Jabá 3.0 no streaming

Produtores e gravadoras têm procurado pessoas "comuns", com playlists de muitos seguidores, para compra de espaço

Paula Carvalho
Revista Bravo!
9 min readMar 21, 2019

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Matthieu A on Unsplash

Não é novidade que as plataformas de streaming de música e as gravadoras utilizam playlists para aumentar as audições de determinados artistas. Tanto é assim que, no fim do ano passado, o New York Times bolou uma nova definição do que é um artista pop: são aqueles que rimam e cantam, têm uma fortíssima presença nas redes sociais e, sobretudo, fazem colaborações (os chamados feats) com outros artistas — o que garante um crescimento mútuo nos números, especialmente nas plataformas digitais.

Entre 2016 e 2017, diversas reportagens (como estas do Buzzfeed e Rolling Stone) mostraram o surgimento da profissão que pode ser resumida, como diz o repórter Reggie Ogwu, em uma “elite de nerds de música”: jornalistas, veteranos das gravadoras e donos de blogs influentes que foram absorvidos por plataformas como o Spotify, Tidal, Deezer, Apple Music, entre outras, para criar playlists extremamente bem sucedidas. Combinando sua expertise, algum tempero novo e, claro, muitos dados produzidos a partir da audiência dos usuários, produzem listas como a RapCaviar, Untitled (Indie), Fresh Finds, e várias outras. Junto às playlists feitas por artistas e celebridades — que, além de surfarem na crista da onda do pop têm a grife, como a de Diplo, Neymar Jr., Drake ou a do FourTet — estas são as listas mais ouvidas nestes serviços.

No entanto, um outro formato tem surgido e ganhado cada vez mais espaço nestas plataformas: é o crescimento de playlists feitas por usuários comuns — eu, e você — que ganham muitos fãs e atraem a atenção das gravadoras, de produtores e dos artistas. O consultor tributário Victor Belloni, de 23 anos, que o diga: sua playlist VB Sertanejo, criada em fevereiro de 2017, tem hoje quase 10 mil seguidores. Ele virou, praticamente, um influencer do Spotify: é cobrado quando não atualiza a lista, recebe propostas de jabá de produtoras e artistas. Ele diz nunca ter aceitado e sempre seguir o seu gosto pessoal, mas conta que já lhe ofereceram R$ 200 para incluir uma música, por 3 meses. Além disso, ele, que já teve uma dupla sertaneja, diz ter ajudado o seu ex-companheiro incluindo uma faixa que ele participou, tocando violão. Daí, seus amigos lhe contaram que os ouvintes quase dobraram.

Belloni não é o único. No Deezer, o youtuber e videomaker de 18 anos Welber Campos, de Recife, criou em novembro a playlist "Brega Funk/Passinho/Batidão Romântico, Recife @WelberCampos", que já tem mais de 2 mil fãs. Campos conta que já recebeu pedidos de artistas para que incluísse músicas, mas não com jabá envolvido. "Eu criei essa playlist com intuito de mostrar o ritmo musical que está em alta, e que nessas plataformas é difícil de se achar", explica. Na sua lista, hits dos Mcs Troia, Elvis, Princy, Gato, entre outros nomes de um dos gêneros mais tocados em Pernambuco hoje.

A Bravo! também localizou outra usuária do Spotify com duas playlists famosas: a "Funk 2019" (com mais de 8 mil seguidores) e a "Sertanejo 2019" (com 18 mil). Quando tentei contatá-la através de seu perfil no Twitter, me identificando como jornalista, ela disse que a divulgação das playlists aconteceu naturalmente. "Acho que pelo meu bom gosto mesmo, gosto de música boa e procuro colocar as melhores”. Questionada sobre ter aceitado algum dinheiro para inclusão de músicas, ela me disse: “Sempre tenho propostas. Minhas playlists são bastante procuradas. Tenho várias músicas nelas com parceiros. Recebo por isso”. Quando tentei perguntar por valores e sobre como funcionavam as parcerias, ela me disse que minha conta "parecia fake" e bloqueou o meu envio de mensagens.

