Longa espera

Martha Kiss Perrone faz costura magistral de ausências em "Leste", nova produção em parceria com a Casa do Povo

Rafael Ventuna
Revista Bravo!
10 min readNov 24, 2021

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Casa do Povo à espera do público para a estreia de "Leste" © Camila Svenson

Cresci na periferia de Goiânia. A rua de trás era o fim da cidade. Eu costumava passar horas na parte alta, de onde se avistava uma imensa área do vale do rio Meia Ponte. Foi lá que aprendi a ouvir os ventos que sopram do leste.

Para chegar à outra margem, haviam me dito que existia uma pequena e perigosa ponte que fazia encruzilhada com o trilho do trem, que apitava nas madrugadas silenciosas da década de 1990.

Acima da minha cabeça, aviões sempre seguiam a rota em direção ao mesmo horizonte que nasce o sol.

De alguma forma, eu sabia que o mundo era grande o suficiente para caber nele muitos mistérios. Por que o trem vinha do mesmo lado para onde os aviões voavam?

Algumas ruas dali, ficava a Igreja Santo Inácio de Loyola, que passei a frequentar por causa da catequese. Em uma das primeiras leituras bíblicas, fiquei muito curioso com uma palavra nova: judeus.

Os párocos tinham feito da capela, que ficava ao lado do altar, a sala de catequizar. Na saída, vi um seminarista preparando a missa seguinte. Notei que no grandioso crucifixo católico havia uma placa perto da coroa de espinhos, “afixada” por um prego desenhado à tinta, com as letras INRI e perguntei pelo seu significado.

— Jesus Nazareno Rei dos Judeus, respondeu o seminarista.

Eu fiquei paralisado com meus pensamentos. Afinal, aquele povo das terras longínquas, os tais judeus, além de perseguidos ainda tinham um mártir chamado por Pilatos de “rei” e que todos a minha volta chamavam por Filho de Deus.

A complexidade do mundo parecia não fazer o menor sentido.

Tempos depois, não muito longe da igreja, no Colégio Estadual Irmã Gabriela, eu já estava na quinta série e ansioso para descobrir as novas matérias, em especial a Geografia. A professora Helena chegou, tateou o centro alto do quadro negro até achar um minúsculo prego no qual prendeu o cordão para estender um mapa múndi.

Minha vida nunca mais foi a mesma.

Senti que os grandes mistérios do leste, do oeste, do norte e do sul estavam sob ameaça. A luz do conhecimento explicaria o porquê dos aviões voarem e o porquê da perseguição aos judeus.

Os anos passaram. Consegui compreender nas aulas os fluxos imigratórios. Incluindo a chegada dos judeus a São Paulo, onde eles erigiram, dentre incontáveis outras coisas, a Casa do Povo.

TAIB é o próprio retrato da espera © Camila Svenson

A Casa
Anos sem encontrar pessoalmente Marcela Amaral, acertamos dela me contar sobre o seu novo desafio à frente do cargo de diretora de operações na Casa do Povo.

Ela nem precisou gastar seu sotaque mocoquense.

No final de outubro, quando o espaço paulatinamente retomava suas atividades, Marcela respondia a demandas diversas, como a dos pedreiros que estavam com a missão de preparar o vão próximo às escadas para o elevador voltar ao funcionamento.

Em um lapso, ela me sequestrou e me guiou pelas escadarias escuras que desciam um andar abaixo do nível da rua, onde está o TAIB, como é conhecido o Teatro de Arte Israelita Brasileiro, que viveu seu apogeu nos anos 1960 e 1970, até iniciar sua decadência com uma inundação. Marcela me contou que aquele teatro absolutamente em ruínas seria um dos cenários de Leste, que entraria em cartaz em algumas semanas.

Eu não precisaria ser arquiteto nem engenheiro para saber que no prazo aquele lugar não estaria pronto para receber pessoas. Foi quando ela me explicou a proposta cênica na qual o público seria convidado a percorrer, do subsolo ao segundo andar.

Naquela visita rápida, ainda deu tempo de jogar um “futebol improvisado” no espaçoso saguão com os filhos dela. De um lado, o time formado pelo primogênito, Pedro, e pelo cenotécnico Renato Maretti; do outro, pelo caçula, Joca, e eu.

Marcela seguiu nas suas resoluções intermináveis com o produtor Leonardo Monteiro. Quando eu me aproximei para me despedir, ela disse para falar com o Frederico Paula da assessoria de imprensa.

Instigado por tudo que eu tinha visto e ouvido, combinamos que eu voltaria para ver um ensaio geral na véspera da estreia.

Novembro já tinha virado e cheguei no horário marcado. Ao descer para o mezanino do TAIB, encontro Martha Kiss Perrone e seu assistente de direção Jaya Batista alinhando os últimos detalhes. Ao redor, estava toda a equipe técnica, mas nenhum ator ou atriz.

