Levando Moacir Santos para passear

À frente da Orkestra Rumpilezz, Letieres Leite recria o genial disco ‘Coisas’, de Moacir Santos, a partir dos toques do candomblé de Salvador

Guilherme Werneck
Revista Bravo!
10 min readSep 15, 2017

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Por Guilherme Werneck

No fim de semana, a Orquestra Rumpilezz apresenta sua recriação do disco Coisas (1965), de Moacir Santos em dois shows no Sesc Pinheiros. “Estamos muito felizes de fazer esse show. Para nós está sendo uma experiência gratificante. Já visitamos a obra do Lenine, relemos a obra do Gilberto Gil, já fizemos a obra de Dorival Caymmi. Mas agora com Moacir tem um frescor que a gente não esperava. Estamos tocando com uma alegria absurda e isso tem a ver com a beleza da música dele”, disse o maestro em entrevista por telefone à Bravo!.

Na conversa, falamos sobre os pontos de contato entre as duas obras, sobre a formação do músico brasileiro, sobre as barreiras que o racismo ainda impõe à música negra e claro, sobre Coisas, o disco que Letieres chama de o Kind of Blue brasileiro.

Moacir Santos foi o primeiro maestro negro da Rádio Nacional, estudou com [César] Guerra-Peixe, com [Hans-Joachin] Koellreutter, você estudou em Viena. Os dois têm a música sinfônica muito presente na formação, mas têm a música africana nas raízes. Quais são os paralelos que você enxerga entre a sua trajetória e a de Moacir Santos?

O primeiro paralelo é que nós dois somos autodidatas. Nunca conversei com ele, mas acredito que ele também percebeu que só o autodidatismo não era suficiente para poder transplantar e colocar em prática todas as ideias musicais que desejava. No meu caso isso é muito claro. Sempre desejei estudar mais música formal, para eu ter uma comunicação melhor com os músicos, para eu conseguir traduzir melhor o meu conhecimento. O autodidatismo limita, tirando gênios, né? Porque o gênio é o gênio. O Hermeto Pascoal, por exemplo, é um caso raríssimo de pessoa que não precisou passar por nenhum lugar e tem a música numa complexidade absurda. Mas a maioria dos músicos que nós admiramos, de uma maneira ou de outra, tiveram também o momento de ampliar. Isso melhora a sua possibilidade de transmitir a sua arte. As ferramentas que o conhecimento dá são inegáveis. Vejo isso no trabalho de Moacir Santos e, pra mim, era uma coisa obsessiva desde que eu comecei a tocar. Eu procurei escola no Rio, em São Paulo, em Santa Catarina. Viajei o Brasil muito, fui até a Argentina no começo dos anos 80. Por acaso, fui parar na Europa, tocando com um grupo na Espanha e depois fui para Viena. Não foi planejado estudar em Viena, eu nem tinha condições de fazer isso. Eu fui tocando. Era aquele músico que tocava em barzinho, na praia, cheguei lá na escola, fiz o teste, passei e fiquei. Mas eu tinha um foco de estudar música. Acho que tinha uma semelhança aí. Quando entrei no conservatório, eu era um músico que já tocava, já gravava, já fazia arranjo, escrevia um pouco. Mas tudo aprendi com os amigos, de uma forma autodidata. Muito parecido com o maestro, né?

E a questão da música afrobrasileira?

Era uma coisa natural, eu já comecei tocando música instrumental, com os músicos com quem eu convivia aqui no Pelourinho. No outro lado do Pelourinho tem um lugar chamado Carmo, lá tinha uma espécie de universidade livre no começo dos anos 80, um grupo chamado Jazz Carmo Quinteto. A gente tocava a música das pessoas, tirava do vinil naquela época, e eu acabei pegando gosto. Já tinha interesse pela música instrumental, e percebi que a música instrumental no Brasil era baseada em dois grandes pilares. Ou era o samba com seus derivados ou eram os ritmos nordestinos com a sua vizinhança. Geralmente se você olhar pra um disco instrumental brasileiro ele ou pende pro choro ou samba-jazz, para alguma coisa relacionada com o samba, ou relacionada a ritmos nordestinos, como frevo, maracatu, baião. Eu já tinha essa informação rítmica por uma questão natural. Estudando em colégio público, no começo dos anos 70, tive a sorte de ter entrado numa orquestra afrobrasileira dirigida pela musicóloga Emília Biancardi, que foi a primeira pessoa que organizou de maneira formal, no ensino público, a formação de orquestra. Também na música profissional ela fez o grupo Viva Bahia. Ela foi responsável por vários projetos de preservação da música de matiz africana e eu fiz parte do grupo dela nesse período, depois fiquei um tempo sem fazer música, fazendo faculdade de artes plásticas. Mas para mim era natural. Primeiro pelo lugar onde eu morava. Nasci perto do Pelourinho, num lugar chamado Gravatá, e vários grupos de percussão ensaiavam do lado da minha casa. Depois pela a proximidade com o terreiro. Comecei a ir com alguns familiares e fui absorvido por essa energia de frequentar o candomblé. E a rua, né? O samba, os grupos de levada, os grupos afro. Eu estava numa região que não tinha saída a não ser a minha formação auditiva ser feita através dos tambores. Pelo que eu sei do maestro, com ele isso foi acontecer um pouco depois, segundo conversei com o pessoal que fez o Ouro Negro, o Mário [Adnet] e o Zé [Nogueira]. O maestro traz a informação genética ancestral, o que é notório pelo jeito como ele lida com os ritmos afrobrasileiros, embora ele não lide só com esses ritmos, o espectro dele é muito maior. Ele vai pro frevo, por exemplo, e o meu é bem focado no afrobaiano. Mas quando ele faz isso, faz com um rigor que eu sempre defendi. O maestro é uma referência máxima para todos nós. Porque quando você lida com música africana nessa situação próxima da sua origem, a forma de você arranjar, tocar e pensar essa música segue um rigor específico. E na obra dele, se você vê os arranjos, está muito claro que ele entende essa música, segue os princípios de método mesmo, que são diferentes da música formal, que foi forjada nas academias européias. É uma outra forma de se organizar, com rigor, com estrutura, com ciência.

