Lucky, ou sobre sorrir diante da morte

Um encontro do último filme de Harry Dean Stanton com a filosofia de Montaigne

Duanne Ribeiro
Revista Bravo!
7 min readMar 14, 2018

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Harry Dean Stanton, em “Lucky”

Por coincidência, assisti a Lucky (2017), filme de John Carroll Lynch, à mesma época em que leio os Ensaios, de Michel de Montaigne (1533–1592), do qual um dos capítulos é “De como Filosofar é Aprender a Morrer”. É disso que se trata, também, na película: o protagonista, cujo apelido dá nome à obra, é atirado a essa lição, é confrontado com o previsível fim, deve aprendê-lo.

Com 90 anos, Lucky, interpretado por Harry Dean Stanton (em seu último papel), vive sua rotina em uma cidade pequena, às margens do deserto. Cumpre sua ginástica (cinco exercícios de yoga, “todos os dias, por anos”), termina seu café na lanchonete, faz suas palavras-cruzadas, vê seus programas de auditório na televisão, bebe sua Bloody Mary à noite. É conhecido por todos, soma à sua reserva uma simpatia sem excessos. Um dia, sofre um colapso em casa — defronte ao visor do micro-ondas, o horário desregulado, meio-dia ou meia-noite piscando vermelhos sobre o seu rosto — ele cai. O baque, físico e psicológico, o leva ao médico, que não diagnostica nada, até o vê saudável demais para um fumante. O que se pode saber é que está velho, e é assim.

“Abalou o meu mundo”, expressa o velho, à certa altura. A rotina prossegue de toda forma, é a coisa que ela faz, mas algo na base de tudo havia sido transtornado. Lucky já conhecera a morte, durante a Segunda Guerra Mundial; mas agora ela lhe aparecia como um tipo diferente de verdade. Em torno desse conflito existencial, o filme vai dispor os acontecimentos e a audição das narrativas de outros personagens: a cada passo se coloca um pensamento sobre o tempo e a finitude.

Isso se dá — com uma falta de sutileza que talvez diminua o filme — já a partir dos termos que o personagem encontra nas palavras-cruzadas. Destacados, funcionam como palavras-chave do roteiro. Na lanchonete, Lucky pergunta: palavra de nove letras para “augúrio”? Presságio — que antecipa o peso que terá a crise a que nos referimos. Em casa, se depara com “realismo”, termo que o leva ao dicionário. Ele lê em voz alta: “Realismo. Substantivo. 1. A atitude ou prática de aceitar uma situação como ela é e estar preparado para lidar com ela como tal; 2. A qualidade ou fato que representa uma pessoa, coisa ou situação com precisão ou de uma maneira verídica em relação à vida”. Quando a queda ocorrer, pouco adiante, não será essa a exigência prática?

Uma Tarefa: Como Ver Passar o Tempo?

O que complica esse realismo, como Lucky comenta pouco depois da consulta, é que “o que vejo não é o que você vê”, ou seja, a vivência da realidade é múltipla. A expressão “a situação como ela é” deve ser sempre qualificada, “como é para alguém”, e a descoberta da atitude conforme se torna (ainda mais) indefinida. Nesse sentido, como representar “com precisão ou de maneira verídica” o morrer? Já aqui reencontramos Montaigne: tal tarefa é ditada pelo filósofo, quando recusa que “a morte ultrapassa a nossa concepção” e defende que uma preparação frente a ela “comporta grandes vantagens, pois será pouco caminhar ao seu encontro sem apreensões?”. Aí não se trata, note-se, de prever burocracias, mas de saber estar presente no instante derradeiro.

O ensaio de Montaigne explora várias representações da morte. Desde as maneiras como outros povos, em oposição aos europeus contemporâneos a ele, a encaram, até como condições vitais distintas valorizam ou desvalorizam o fato de estar vivo. Quanto ao primeiro ponto, Montaigne destaca os costumes segundo os quais a morte não é — como também entre nós — algo envolto em rituais, ocultado em espaços isolados, policiado na linguagem e no pensamento. Prefere que seja rotineira, que a nossa fragilidade e a curteza do nosso tempo sejam expostos comumente, sem escândalo. Quanto ao segundo, usa-o para dizer que, ora, morrer pode ser de somenos.

Em Lucky, antes de evocar o momento final — quando o velho chegará a um ideal muito próximo ao de Montaigne — o filme nos falará da forma como vivemos. Penso que ainda estamos falando do mesmo: na medida em que morrer se vivencia por como se interpreta a passagem do tempo, os acontecimentos seguintes são também respostas àquela tarefa que identificamos.

Dois dos personagens que o protagonista encontra no bar se enquadram nisso. Um deles, Paulie, narra como ter se enamorado da dona do estabelecimento, Elaine, transformou sua vida. Antes, era ungatz, nada, em dialeto ítalo-americano. Paulie fala, pois, de um renascimento quando da sua vida não esperava coisa alguma. O que ele quer defender é: a renovação sempre é possível. A idade pode marcar a extinção de alguns caminhos e a proximidade da morte, mas não é o fim do estar vivo, do que há de potência nisso. Lucky responde: “Que bosta!”.