Eu estava muito vibrante porque era o primeiro ensaio in loco que eu acompanharia depois do início da pandemia. Para um jornalista, poder conhecer os bastidores durante uma reportagem é sempre um privilégio. Dava para sacar que Leste traria consigo elementos muito incomuns.

Martha se aproximou e me conduziu até o palco. Pelo caminho, ela me apresentou a todos que ali trabalhavam, evidenciando que tudo foi feito coletivamente.

Liguei o gravador para a entrevista.

A longa espera de Martha Kiss Perrone resulta em costura de ausências © Camila Svenson

Você começou primeiro pelo texto Um Sonho de Goldfadn ou pela ideia da instalação na Casa do Povo?
A história é longa. Desde 2013 faço criações neste espaço. Mas em 2017, viajei para o leste europeu para pesquisas a convite da Dorota Kwinta, do Instituto Adam Mickiewicz. Na biblioteca do Centro de Cultura Judaica, em Varsóvia, na Polônia, um dos poucos lugares que não foram totalmente destruídos, pedi os materiais do Jacob Rotbaum, um autor que eu não conhecia. Quando abri, a primeira coisa que vi foi o jornal Nossa Voz, ainda editado pela Casa do Povo, e recortes de jornais sobre a vinda dele ao Brasil. Foi o primeiro vínculo. Falava ao mesmo tempo sobre nós. E sobre uma tradição de teatro iídiche que não herdamos por causa do genocídio. Encontrei também as partituras das músicas que a gente usa no filme. No final de 2019, chamei as pessoas para iniciar o trabalho. E aí veio a pandemia. Fizemos a nossa primeira imersão no final de 2020 achando que seria um espetáculo com estreia em 2021. Aí vimos que não daria. Eu já tinha uma vontade de aproximar cinema e teatro. Havia uma ideia de que o texto da peça seria um filme em iídiche dentro do espetáculo. Em janeiro e fevereiro a gente começou a fazer a transposição da peça para o filme. Sem poder fazer teatro como a gente conhecia, começamos pelas ruínas do TAIB, num percurso a partir do subsolo, nossa primeira escavação. O Ravioli insistiu com a porta e virou uma “re”abertura performática do TAIB neste momento em que as pessoas estão voltando aos teatros. Aqui os fantasmas são dispositivos. Invertemos a lógica de espaço triste e abandonado. O leste é um território imaginado, onde estão as raízes do iídiche. Também é errância e nomadismo do judaísmo.

Vai ter alguém em cena?
Nunca.

Uau! Que fantasmagórico!
Exatamente. Temos o cenário de uma peça que não aconteceu. Mas é também o set do filme, onde o TAIB é o personagem principal. 73 anos depois a gente se reencontra com este texto em uma situação trágica, interrompidos no nosso fazer teatral, para fazer uma peça de uma tradição também interrompida, sobre um grupo teatral que encontra a sua resiliência através do sonho, da fantasia, da magia e de outros aliados não palpáveis. O teatro iídiche foi muito inventivo, importante e popular no leste da Europa e até influenciou o que a gente conhece como a Broadway em Nova York. Quando veio pra cá em 1948, num cenário de pós-guerra, contava-se seis milhões de pessoas desaparecidas. Li a carta de um ator, um sobrevivente, que fala que dos 263 atores de Varsóvia, somente ele tinha sobrado. Quando se pensa em genocídios, se pensa em grandes números. Por mais que a gente se afete é uma abstração. Então, é só a gente imaginar como se todas as pessoas que fazem teatro em São Paulo tivessem desaparecido.

Você é judia?
Não. Durante o processo criativo de Leste, numa coincidência, descobri que um avô era judeu, não religioso, que minha mãe conviveu pouquíssimo. O Perrone é italiano. Mas o Kiss, nos documentos, era Klein, ele chegou criança como judeu assimilado e falava iídiche.

Ajustes finalizados. Uma pausa foi feita antes do ensaio geral. Saí à rua e vejo muito lixo em frente à Casa do Povo. Um homem negro revirava os sacos. Enquanto outro homem negro dormia diante da fachada coberta por papel vermelho onde se podia ler em grandes dizeres em português e iídiche a palavra “leste”.

Uma angústia me tomou naquela noite chuvosa que fazia a temperatura cair. Eu deveria “voltar para dentro e ver teatro” enquanto a necropolítica destrói o Brasil? Afinal, de quais ruínas a gente estava conservando mesmo? De qual genocídio falávamos?

Antes do ensaio geral começar, Martha orientou o grupo formado em maioria por funcionários da Casa do Povo. Éramos 18 pessoas. Ao sairmos para testar a abertura da porta da rua, aqueles homens haviam desaparecido da calçada.

No mezanino do TAIB, as vozes das personagens ausentes, até mesmo em uma língua ausente, apresentavam suas memórias, seus vínculos com aquele teatro em ruínas. Subimos para o segundo andar e me sentei ao lado do Benjamin Seroussi, diretor da Casa do Povo.

