Lavoura Arcaica, 15 anos depois

Almir de Freitas
Revista Bravo!
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4 min readOct 13, 2016

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Simone Spoladore (Ana) e Leonardo Medeiros (Pedro) em cena do filme

Luiz Fernando Carvalho sempre foi mais conhecido pelo seu trabalho na TV , de minisséries como Os Maias (2001) a novelas como Velho Chico (2016). Mas houve, em meio essa trajetória, um ponto fora da curva: o momento em que a ousadia estética do diretor, sempre trabalhada na contracorrente do naturalismo televisivo, foi extremada na sua primeira (e por enquanto única) incursão nos longas-metragens, na dificílima adaptação cinematográfica do livro Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar. O filme estreou em outubro de 2001 — há exatamente 15 anos –, depois de quatro anos de dura preparação dos atores, elaboração do roteiro e filmagem — tudo em busca do tom exato para a tragédia desenhada em um incesto cometido no seio de uma tradicional e numerosa família de origem sírio-libanesa.

Para comemorar a data, o Festival do Rio (festivaldorio.com.br) programou duas sessões especiais do filme — no dia 13, no Estação Net Botafogo 1, às 21h; e no dia 14, no Cine Reserva Cultural, em Niterói, às 19h. Além disso, também nesta sexta, Lavoura Arcaica chega aos serviços de streaming iTunes, Now! e GVT. Mais? Até o dia 30 fica em cartaz, na Estação Net Botafogo, uma instalação do artista plástico Raimundo Rodriguez feita com a memorabilia do filme e outros objetos.

Em entrevista por e-mail à Bravo!, Luiz Fernando Carvalho fala dessa série de eventos e de Lavoura Arcaica em si — depois de tantos anos, ainda perturbador para ele próprio. “Sou um escravo deste filme”, diz.

O que representa essa homenagem a Lavoura Arcaica, no Festival do Rio?

Significa a diversidade e a riqueza da cinematografia brasileira, mas significa também um ato de resistência, uma tomada de posição na contracorrente dos modelos hegemônicos que, a partir dos anos 80 até aos dias de hoje, ainda nos são impostos, nos empurrando goela abaixo uma visão meramente consumista e que não passa de um conjunto de retrocessos.

Como você vê o filme hoje? Mudaria alguma coisa?

Não saberia te responder exatamente, tenho uma enorme dificuldade em assistir aos meus trabalhos, em especial ao Lavoura, talvez por representar vivências transformadoras em mim mesmo. Só sei que fui arrastado por um livro, aquela prosa poética do Raduan me enredou e, como uma espécie de resposta à leitura, espécie de reação criativa, gerei uma coisa que poderia ser uma peça, um outro texto, uma música, um balé, ou qualquer coisa sem nome — sei lá — mas virou este filme que ainda não consigo assistir de tão perto.

Ao longo dos anos, como foi a repercussão internacional?

Lavoura foi sempre muito bem recebido nos mais de cinquenta festivais internacionais por onde passou. Mas não era isso que eu pensava, não filmei para sair pelo mundo em busca de prêmios. Sempre soube que os encontros com outras culturas era o que me interessava, como quando me acontecia de encontrar com pessoas ao final das sessões que vinham me perguntar: “como sabe tanto sobre a minha vida? Como?!” Eu não tinha respostas, eu sorria enquanto elas me traziam os olhos encharcados, e isso era tudo pra mim, justificava eu ter me debruçado sobre aquelas coordenadas todas, misturando tudo num baú bem fundo e depois ter puxado a coisa com tanta força. Nestes anos que se passaram, Lavoura continuou sendo exibido no mundo todo. Sou escravo deste filme, uma escravidão mútua, cíclica, que parece não ter fim. Não sei se é ele que não me larga ou se sou eu que não o abandono — pouco importa! Fui aprendendo com o tempo que não existe um fim para os filmes, eles ganham uma sobrevida independente de nossa vontade, das mais diferentes formas e nos lugares mais estranhos. Outro dia recebi um pedido para exibição em São Paulo. Era um jovem, talvez da idade de André. Alugou uma sala de cinema no dia de seu aniversário, convidou depois a família e os amigos para celebrarem assistindo ao Lavoura. Achei aquilo um pouco estranho, mas ele insistiu e eu acabei liberando a cópia. É assim.

É provável que exista uma fatia de espectadores que só conhecem seu trabalho na TV. Você encara a chegada de Lavoura Arcaica aos serviços populares de streaming como uma espécie de reestreia?

Assim como um livro pode ser reeditado depois de muitos anos fora dos catálogos das editoras, ganhando novos leitores, reflexões, etc; um filme perdido no tempo como o Lavoura talvez possa ressurgir por uma fresta qualquer, basta que ele traga uma certa dose de necessidade, de busca genuína, mas, principalmente, que sua linguagem seja construída com um rigor capaz de resistir ao mundo das verdades absolutas inventadas pela pós-modernidade. No mais, fico com Machado de Assis: “A estética que me interessa é a estética do coração.”

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