Já a playlist Baianidade Nagô, criada pelo doutorando em biotecnologia e professor Felipe Torres, de 26 anos, tem mais de 3 mil seguidores. Na seleção, uma série de hits do axé, desde o samba-reggae do Olodum ao hit de 2016 Me Libera Nega, do MC Beijinho. "Uma vez uma amiga me pediu para adicionar uma música de um amigo dela que tinha a mesma vibe da playlist. Escutei a música e adicionei pois de fato era muito boa. Na mesma semana ele adquiriu cerca de 100 ouvintes mensais no Spotify. Mas sempre tenho o cuidado de avaliar a música antes de adicionar", conta. Torres diz nunca ter recebido ofertas de jabá, mas já ter sido reconhecido — por um de seus alunos, inclusive — por ser o dono da playlist.

João Paulo Medeiros, que tem 28 anos e trabalha como representante comercial, é criador da "Funk 2019 — Os Melhores Funk Mais Tocados do Momento (Melhores Funks e Lançamentos 2019)” no Deezer. Ele afirma também ter recebido propostas de jabá, mas não tê-las aceitado. "Acredito que aceitar esse tipo de coisa e a mesma coisa que manipular uma mídia", diz. Em comum, as ofertas de jabá são similares no sentido de que estão presentes, normalmente, em gêneros mais mainstream da música nacional e sempre, nestes casos acompanhados pela Bravo!, nas listas que trazem músicas novas — e não no caso de playlists temáticas, como a Baianidade Nagô.

Do "orgânico" ao negócio

É claro que o jabá nos streamings, em estilo 2.0, já foi longamente explorado desde a revelação da revista Billboard, em 2015, de que os pagamentos vinham acontecendo — e podiam chegar até US$ 10 mil — para incluir artistas em playlists famosas. As plataformas negaram, e fizeram uma grande campanha que, basicamente, pretendia explicar com transparência como as playlists são montadas, com os tais curadores e experts. Mas, mais uma vez, descobriu-se um modo de burlar o algoritmo e a concentração da produção de playlists com esses "influenciadores" — e, é claro, a coisa já virou negócio. A Organic Music Marketing, de Atlanta, oferece os serviços de adicionar músicas numa playlist — os valores variam entre US$ 300 e US$ 2 mil — e diz já ter trabalhado com artistas como o Migos, Future, Travis Scott, 2 Chainz, entre outras estrelas do rap e do trap. No site da empresa, há um link para o Spotify "oficial": o usuário, "agentcodysmg", curiosamente, é o dono de mais de 1000 playlists que chegam a ter até 114 mil seguidores (como a "Top Hits 2019"), mas há outras como a "Fresh Finds 2019" — que copia, na capa, o design das outras "Fresh Finds", playlists do próprio Spotify — com mais de 86 mil seguidores.

Printscreen do site da empresa Organic Music Marketing que remete ao usuário "agentcodysmg" no Spotify

A estratégia é, em média, parecida, ao menos no Spotify: donos das playlists colocam uma foto de capa parecida com as do design da plataforma, e às vezes, um nome parecido. Se atentarmos para a descrição da playlist, oferecem um email para vender o serviço de inclusão de músicas. Desde quando comecei a olhar para a "Fresh Finds 2019" seu número de seguidores aumentou mais de 12 mil usuários. O mesmo se dá com a playlist "Fresh Finds", cujo dono é o usuário Abella Marie Garcia, que oferece o username do Instagram para que se peça inclusão de músicas.

Playlist "Fresh Finds" com remissão para Instagram (na imagem, "IG") para submissão de músicas

Sócia proprietária do Bananas Music, empresa de music branding para marcas no Spotify que trabalha especialmente com artistas independentes, Juliana Baldi explica que ainda é muito difícil conseguir que se inclua uma música numa playlist oficial do Spotify. “Pelo que sabemos, as plataformas não têm jabá. O editor (de qualquer uma delas) recebe todos os destaques das distribuidoras (Cd Baby, Onerpm etc…) e escolhe o que pôr, destaques e posição na play. Mas sabemos que as majors (Warner, Sony, Universal) têm uma porcentagem nas plays garantidas porque são elas que licenciam o conteúdo para estarem nessas plataformas", me explica.

De fato, majors como a Sony, a Universal, e a Warner têm marcas subsidiárias (Filtr, Digster, Topsify e Playlists.net, respectivamente, as duas últimas da Warner) que são donas de playlists famosas nas plataformas de streaming. No entanto, seus perfis são verificados, parece um negócio normal dentro de cada uma delas. Para ter um perfil verificado no Spotify sendo uma marca de publicidade, é preciso desembolsar cerca de R$ 100 mil, segundo Baldi. A Bravo! tentou confirmar com a plataforma os valores — tanto do uso como marca publicitária ou como gravadora de música — mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem.

