L.A. Rebellion em São Paulo

Mostra reúne filmes que são referência para diretores negros contemporâneos, criados na Universidade da Califórnia

Paula Carvalho
Revista Bravo!
9 min readFeb 15, 2019

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A partir desta terça-feira (19), no Instituto Moreira Salles, uma mostra reúne alguns dos principais filmes do grupo californiano que ficou conhecido como L.A. Rebellion. Produzidos por jovens estudantes da Universidade da Califórnia (UCLA), que na época ampliava as políticas por diversidade e passou a incluir mais negros, indígenas, latinos e povos de outras minorias entre os alunos dos cursos de cinema, os filmes feitos nos anos 70 e 80 dividiam entre si roteiristas, diretores, produtores e atores — em sua maioria negros — como Charles Burnett, Julie Dash, Billy Woodberry, Haile Gerima, Jamaa Fanaka, Alile Sharon Larkin, entre vários outros.

Ainda pouco conhecido até entre o público norte-americano, o L.A. Rebellion, que teve parte do seu acervo restaurado só em 2011 pela UCLA, é fundamental para cineastas contemporâneos como Barry Jenkins, Ava DuVernay, Jordan Peele, Ryan Coogler, e no Brasil, André Novais Oliveira. É a primeira vez que estes filmes chegam a São Paulo como grupo — foram tema de uma mostra na Janela Internacional de Cinema do Recife de 2017 e, antes de vir a São Paulo, estiveram na mesma mostra no IMS-Rio, há duas semanas.

Alguns dos trabalhos programados são raríssimos, como o Dando um Rolê, de Larry Clark, explica um dos curadores, Luis Fernando Moura. Não se encontra em nenhum cafundó da internet, e faz um grande tratado sobre o jazz e a experiência da população negra ao som desta música. A Bravo! conversou com ele, que, em parceria com Victor Guimarães, fez a seleção dos 14 títulos que estarão em cartaz. Dividimos o papo a partir dos comentários sobre os diretores e filmes, e a partir daí ele fez observações sobre o contexto do grupo, a relação com a blaxploitation e a importância do resgate destes filmes com uma reescrita da história do cinema mundial.

"Há uma marca autoral, uma pesquisa própria, esses filmes chegaram a públicos diversos, ainda que por algum motivo eles não tenham feito parte do cânone. Quando a gente estuda cinema na universidade não vemos esses cineastas. Parece que o que está acontecendo agora, depois de passarem no Tate Modern e no Pompidou em 2015, é uma descoberta coletiva. As pessoas às vezes se perguntam porque que a gente não conhecia esses filmes antes. Filmes de realizadores jovens, como nos cinemas novos todos, e parece começar a encontrar um lugar na historiografia do cinema." Veja abaixo.

Julie Dash
Diary of an African Nun / Diário de uma freira africana (Julie Dash, 1977, 15', digibeta)
Illusions / Ilusões (Julie Dash, 1982, 36', DCP)

A Julie Dash acabou se tornando uma das mais conhecidas do circuito, sobretudo recentemente quando a Beyoncé fez referência ao Filhas do Pó (Daughters of the Dust) como uma influência para o Lemonade. É um filme de 91 que tem a marca de ser o primeiro filme dirigido por uma mulher negra a estrear comercialmente nos Estados Unidos. Chegou a entrar no Netflix, teve a première em Sundance, ela fez curadoria em festivais do exterior. Ela acabou se tornando um nome paradigmático do L.A. Rebellion, junto com Charles Burnett e Haile Gerima. Dos filmes delas que programamos, o Ilusões só foi restaurado em 2014 e o Diário de uma Freira Africana é um dos poucos filmes que não se passa nos Estados Unidos. E ele adapta literatura de autores negros — é baseado num conto de Alice Walker.