Eu queria perceber a reação dele diante daquela experiência a fim de saber o que ele achava daquela exposição das precariedades. Enquanto, obviamente, eu fixava a minha atenção no filme. Até que escuto ele murmurar junto à voz de Assucena Assucena um canto judaico. Shalom… Shalom…

Após o surpreendente final, ele demonstrava um misto de satisfação em ver o projeto tomar forma, enquanto discutia estratégias de acolhimento do público, uma vez que, antes do início da temporada, os ingressos já estavam esgotados.

Minha pergunta Seroussi respondeu. Disse que não via a exposição das precariedades como uma exposição de fragilidades, mas sim de potencialidades.

E parece ser mesmo este espírito que paira por toda a casa para quem conhece os projetos que ali ganham voz e vez. Especialmente, as ações direcionadas a causas humanitárias com grupos vulnerabilizados que fazem jus ao nome de Casa do Povo.

Eram quase 23 horas. Eu estava entorpecido de cansaço e conciliado com meus próprios fantasmas. Chamei o Uber.

Quando entrei no veículo, o motorista Murilo não acelerou. Virou-se e me perguntou:

— O que é essa Casa do Povo?

Naqueles milésimos de segundo que parecem uma eternidade, com as minhas memórias fundidas a tantas outras, parecia uma pergunta irrespondível. Porém, falei com convicção:

— É um centro cultural.

Público à espera para entrar no TAIB © Camila Svenson

O Povo
Benjamin Seroussi é um dos idealizadores de Leste, juntamente com a nonogenária Hugueta Sendacz, que havia assistido à peça no TAIB em meados do século passado com sua mãe em cena.

É do mezanino do TAIB que a sala de espetáculos desativada é apresentada ao grupo de 50 pessoas. Projeções de textos e vozes são o suporte desta introdução. Depois, o público sobe até o segundo andar, onde há duas telas dispostas frente a frente, onde o filme é projetado de forma assíncrona. A plateia também se divide. E, no chão, uma extensa camada de lona preta cobre toda a superfície central. Ao final do filme, esta camada se transforma com a força dos ventos que vêm do Leste.

A dramaturgia se desenvolve pela textualidade presente na instalação do teatro em ruínas e no filme. Na proposta de Martha Kiss Perrone, memórias pessoais, vidas interrompidas, culturas dilaceradas, diásporas forçadas e a longa espera provocada pela pandemia da COVID-19 são ausências magistralmente costuradas.

É difícil sublinhar destaques em uma equipe técnica tão competente e dedicada aos alinhavos feitos entre teatro, artes plásticas, sonoplastia e cinema. Mas, seguramente, os melhores ventos trouxeram para perto o roteirista João Turchi, a direção musical de Juliano Abramovay e a direção de arte e cenografia de Frederico Ravioli.

A ausência do elenco quase não é sentida devido à teatralidade emprestada ao filme, onde depoimentos se fundem às oníricas interpretações de Amanda Lyra, André Lu, Assucena Assucena, Heitor Goldflus, Rodrigo Bolzan, Vitória Faria, Ariane Aparecida, Nina Hotimsky, Ícaro Pio, Betty Poquechoque, Sonia Limachi Quispe, Yenny Rodrigues Cruz e Elizabeth Mariela Cuaremayta Mamani.

Leste não é somente sobre um teatro iídiche resgatado de arquivos e lembranças. É uma profunda reflexão sobre a ausência. É sobre este vento que vem do nosso leste imaginário e nos faz recordar que viver é um constante soprar.

Na noite seguinte ao ensaio geral, 11 de novembro, retornei para a estreia. Aos poucos, a casa se enchia de convidados e de vida. Até os fantasmas pareciam felizes.

Ao final da sessão, com o sucesso da première, o espaço foi tomado pelo burburinho dos reencontros. Marcela, que parecia ainda ter de falar com uma dezena de pessoas, me disse:

— Espera que já falo com você!

Eu me afastei silenciosamente. Como se fosse em câmera lenta. Pois eu só queria guardar aquela imagem das pessoas ali reunidas e tão ávidas. Desci as escadas. E, antes de deixar a Casa do Povo, pronunciei em pensamento:

— A espera acabou.

Leste. Direção de Martha Kiss Perrone. 11 de novembro a 5 de dezembro. Quintas a sábados, às 20h; e domingos, às 19h. Casa do Povo (rua Três Rios, 252, Bom Retiro). 90 minutos. Livre. 50 pessoas por sessão
Ingressos grátis e esgotados em casadopovo.org.br*. Verificar protocolos de segurança sanitária como uso de máscara e apresentação de certificado de vacinação.

*Há uma lista de espera aberta uma hora antes do início da sessão. Na última semana da temporada, será realizada sessão extra na quarta-feira.

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