficava no território brasileiro e aqui a gente está trabalhando com a noção de uma diáspora transatlântica”, diz Schwarcz. “É pensar que essa diáspora negra, que foi a maior da modernidade, produziu isso que Pierre Verger chamou de Fluxo e Refluxo, o que Paul Gilroy chamou de Atlântico Negro ou o que o doutor Alberto da Costa e Silva chama de Um Rio Chamado Atlântico”.

“Conversation”, Barrington Watson, 1981

A curadoria evitou uma organização cronológica ou enciclopédica do material, preferindo dividir as obras em núcleos temáticos e, a partir deles, cruzar temporalidades, geografias e suportes. Este, aliás, tem sido o norte das Histórias que passaram a organizar a programação anual do Masp desde que Adriano Pedrosa assumiu a direção artística do museu. “Diferente da disciplina da grande narrativa da história tradicional, são histórias plurais, mais abertas, especulativas, em processo”, diz Pedrosa. “A exposição tem esse caráter de experimentação”.

“A gente quer trazer arte contemporânea ao lado da arte do século 16, 17, 18, 19, da arte francesa, da arte brasileira modernista, da arte africana tradicional ou da chamada arte popular, dos documentos”, continua o diretor. “Tem essa mescla, que fala bastante de uma certa ideia de pluralidade e diversidade, mas também de desierarquização”.

A exposição foi precedida pela realização de seminários e, junto com o catálogo, será publicada uma antologia de textos teóricos e poéticos que animaram a elaboração do programa — há desde ensaios sociológicos, como de Stuart Hall, até letras de rap, como a de “Negro Drama” dos Racionais MC’s.

Cenas afro-atlânticas

No Masp, a mostra abre com a seção Mapas e margens, com obras que exploram o trânsito da África às Américas e ao Caribe — seja em mapas ou na representação de navios negreiros, em geral com provocações políticas, como no pôster United States of Attica, em que Faith Ringgold registra conflitos e genocídios sobre o mapa americano.

Cenas de comércio de rua, de manifestações religiosas e de festas populares são apresentadas nos núcleos Ritos e ritmos e Cotidianos, aproximando obras de diferentes períodos e países pela afinidade temática. Estão lá, ladeados, o candomblé brasileiro, o vodu haitiano e o revivalismo jamaicano. Do mesmo modo, há as diferentes formas que assumiu o Carnaval, seja no Brasil — de desfiles pitorescos ao super politizado bloco Cacique de Ramos, clicado por Carlos Vergara em 1972 — ou em Cuba.

Série “Carnaval”, Carlos Vergara, 1972

Retratos

O núcleo que talvez melhor tensione o binômio representação e representatividade seja o dos Retratos. Ao lado de figurações estabelecidas de pessoas negras vistas por homens brancos, como o Perfil de Zulmira de Lasar Segall, as paredes são cobertas, em sua maioria, por telas de artistas negros. Entre os pontos altos estão o tocante retrato de James Baldwin pintado por Beauford Delaney — emblema da interlocução entre dois artistas afro-americanos gays — e o violentíssimo Estudo para o Retrato da Opressão, que Benny Andrews concebeu em “homenagem aos sul-africanos negros”.

Entre os retratos brasileiros, destaca-se o díptico concebido por Dalton Paula para esta exposição, em que, pela primeira vez, as figuras históricas de João de Deus e Zeferina ganham uma representação imaginada. Do século 19, há a belíssima tela Baiana, de autor e retratada desconhecidos. “É uma das raras representações brasileiras de uma mulher negra em uma postura empoderada, com olhar firme, toda coberta por artigos de luxo”, comenta Tomás Toledo.

“Study for Portrait of Oppression”, Benny Andrews, 1985 / “Baiana”, autor desconhecido, século 19

Modernismos

Na seção Modernismos afro-atlânticos, que ocupa o aquário do primeiro subsolo, o conjunto exposto oferece versões alternativas para a história oficial do modernismo, protagonizada por pintores brancos e europeus. São telas abstratas ou apenas remotamente figurativas, nas quais a referência à cultura local ou à negritude tem tanto peso quanto a invenção formal.

Cosmopolita, o grupo reúne desde os brasileiros Rubem Valentim e Antonio Bandeira até pintores africanos fundamentais — como o sudanês Ibrahim el-Salahi, o etíope Alexander Boghossian e o nigeriano Uche Okeke — , passando pelos afro-americanos Norman Lewis e Alma Thomas, a primeira mulher negra a ter uma individual no Whitney Museum de Nova York e a ter uma obra exposta e incluída no acervo permanente da Casa Branca, em Washington.

“Ana Mmuo”, Uche Okeke, 1961 / “Carnival of Autumn Leaves”, Alma Thomas, 1964

Caminhos não-coloniais

O mais idiossincrático dos núcleos é aquele que toma o segundo subsolo do museu. Ayrson Heráclito, responsável pela curadoria do espaço nomeado de Rotas e transes, selecionou obras de artistas da metade do século 20 em diante que buscaram “caminhos não-coloniais” em seus trabalhos. São sobretudo brasileiros, ainda que peças da Jamaica, do Benim e de Camarões também se façam presentes.

“Figura com criança”, Agnaldo Manoel dos Santos

“A grande produção é de artistas da década de 60 e 70 que direta ou indiretamente estiveram associados àquele pensamento de contracultura desse período”, explica Heráclito. “Temos artistas fundamentais para a criação do Tropicalismo, como Dicinho e Edinízio [Ribeiro Primo], e que tiveram uma repercussão bastante importante na cena contemporânea do Nordeste, no movimento Manguebeat — o Félix Farfan é um representante dessa visualidade”.