Charles Burnett
The Horse / O cavalo (Charles Burnett, 1973, 14', DCP)
Several Friends / Um bocado de amigos (Charles Burnett, 1969, 22', DCP)

É o nome mais proeminente do L.A. Rebellion, um dos poucos que permaneceu realizando filmes depois, apesar de também ter tido muitas dificuldades de financiamento. Programamos dois filmes do Burnett, o Um bocado de Amigos, que é considerado um marco inicial do L.A. Rebellion, de 69, e o O Cavalo. No caso dele há uma tradição forte do cinema clássico, muito do neorrealismo. Mas, no geral, o L.A. Rebellion, fora os diálogos com os cinemas clássico e experimental, tem uma aproximação forte com os cinemas novos daquele momento. Eles estavam começando a assistir no espaço universitário o cinema africano, disciplinas sobre o cinema de terceiro mundo estavam sendo criadas. Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha são muito citados pelos estudantes, eram de fato referências. Porque esses cinemas novos estavam pensando em como contar as nossas próprias histórias, não contar do ponto de vista de Hollywood, do ponto de vista branco, hegemônico, eurocêntrico. Isso era feito com muita consciência histórica. Mesmo se a gente pensar no cinema moderno europeu — Godard, o novo cinema americano, John Cassavetes, Jonas Mekas, todos esses cinemas que estavam surgindo naquele momento eram revividos na produção deles. Não era uma produção elaborada a priori, não existia um manifesto que guiava esses trabalhos, mas existia uma experiência junto à comunidade que é muito forte. A crítica americana Soraya Nadia McDonald diz que não haveria Moonlight (filme de Barry Jenkins que venceu o Oscar de Melhor Filme em 2017) de sem os filmes de Charles Burnett. No Brasil a gente tem um caso específico que é o André Novais de Oliveira. Tanto no "Ela Volta Na Quinta" (de 2015), como no Temporada (2019). Muitas pessoas falam em empatia, mas parece que é um olhar tão justo que ele tem dos personagens, um respeito à vida que ele está contando. São filmes atravessados por questões da vida social, do trabalho, relações conjugais, do corpo, do cabelo, do lugar de morar, do lazer, mas nenhum dos temas parece ser maior do que a história do personagem. Quando eu vejo os filmes do Burnett me parece que é isso algo que ele faz de uma maneira muito própria — são filmes que são retratos riquíssimos de uma experiência comum — mas ao mesmo tempo há uma sutileza, como se os personagens fossem vidas maiores do que as coisas que eles vivem. Acho que poucos diretores fazem isso da maneira que ele faz, como o Billy Woodberry faz também. O André Novais Oliveira já falou que o Burnett é referência pra ele, e no Ela Volta na Quinta ele faz referências diretas.

Billy Woodberry
Bless Their Little Hearts / Abençoe seus pequeninos corações (1983, 80’, DCP)
The Pocketbook / A bolsa (1980, 13’, DCP)

A Bolsa é baseado num conto de Langston Hughes, que é um autor que aparece também em outros filmes, com personagens lendo seus livros, como no Bush Mama. Esses filmes fazem um movimento de voltar à literatura e à música negra. O Ilusões (de Julie Dash) tem a trilha de Ella Fitzgerald, o Dando um Rolê (de Larry Clark) é um grande compêndio de jazzistas americanos negros comprometidos com as causas dos movimentos civis dos anos 60. Há de certa forma esse papel enciclopédico desses filmes, de iluminar toda a produção cultural negra, de um ponto de vista também de memória e de retrato do presente também. Eles estavam muito afinados com o pensamento pan-africanista, estavam pensando nos movimentos anticoloniais africanos, como o de Angola.

Jamaa Fanaka
Welcome Home Brother Charles / Bem-vindo de volta, irmão Charles (1975, 91', DCP)

Quando os membros do L.A. Rebellion começaram a fazer filmes o blaxploitation já era uma realidade de mercado, mas da mesma maneira que eles surgem no contexto da universidade, entrando em contato com outros cinemas da África e América do Sul, eles também funcionavam contra o que ficou conhecido como blaxploitation. Isso eu digo de maneira generalista, mas pode-se dizer que uma ideia corrente era a de que o blaxploitation se utilizava de códigos do cinema hegemônico, e ainda que buscando audiências negras ele reforçava estereótipos da experiência negra nos Estados Unidos. Então, por exemplo, a objetificação do corpo da mulher, os estigmas da violência, da violência policial. O L.A. Rebellion buscava dar a ver a experiência dessas comunidades de uma maneira que não passasse pelos estereótipos. Por isso o pensamento sobre as formas era importante e por isso essa inspiração, esse diálogo constante com os cinemas novos, que buscavam de certa forma um espaço de invenção. Alguns desses filmes também se utilizaram dos códigos da blaxploitation, mas subvertendo-os, como o Bem-vindo de volta, irmão Charles, que está na programação. É uma restauração super recente, é um filme colorido, e ele trata de um personagem que é preso injustamente e volta para uma vingança contra todo o status quo. É basicamente uma vingança contra todo mundo. É um filme que se utiliza dos códigos do cinema de ação, do blaxploitation, com muitas cenas de violência, se passa num contexto típico — tem prostituição, tráfico de drogas, é nas periferias urbanas — , mas aos poucos vai construindo vários comentários políticos, sem abrir mão de ser narrativo, e insere algumas sequências e diálogos que vão comentando o que é o blaxploitation e deslocando os códigos do filme. Quer dizer, é como se fosse um filme crítico, mas também velado como blaxploitation. Inclusive chegou a ser comercializado como blaxploitation com outro nome, chamado Vingança da Alma, chegou a circular em VHS nos anos 80. Agora ele volta restaurado com o nome original. Pra começar, os nomes dizem coisas muito diferentes. Talvez seja curioso notar isso nesse filme. Fanaka é o diretor que faz isso de maneira mais clara dos outros diretores. Quando você assiste com calma, percebe que é um filho torto do blaxploitation.

