Liminar veta peça com Jesus trans

Monólogo ‘Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu’, que seria apresentado hoje em Jundiaí, foi considerado ofensivo “à dignidade da fé cristã”

Andrei Reina
Revista Bravo!
5 min readSep 16, 2017

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Cena de “Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” (Foto: Divulgação)

Uma apresentação da peça Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, que seria apresentada hoje no Sesc Jundiaí, no interior de São Paulo, foi cancelada por decisão judicial. O monólogo, protagonizado pela atriz trans Renata Carvalho, apresenta de modo contemporâneo a vida de Jesus Cristo, que é apresentado, como informa a sinopse divulgada, “na pele de uma travesti”.

“Por decisão judicial, a apresentação do espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, que ocorreria em 15/9, no Sesc Jundiaí, foi cancelada. O Sesc recorreu da decisão. O espetáculo provoca reflexões em torno de questões de gênero”, informa nota divulgada no site do Sesc Jundiaí.

“Com pesar e indignação comunicamos o cancelamento do nosso espetáculo, que aconteceria hoje no Sesc Jundiaí”, diz a nota divulgada na noite de sexta-feira (15) na página oficial da peça no Facebook. “O cancelamento aconteceu devido à liminar concedida pelo juiz Luiz Antonio de Campos Júnior, atendendo a um pedido que vem sendo articulado há alguns dias por congregações religiosas, políticos e pelo TFP (Tradição, Família e Propriedade)“, continuam as artistas.

Nota divulgada na página oficial da peça

O pedido de cancelamento partiu de uma advogada de Jundiaí, que entrou na Justiça com o argumento de que a peça constitui um “crime contra o sentimento religioso”. Segundo a procuração, à qual a Bravo! teve acesso, “a peça é atentatória à dignidade [e] à fé cristã”.

Na liminar, concedida pelo juiz Luiz Antonio Campos Junior, são acolhidas as razões da procuração de considerar a apresentação da peça “atentatória à dignidade da fé cristã, na qual JESUS CRISTO não é uma imagem e muito menos um objetivo de adoração apenas, mas sim O FILHO DE DEUS” (os grifos são do juiz). Além de proibir a apresentação do espetáculo na sexta — “e também em nenhuma outra data” — Campos Junior estabeleceu uma multa diária de R$ 1 mil reais caso a decisão não fosse cumprida.

A diretora do espetáculo, Natalia Mallo, afirmou à Bravo! que a peça já vinha sendo ameaçada, tanto nas redes — o que já aconteceu em apresentações passadas — como por autoridades do Legislativo paulista. Com um ano em cartaz, no entanto, esta é a primeira vez que o espetáculo tem apresentação cancelada pela Justiça. Ela disse ainda estar receosa de que a liminar crie um precedente, impossibilitando o espetáculo — ou outros semelhantes — de circular.

Para Mallo, há uma “sinergia” entre o que houve hoje e episódios recentes de intolerância, de censura e de ataques à liberdade artística, como o fechamento prematuro, por parte do Santander Cultural de Porto Alegre, da exposição Queermuseu, e o confisco de um quadro de Adriana Cunha por pedido de deputados estaduais do Mato Grosso do Sul, que queriam incluir a artista no Cadastro Estadual de Pedófilos.

Foto: Divulgação

Natalia Mallo, que traduziu e dirige o espetáculo — escrito pela dramaturga britânica Jo Clifford — enviou uma texto à Bravo!. Leia na íntegra:

Desde a nossa estréia, há um ano, passamos por diversas situações de violência: ameaças de censura, ameaça física, insultos e difamação na internet, etc. Mas esta é a primeira vez que o espetáculo é impedido de acontecer.

O conteúdo da liminar concedida pelo juiz Luiz Antonio de Campos Júnior, da 1º Vara Cível de Jundiaí, que resultou no cancelamento, é um tratado de fundamentalismo e preconceito​.​

Todas as situações de violência que passamos tiveram algo em comum: contestam a presença de uma travesti em cena interpretando Jesus.

Afirmar que a travestilidade da atriz representa em si uma afronta à fé cristã ou concluir, antes de assistir o trabalho, que é um insulto à imagem de Jesus é, do nosso ponto de vista, negar a diversidade da experiência humana, criando categorias onde algumas experiências são válidas e outras não, algumas vidas tem valor e outras não. São os discursos e práticas que tornam o Brasil um país extremamente desigual, e um território inóspito para quem vive fora da normatividade branca, cisgênera e heterossexual.

Desde sua estreia no Brasil a peça tem tido uma resposta do público muito positiva, lotando teatros e criando espaços de diálogo, resistência e encontro. Temos passado por diversos espaços culturais e festivais (Filo, Porto Alegre em Cena, Cena Contemporânea). Instituições importantes da cultura como SESC, Itaú Cultural, Instituto Tomie Ohtake e outras também abraçaram o trabalho demonstrando disponibilidade em dar visibilidade aos temas que ele aborda.

Mas mais importante do que tudo isso, é o fato da peça ter se tornado dispositivo de debate sobre temas sociais urgentes, graças à sua capacidade de questionar mecanismos de opressão estruturais e institucionalizados.

Desde o início temos promovido instâncias de diálogo, educação e debate e buscado levar o trabalho não só a festivais e teatros centrais mas a locais descentralizados, carentes de programação cultural e que abrigam comunidades vulneráveis. Estivemos em prisões, abrigos, centros de acolhida, sedes de coletivos e ativismo, e estivemos na rua.

Conhecemos de perto a realidade de travestis e transexuais, e de outros grupos minorizados, e justamente por isso, fazemos constantemente um chamado à reflexão sobre a desigualdade gritante e naturalizada em que vivemos.

O Brasil é o país mais transfóbico do mundo. Diariamente travestis são espancadas e assassinadas sem que a mídia, a opinião pública ou o sistema de justiça reconheçam a gravidade e o inaceitável do fato. Estas pessoas vivem e morrem na invisibilidade.

Convido você, que está lendo isto, a escrever no google “travesti assassinada em ……….” (preencher com qualquer cidade do Brasil). O resultado vai ser sempre devastador, brutal e alarmante.

Houve uma grande mobilização e articulação para que o espetáculo pudesse ser cancelado, uma verdadeira estratégia reunindo diversos interesses e interessados e incluindo planejamento, timing e construção de narrativas. Censurar um espetáculo, em nome dos bons costumes, da fé e da família brasileira parece ser, para alguns fariseus, mais importante e prioritário do que olhar para a sociedade e tentar fazer alguma contribuição concreta para mudar o quadro de violência em que estamos todas e todos soterrados.

O espetáculo, escrito por Jo Clifford, busca resgatar a essência do que seria a mensagem de Jesus: afirmação da vida, tolerância, perdão, amor ao próximo. Para tanto, Jesus encarna em uma travesti, na identidade mais estigmatizada e marginalizada da nossa sociedade. A mensagem é de amor. Mas é também queer e provocadora. Não é comportada nem se deixa assimilar. É de carne e fala de um corpo político, alterado, constantemente violentado e oprimido. Mas também cheio de vida, alegria e potência. A Rainha Jesus contesta a tutela sobre os corpos, o patriarcado e o capitalismo. E abençoa a todos e todas por igual.

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