Outro destaque da mostra organizada por Heráclito está no diálogo entre as esculturas em madeira do celebrado artista baiano Mário Cravo Júnior (branco) com as de seu ex-assistente, o pouco conhecido e morto precocemente Agnaldo Manoel dos Santos (negro). No Masp, suas obras aparecem em espaço dividido “de uma forma muito sem hierarquias”, diz o curador. “O Agnaldo é um dos nossos mais importantes artistas afro-brasileiros, não foi à toa que em 1966 ele foi o grande premiado de escultura no Primeiro Festival de Artes Negras de Dacar”.

Luta de imagens

Cinco quilômetros distante do Masp — Avenida Rebouças abaixo — a mostra prossegue nas duas grandes salas expositivas do Instituto Tomie Tohtake. A primeira delas, nomeada Emancipações, é o ringue de uma verdadeira “luta de imagens”, na expressão de Lilia Schwarcz. Voltado sobretudo para representações da escravidão, o conjunto abriga formas distintas de abordar episódios do período.

A parede coberta por imagens de castigos impostos aos escravizados é eloquente da disputa. Ao lado de um Debret ameno e de um sisudo (quase cientificista) Arago — pintores viajantes do século 19 — está uma fotografia de Paulo Nazareth, na qual o artista aparece “à venda” com uma máscara feita de crânio animal, e a tela Gargalheira (Quem Falará por Nós?), autorretrato de Sidney Amaral com microfones amarrados ao pescoço.

“Gargalheira”, Sidney Amaral, 2014 / Da série “Para Venda”, Paulo Nazareth, 2011

“Você vê como os artistas — os artistas negros sobretudo — estão relendo essas imagens de forma mais crítica, tirando esse tom tão europeizado e tão etnocêntrico”, avalia Schwarcz. A historiadora e antropóloga defende ainda que não é possível falar em escravidão sem tratar, ao mesmo tempo, de liberdade. Afinal, o pressuposto é de que só precisaria haver castigo onde há resistência à dominação.

“Desde que existiram escravizados sempre existiu a luta pela liberdade, de várias formas”, continua Schwarcz, lembrando que há notícia de rebeliões desde antes da saída do continente africano e durante a viagem nos navios negreiros. Em solo brasileiro, as revoltas continuariam com os quilombos.

De punho erguido

A continuidade dessas lutas está representada no núcleo Ativismos e resistências, sala ocupada por obras modernas e contemporâneas, colocando em constelação manifestações estético-políticas distantes geográfica e historicamente — o cartaz que, impresso em Cuba, pedia a liberdade de Angela Davis nos anos 70, por exemplo, está em frente ao logo criado para a campanha pela liberdade de Rafael Braga, preso em junho de 2013.

A intervenção de artistas negros sobre representações hegemônicas tem o seu mais eloquente exemplo no trabalho do pintor americano Titus Kaphar, em cujas mãos foi parar uma fotografia brasileira de 1899. A imagem apresenta, 12 anos após a Abolição, uma criança branca montada em uma mulher negra. Kaphar transpôs a cena para uma pintura, acrescentou adornos e instrumento de trabalho à figura da babá — brincos, bracelete e vassoura de mão — , mobiliou o que antes era um estúdio fotográfico e recortou da tela o menino, deixando um rombo na forma de sua silhueta.

“Babá brincando com criança em Petrópolis”, Jorge Henrique Papf, 1899 / “Space to Forget”, Titus Kaphar, 2014

Em uma das paredes da sala estão alguns exemplos do que Hélio Menezes chama de “realeza negra”, como o pantera negra Huey P. Newton, eternizado no pôster em que aparece sentado numa cadeira pavão de vime; o revolucionário haitiano Dessalines, cuja coroação imperial foi registrada em gravura encomenda por Napoleão; e as baianas da Irmandade da Boa Morte, clicadas por Adenor Gondim nos anos 90.

O núcleo aproxima ainda o movimento americano Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em inglês), fotografado por Sheila Pree Bright, da crítica à violência policial brasileira — apresentada de forma original e contundente nas telas Vilão, do jovem artista paulistano No Martins, e Mãe Preta, de Sidney Amaral — e estes à luta pelos direitos civis nos anos 60, em duas belíssimas telas que aludem às suas mais conhecidas lideranças: March on Washigton, com o público que ouviu Martin Luther King, pintado por Alma Thomas, e uma tocante, quase abstrata representação do assassinato de Malcolm X elaborada pelo pintor afro-americano Norman Lewis.

“Untitled (Assassination of Malcolm X)”, Norman Lewis, 1968 / “March on Washington”, Alma Thomas, 1964

A drag queen Marsha P. Johnson, retratada por Andy Warhol ao modo da Pop, evoca a luta LGBT — foi ela, afinal, “a pessoa a lançar o primeiro coquetel molotov contra a polícia na famosa Revolta de Stonewall, nos EUA, em 1969”, conta Menezes.

Do lado de fora, entre as salas no instituto, foi inscrita na parede uma cronologia afro-atlântica, que parte do início da escravidão moderna — “e começa no Brasil”, lembra Schwarcz — e termina na execução da vereadora carioca Marielle Franco.

É com os punhos erguidos que as Histórias afro-atlânticas terminam, sem com isso acabar.

Histórias afro-atlânticas. Masp: abertura hoje (28/6), às 20h. Visitação: terça a domingo (10h/18h) e quintas (10h/20h). Ingresso: R$ 17 a R$ 35 (grátis às terças). Avenida Paulista, 1578 — Bela Vista. Instituto Tomie Ohtake: abertura no dia 30/6, às 11h. Visitação: terça a domingo (11h/20h). Grátis. Avenida Brigadeiro Faria Lima, 201 — Pinheiros. Até 21/10.

--

--