Já empresas como a mexicana Indiefy, uma label que diz não cobrar “taxas escondidas” e promete o impulsionamento da carreira musical, pede, em contrapartida à distribuição de músicas digitalmente, uma taxa de 15% dos royalties, sem ter os direitos sobre a música, conforme afirma o fundador e CEO Gilberto Avalos. “Eu sou produtor musical e há alguns anos assinei com uma label que me tomou 50% dos royalties e os direitos das minhas músicas por 25 anos. Daí percebi que isso é uma prática comum e que é muito difícil entrar no mercado e assinar com uma gravadora que distribua sua música. A outra opção é pagar para ser distribuído, mas artistas independentes dificilmente têm dinheiro para isso", diz. Segundo ele, a ideia do Indiefy é ajudar artistas independentes a lançar suas músicas nas principais plataformas digitais e também a desenvolver suas carreiras, “provendo aconselhamento e ferramentas digitais para marketing e promoção”.

Pedi, então, que explicasse como as playlists participam do processo e se o dinheiro é um fator decisivo para que a audiência aumente. “Há curadores que deixam você adicionar conteúdo nas playlists em troca de nada, mas isso é um pouco mais difícil. Quando digo que esses canais de promoção são públicos, quero dizer que qualquer um pode criar uma playlist no Deezer ou Spotify, por exemplo, e os curadores não necessariamente precisam ter uma grande empresa. Esses donos de playlists decidem se vão monetizar ou não as suas playlists — algumas pessoas estão ganhando dinheiro com isso recentemente, e também trata-se de uma das melhores opções para novos artistas serem descobertos." Outra empresa que fornece o serviço, segundo ele, é a Daimoon media.

Em resposta, a Spotify afirma que a plataforma Spotify for Artists é o meio que se tem de enviar músicas aos mais de 100 curadores, em todo o mundo, da plataforma. “O Spotify for Artists é totalmente livre, mas não permitimos nenhum tipo de pagamento para aumentar as chances de ter uma música em nossas playlists, nem quaisquer partes externas podem influenciar nossos editores.” Quanto ao conhecimento da plataforma sobre os esquemas de jabá entre usuários comuns e artistas, afirmam que sistemas “monitoram atividades fraudulentas” para removê-las do serviço.

Deezer, Tidal e Apple Music foram contatadas pela Bravo! para que respondessem se estão mapeando esse tipo de uso nas plataformas, se consideram ele legítimo e como acontece a curadoria de suas próprias playlists, mas não responderam até o fechamento da reportagem. Procurada por e-mail e também por telefone, a Organic Music Marketing não respondeu às solicitações de entrevista.

Para o pesquisador Patrick Vonderau, que é um dos autores do recém-publicado, pela MIT Press, Spotify Teardown, há todo um engajamento da indústria, em vários mercados, para comprar mídias sociais, engajamento, e até softwares que gerenciam contas. “No caso do Spotify, achei uma russa chamada “Social media admin panel” que não lida diretamente com consumidores finais (você não acharia online, exceto se soubesse muito bem onde procurar). É um painel que vende likes, seguidores, views, etc. Por 1 milhão de plays, cobra US$ 1.200 — o que significa que, se o Spotify oferece $ 0,006 por play, se estiver correto, pode-se fazer US$ 6 mil, descontando o investimento."

Esse formato de jabá (3.0?) não chega a espantar, é claro. É mais que previsível — e tem acontecido também com youtubers de livros, por exemplo. Mas mostra, cada vez mais a dinâmica do fim dos mediadores tradicionais em diversas esferas. Se, num primeiro momento, o streaming tinha concentrado as playlists nas próprias marcas, em contas de influencers e celebridades da música e dos esportes, e de parceiros (que investiam para ter um nome na plataforma), não deixa de ser um certo "hackeamento" que agora usuários comuns (e empresas, se passando por usuários comuns) utilizem playlists para vender (ou não) serviços de jabá. E que usuários, buscando ouvir as músicas que mais lhes interessam, sigam as listas. A lógica, no entanto, parece ser mais comum entre gêneros mainstream — o sertanejo, o funk, o trap — do que entre os independentes, que ainda se valem dos processos de curadoria (e, naturalmente, investem menos).

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Paula Carvalho
Revista Bravo!

jornalista, doutoranda em sociologia na usp. quase tudo em torno de som 🎛 pra mandar mensagem: paula.cncarvalho@gmail.com