Ele falava que queria pintar um quadro diferente, que foi trazido para o Brasil pelos genes ancestrais e queria achar uma maneira, mesmo na música sinfônica, em que a percussão o deixasse satisfeito.

O que eu falo é tecnicamente mesmo. Quando você elege um ritmo desse ancestral, matricial, todo arranjo fica amarrado nesse princípio rítmico. Não é a bel-prazer. Você não bota o ritmo onde você quer. Mas isso é um princípio da música popular brasileira que eu fico até reticente, um pouco triste de não ser lembrado dessa forma. A música brasileira é toda construída a partir dos princípios da diáspora negra. Eu falo da música folclórica, da música urbana, da música contemporânea, a música de Tom Jobim, João Gilberto, a bossa nova, a música popular brasileira de Gilberto Gil ou o baião do Luiz Gonzaga. Essas músicas foram construídas a partir desses princípios que não podem ser explicados apenas pela escola européia. Não tem como, a significação e os símbolos não são suficientes. O maestro tinha essa consciência, seus arranjos correspondem a esse sistema, como a gente chama. Isso foi uma coisa que eu comecei a fazer de forma consciente depois que tive o impacto dos músicos cubanos e dos africanos que encontrei na Europa. O que me chamou a atenção no trabalho do maestro não foi tanto a questão rítmica, por isso eu falei tudo isso, foi mais a questão melódica. O melodista que mais eu me apaixonei dentro do repertório da música brasileira é o Moacir Santos. Sempre falo que quando você está triste e você quer se alegrar, você ouve uma melodia do Moacir Santos e o dia muda. Porque ele tem uma capacidade de criar melodias tão maravilhosas que vejo pouco na história da música brasileira. A questão rítmica não me chamou tanto a atenção porque eu já conhecia muito da vivência em Salvador. O ritmo dele se baseia muito nos toques bantos. Ele morava num lugar no Rio que tinha um candomblé do lado, que o Zé Nogueira disse que era um candomblé de Umbanda. E quem estuda percebe no resultado do ritmo que ele circula dentro de uma determinada nação. O que me maravilha é o fato de a construção da música ser tão perfeita: ritmicamente é completamente original e complexa, além da questão harmônica e da questão melódica. É uma música completa.

Quando conheceu a música dele?

Infelizmente vim a conhecer tardiamente. O maestro passa a ser conhecido no Brasil depois do trabalho do Ouro Negro [2001]. Conhecia só Nanã, Coisas Nº 10, porque na Europa as pessoas já tinham uma ponte mais próxima com os Estados Unidos, já que ele morava na época em Los Angeles. Quando eu conheci a obra dele eu descobri que tem outras pessoas, como Abigail Moura, apresentado pelo Ed Motta, que representa uma terceira via da música afrobrasileira junto com o trabalho de Moacir, no qual vim me aprofundar quando voltei para o Brasil. Coisas eu conheci depois, na casa de um colecionador. O primeiro disco que conheci era o Maestro, que tinha outros temas.

É incrível que Moacir Santos grava Coisas e para continuar dando vazão à sua produção ele tem de sair do Brasil. Ele vai fazer seus próximos discos nos Estados Unidos, apadrinhado por Horace Silver.

O disco passou despercebido na época, quando foi lançado em 1965. E para mim chamar Coisas de obra-prima é até pouco.

O Zuza Homem de Mello falava que o Coisas é um disco de um maestro primitivo que encontra o futuro. Acho isso muito bonito. Estamos no amanhã. Você ainda vê essa música grávida de futuro?

