Ana Catarina Mousinho entre pedras, tacos e tinta

Andrei Reina
Revista Bravo!
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6 min readNov 25, 2016
Detalhe de “Em Pedra, Taco e Tinta” (Foto: Divulgação)

Quem passa em frente ao edifício Mirante do Vale — o mais alto arranha-céu de São Paulo, projetado por Waldomiro Zarzur e Aron Kogan nos anos 1960 — talvez não suspeite que, dos seus 51 andares, 2 sejam ocupados por um espaço dedicado à arte.

Localizado no Vale do Anhangabaú, o LAMA.SP — sigla para Latin American Modern Architecture de São Paulo — é definido como um “lugar independente voltado à arte e arquitetura” que promove debates e oficinas, além de residências artísticas anuais. A exposição Em Pedra, Taco e Tinta, individual de Ana Catarina Mousinho que abre neste sábado (26), é o resultado da última residência.

Ana Catarina Mousinho (Foto: Divulgação)

A artista pernambucana passou 5 meses imersa em pesquisa e experimentação, através das quais buscou um diálogo com o espaço e com os materiais que nele encontrou. Nas “sete pedras, sete telas e sete mil tacos” que apresenta até o dia 25 de janeiro, Mousinho procura construir “uma memória afetiva entre arquitetura, cidade e pessoas”.

Ana Catarina Mousinho, que morou em Paris e Londres e hoje vive em São Paulo, já expôs em Recife e Frankfurt. Em Pedra, Taco e Tinta é sua primeira exposição individual na capital paulista.

Em outubro, a Bravo visitou a artista enquanto ela trabalhava na exposição (veja abaixo). Ela contou que pintar de um lugar tão alto “possibilita uma observação, ao longo dia, da mudança da luz e em como isso muda a textura da arquitetura“ dos prédios que via do 31º andar do Mirante.

A artista pernambucana observa a cidade do alto do Mirante do Vale

Com a exposição aberta, a Bravo! voltou a conversar com Ana Catarina Mousinho para saber mais sobre o processo de criação de Em Pedra, Taco e Tinta.

Foto: Leonardo Finotti

Como foi trabalhar do Mirante do Vale? O que pôde ver lá do alto?

Estar sobre o Anhangabaú me causou uma estranheza primeira. Claro que é incrível olhar diariamente as variações de luz e como isso altera a textura da arquitetura… E que arquitetura! Os principais prédios de São Paulo na minha janela! Sensacional! Mas a experiência ia além. Pensando sobre isso agora, me vem uma palavra: “des-vendar”. Talvez essa experiência trate um pouco disso. Desvendar a partir da experiência da deriva. A deriva me trouxe até o Vale do Anhangabaú, quando fiz os primeiros desenhos de São Paulo, sentada no Viaduto Santa Efigênia.

Dois meses depois dos primeiros desenhos, fui convidada para a residência artística no LAMA.SP. A partir daí, as conexões com a experiência na cidade ganharam potência e continuei seguindo os fluxos… Mais de 1000 salas, 45 andares, mais de 100 portas corta-fogo, salas ocupadas, salas desocupadas. Gente que sobe, gente que desce, um bocado que se perde. Staff atento, segurança, elevador novo, depósito, tatuador, contador, advogado, massagista, escola, ateliê, imobiliária, fotógrafo, robótica, brinquedo, drone, ONG, brechó, papelaria, restaurante, lanchonete, sapateiro, psicólogo, médico, costureiro, farmácia, sindicato, assombração, chaveiro, cartomante. Tudo isso no plural. Trabalhar no Mirante me revelou um recorte de São Paulo e um fragmento do que envolve meu processo de criação.

Foto: Leonardo Finotti

Como você chegou nos materiais utilizados na mostra — pedra, taco e tinta — e por que alçá-los ao título dela?

A pintura era inevitável, visto que minha relação com o fazer [artístico] sempre esteve associada a ela e ao desenho. Há algum tempo comecei a sentir vontade de testar outros meios, [e] foi aí que, numa deriva pela cidade, uma caçamba cheia de tacos chamou minha atenção. Parei, e não sei por quanto tempo fiquei observando os tacos. Enchi uma sacola com alguns deles e segui a caminhada pensando no que havia de tão especial neles. Registro, fragmento, história, pintura, eram palavras que me chegavam. Sim, pintura! Eis que o uso havia imprimido em cada um deles texturas singulares. Guardei-os, como uma relíquia, durante quase dois meses.

Em junho, em uma das visitas ao LAMA.SP, Leo [Finotti] e Michelle [Castro] me levaram para conhecer uma sala em reforma, propondo que este fosse meu lugar de trabalho. Na sala haviam sacos com tacos, o que para mim foi um “sinal” de que havia acontecido o encontro. Comecei a trabalhar diariamente na sala 3107 cada vez mais conectada aos encontros do acaso. Comecei a pintar usando incansavelmente aguadas e grafismos enquanto fazia experimentos com os tacos, impressões em tela, maquetes e estudos de sombra, colagens, monotipias, instalação sobre bloco de carpete invertido, uma pequena instalação na parede.

No meio de tudo isso, fiz uma trabalho como assistente do Clima e do Nuno [Ramos] para “O Globo da Morte de Tudo”. Passei 15 dias afastada do Mirante, imersa no processo desses dois artistas que admiro. Retornei com uma vontade louca de transformar a sala numa instalação. Foram testes e testes até chegar nesta forma que podemos visitar hoje: espaço formado por quase dez mil tacos e um foco na cidade. Uma das pessoas que doou os tacos me ofereceu pedras. Aceitei. Pintei sobre pedra. Depois me dei conta de que meses antes, em julho, havia escrito um ensaio para uma disciplina do mestrado da Unesp. O nome do ensaio: “Em Pedra, Taco e Tinta”. Foi preciso respeitar mais uma vez o acaso e alçá-lo ao nome da mostra.

Foto: Leonardo Finotti

Em 2015, você apresentou a mostra “Recife Retrato” na capital pernambucana. Agora, exibe uma baseada na observação de São Paulo. O que te interessa na relação entre elaboração artística e paisagens urbanas?

Hoje me dou conta de que a cidade sempre foi meu espaço de experimento e liberdade. Com meu avô materno, um irreverente contador de histórias, conheci o Recife da minha infância. Acho que aprendi com ele a mergulhar na curiosidade e na possibilidade de uma construção de afeto na rua, rua como extensão da casa.

Caminhei com ele, até meus nove anos de idade, no Recife. Essa experiência estética na cidade, os encontros, as caminhadas aparentemente sem destino; visto que naquela época era um adulto que me guiava, as histórias da cidade e das pessoas, os prédios que ganhavam movimento de gigantes ao mínimo movimento das nuvens. As pontes sobre os rios Capibaribe e Beberibe que se transformavam em balanço. O cheiro do mangue, o grito dos ambulantes… Um infinito universo fantástico de significantes se inscreveu… A experiência na cidade inscrita no meu corpo!

Cícero Dias disse: “Eu vi o mundo e ele começa no Recife”. Percorro incansavelmente São Paulo, talvez tentando re-significar uma experiência estética primeira. Trazer a cidade como cerne do meu trabalho pode estar para além da paisagem urbana. Lugar de encontro: penso ser isso o que me interessa.

Em Pedra, Taco e Tinta

LAMA.SP: Praça Pedro Lessa, 110 (cj. 3705) — Centro — São Paulo. De 26/11 a 25/01. Segunda a sexta, das 10h às 19h. Para os finais de semana, é preciso agendar a visita através do e-mail: contato@lama-sp.org.

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