Larry Clark
Passing Through / Dando um rolê (1977, 105', DCP)

O Dando Um Rolê (Passing Through) estreou em Locarno em 78, foi premiado por um júri que inclusive incluía o Nelson Pereira dos Santos. Esse filme, por escolha do diretor, não teve sequer lançamento em cópia doméstica. Ele acredita que é um filme que deve ser visto no cinema. Ele não existe em lugar algum. Você pode procurar nos cafundós da internet e não vai encontrar uma cópia. É um filme incrível, que utiliza os códigos do blaxploitation e cinema de gênero, mas pra fazer um grande ensaio sobre o jazz, político inclusive. Sobre a experiência das populações negras nos Estados Unidos tendo o jazz como um meio de expressão. Esse filme faz isso de maneira incrível.

Haile Gerima
Child of Resistance / Filha da resistência (1972, 36', 16mm)
Bush Mama (Haile Gerima, 1979, 97', 16mm)

O Filha da Resistência, de Haile Gerima, é feito a partir da prisão da Angela Davis, em 70. Há tanto filmes muito engajados politicamente como outros interessados em produzir crônicas, como é o caso do "Abençoe seus Pequeninos Corações" (Billy Woodberry), que quer apresentar a forma de vida daquelas pessoas — claro que a partir de questões comuns, como a dificuldade do trabalho, a dificuldade de conseguir dinheiro, de conseguir emprego por ser quem você é, a onipresença da polícia. É impressionante de fato como esses filmes colocam coisas que fazem parte dos debates contemporâneos no Brasil e nos Estados Unidos.

Zeinabu Irene Davis
Cycles / Ciclos (1989, 17', digibeta)

Se a gente pensar nos filmes dirigidos por mulheres no L.A. Rebellion, dá pra falar de todas aquelas palavras: empoderamento, autonomia. Aquilo tudo era muito novo naquele momento. Tratem do que tratem, por exemplo, do ciclo menstrual, como em Ciclos, eles apontam para muitos lugares na tentativa de entender as personagens. Tem uma relação com o filme-ensaio, no Ciclos. Quando ela está fazendo faxina o tempo dos quadros começa a mudar, tem stop-motion, ele deixa de ser um filme e passa a ser quase um slideshow em algum momento. Como se o tempo mesmo da vida dela mudasse a partir desse auto-conhecimento. E no final se abre, ela tem um sonho e encontra as amigas na rua, é uma passagem bonita. Existe sempre uma finalização pra uma experiência que é vivida em comunidade. Ainda que seja um filme sobre uma mulher sozinha em casa.

Ainda na programação:
African Woman, USA / Mulher africana, EUA (Omah Diegu [Ijeoma Iloputaife], 1980, 20', digital)
A Different Image / Uma imagem diferente (Alile Sharon Larkin, 1982, 52', 16mm)
Your Children Come Back To You / Seus filhos voltam pra você (Alile Sharon Larkin, 1979, 27', 16mm)

Mostra: de 19 a 23 de fevereiro — veja aqui os horários.
Ingressos: R$ 4 (meia-entrada) e R$ 8 (inteira)
Todas as sessões são seguidas por debates com pesquisadores e jornalistas. IMS Paulista Avenida Paulista, 2424 São Paulo/SP

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Paula Carvalho
Revista Bravo!

jornalista, doutoranda em sociologia na usp. quase tudo em torno de som 🎛 pra mandar mensagem: paula.cncarvalho@gmail.com