Totalmente. Eu até comentei com um amigo de maneira muito informal que eu achava que esse disco era o nosso Kind of Blue. Pode olhar se não é, pensa aí. O Kind of Blue, do Miles Davis, é o disco “pã” do jazz mundial, e o nosso é o Coisas. O músico brasileiro tem que estudar esse disco, como todo mundo estuda o Kind of Blue quando estuda jazz modal, né? Tem um futuro total, e tem um presente. Eu considero um dos maiores desafios na minha carreira como arranjador. Tive a oportunidade de arranjar para muitas pessoas que eu admiro, mas realmente um dos trabalhos mais desafiadores está sendo esse com Moacir Santos, sem nenhum exagero. Primeiramente porque a obra sempre me impactou, e eu tinha de cor a maioria dos temas, ouvia sempre. E quando eu fui arranjar para a Rumpilezz eu botei o disco original e eu só ouvia ele. Tirei tudo de perto do ouvido. Porque eu queria ouvir mais emocionalmente, perceber como eu estava sentindo aquilo. E a minha proposta foi convidar Moacir para passear em Salvador. Na verdade eu peguei na mão de Moacir e falei: vamos em outros terreiros de Salvador, não só nos que você se inspirou. Aí eu traduzo um toque tal que ele usava e que é parecido com outro de outra nação aqui. Coloquei uns toques de jeje, ketu, tem sató, adabi, aguerê, que são mais do repertório do candomblé da Bahia. Como eu reconstruí pelo toque, a única coisa que mantive intactas foram as melodias. Todo o acompanhamento eu tive de reescrever do zero, até a harmonia: mudo os acordes, vou por outros caminhos. Tive de trocar as linhas de baixo, porque ao mudar o toque eu gosto desse rigor de seguir esse sistema, casando a frequência dos graves e dos tambores. Mantive o mesmo conceito da Rumpilezz. É uma reconstrução, a partir da nossa visão, mas mantendo o tema, porque a rainha da música é a melodia.

Muito antes de o Moacir Santos vir a compor o Coisas, como um menino do interior de Pernambuco que sai de casa adolescente, ele é acolhido na banda do Alfredo Manoel da Paixão, trabalha em um monte de bandas de circo. Essas experiência da banda itinerante a gente está perdendo no Brasil. Você acha que com essa perda perdemos também um pouco da nossa memória musical?

Estava comentando isso com o maestro Ademir Araújo, da Orquestra Popular do Recife, num encontro de orquestras que teve em Brasília. Ele sempre fala isso. Quando esse primeiro momento da banda vai se perdendo, muitas outras coisas se perdem junto. A própria memória e a formação do músico também. Era um dos nossos alicerces. Talvez a gente não notasse tanto, mas muitos músicos que admiramos vêm daí. Na Bahia temos um resquício disso nas bandas filarmônicas do Recôncavo. Bandas locais centenárias que formam muitos músicos, algumas com quase 200 anos. Elas se mantêm precariamente, mas se mantêm. Na Rumpilezz de 40% a 50% dos músicos são formados nas filarmônicas do interior da Bahia. Eles vêm pra capital e a gente acaba absorvendo. É um primeiro momento fundamental, porque eles já chegam tocando, com leitura. A gente só faz o aprimoramento, nas questões de harmonia, de improvisação.

A melhor música brasileira vem da tradição africana, só que a gente ainda convive estruturalmente com o preconceito e com o racismo. Você vê saída?

A primeira coisa é que a gente precisa conversar sobre racismo de maneira mais clara. Nós vivemos em um país que tem um racismo disfarçado e que é sistêmico. Precisa ficar claro que vivemos num país extremamente racista em várias instâncias. A gente não pode mais ficar propagando que somos uma pseudo democracia racial. Sinto, como maestro negro, as dificuldades de me colocar no mercado. Já passei por diversas situações. Dá para escrever um livro sobre isso. Eu, como Moacir, como outros maestros que se identificam na cultura negra. Eu acho que esse é o primeiro embate: a gente aceitar a música negra como uma música elaborada, estruturada, vem desse prejuízo. É muito mais fácil aceitar a música negra como a música da diversão, do entretenimento. Isso já acontece. Agora quando você chega e quer colocar seu trabalho, como faço com a Rumpilezz, dentro de um trabalho em que você tem o controle em nível consciente, sem ter de recorrer à explicação eurocêntrica da música mas buscando um equilíbrio na sua origem da diáspora, e você leva isso para a academia, aparecem os conflitos. A gente tem dificuldade de aceitar na formação do brasileiro o elemento negro dentro de uma visão de elemento estruturado e de elaboração. A gente olha o tratamento que é dado aos percussionistas brasileiros, na cozinha e essas coisas. A Rumpilezz já se propõe a tirá-los da cozinha e botar na sala de estar. Eles sempre estão à frente, e não vai ser diferente no show de Moacir.

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