O segundo, Howard (interpretado pelo diretor David Lynch), abalado pela fuga do seu animal de estimação — um jabuti chamado President Roosevelt — , decide fazer um testamento pelo qual deixa todas as suas posses para o réptil. Lucky se indigna tanto com o que lhe parece fútil quanto com o advogado, às suas vistas só um interesseiro. Acaba pondo Howard contra a parede, a que este reage, declarando-se. President Roosevelt afetou sua vida como o amor fizera à Paulie, não por uma divisão antes/depois, sim por tê-lo conhecido quando não era maior que um polegar e por saber que adiante de si tinha mais cem anos. O jabuti evidenciava em sua simplicidade que do insignificante se faz o imponente, assim como que o humano é só uma entre as outras coisas, não sendo nem a que mais perdura; o que está “abaixo” de nós estará aqui depois de nós.

David Lynch com Harry Dean Stanton, em cena de “Lucky”

Ainda mais, o jabuti, nos indicará Paulie, é uma certa representação do viver. “Vocês veem um jabuti como algo lento — mas eu penso em todo peso que ele carrega, no casco que o protege e que será seu caixão”. No contexto em que se coloca, essa ideia funciona como uma metáfora de Lucky: se ele muda devagar, é porque leva a carga dos anos, que lhe proporcionaram defesa e estabilidade e que são seus limites também. Tenhamos empatia, portanto?

Não Estarmos Além: Estarmos em Nós

Nossa vida é grande pois continua, nossa vida é pequena pois inscrita numa continuidade maior. Essas convicções, apesar de terem efeitos em Lucky, não parecem definir sua postura conclusiva. Tudo indica que ele nota nelas formas de disfarçar uma negatividade que não pode ser negada. Poderia ele afirmar, como Montaigne noutro ensaio, Dos Nossos Ódios e Afeições, que “nunca estamos em nós; estamos sempre além. O temor, o desejo, a esperança jogam-nos sempre para o futuro, sonegando-nos o sentimento e o exame do que é, para distrair-nos com o que será, embora então já não sejamos mais”? Duas outras cenas permitem afirmar que sim.

Barry Shabaka Henley contracena com Harry Dean Stanton, em “Lucky”

Na lanchonete, Lucky encontra um outro veterano de guerra como ele. O ex-soldado, Fred, lhe conta uma história de um ataque aos japoneses: em uma vila arrasada, “coberto de merda”, em meio a “pedaços de corpos”, viu uma menina, que “sorria de orelha a orelha”. Seu superior lhe deu uma explicação: “Ela é budista. Ela pensa que será morta e está sorrindo ao seu destino”. O soldado nota, por fim: “Não se dão medalhas para esse tipo de coragem”. Nosso protagonista é claramente atingido. Na cena seguinte, o vemos ajustando aquele tempo parado, vermelho, sob o qual teve seu colapso. Depois, atende a um convite que hesitara em aceitar e vai a uma festa de aniversário (outra vez, aqui, a referência às marcações de tempo). Até mesmo canta:

este amor apasionado
anda todo alborotado
por volver (…)

É Volver, Volver, de Vicente Fernández, que reelabora em nostalgia terna o medo que a morte, ou a lembrança dela, havia colocado em Lucky. Tudo se passa como se a imagem da menina que sorri nietzscheanamente à morte — lembremo-nos do amor fati — tenha lhe tirado um peso, e mesmo aberto espaço para aceitar que ainda havia vida a viver. Após todos esses aprendizados — Paulie, Howard, Fred — Lucky chegou a algo verdadeiro. E a verdade, como ele dirá, “importa. A verdade do que somos e do que fazemos. Você tem que encarar isso e aceitar isso”.

Isto ele diz em uma fala que encaminha o filme ao encerramento — o filme dispõe a situação de uma forma algo atropelada, mas podemos extrair dela seu melhor. Lucky, aí, continua: é preciso que confrontemos isso, porque “a verdade do universo aguarda, a verdade que vem para todos nós — tudo vai desaparecer. Tudo: à escuridão, ao vazio. E ninguém está no comando. E só lhe resta: ungatz. Nada. É tudo o que existe”. E o que se faz com isso, inquirem os convivas no bar, o que nós fazemos com isso? Ao que Lucky ri, contido, sentido, e responde: “Você sorri”.

“Nascemos para agir”, poderia concordar Montaigne, “vamos agir portanto e prolonguemos os trabalhos da existência quanto pudermos, e que a morte nos encontre a plantar as nossas couves, mas indiferentes à sua chegada e mais ainda ante as nossas hortas inacabadas”.

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Duanne Ribeiro é jornalista, mestre em Ciência da Informação, especialista em Gestão Cultural e bacharel em Filosofia. Mais conteúdo em duanneribeiro.info.

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Duanne Ribeiro
Revista Bravo!

Jornalista. Mestre em Ciência da Informação, pós-graduado em Gestão Cultural e graduado em Filosofia (USP). Analista do @itaucultural. Editor da @rcapitu.