Não é porque você é contrário, ou não conhece, que a transexualidade não existe

Joao Luiz Vieira
Revista Bravo!
Published in
9 min readJan 18, 2017
A Garota Dinamarquesa/Divulgação

Por João Luiz Vieira

“Não estou entendendo nada, e talvez não queira mesmo entender. Sou da época em que a gente só tinha dois modelos de discussão sobre sexualidade: se o indivíduo era homem ou viado, mulher ou sapatão”.

Ouvi dia desses de um conhecido que é homossexual antes mesmo do uso superlativo do substantivo “gay”, que vem do inglês e quer dizer “alegre” ou “jovial”, e é termo menos “pejorativo” que “viado” ou “sapatão”.

É, meu amigo, você pode decidir o que quiser, mas não é porque você não quer saber sobre as recentes conquistas de gênero que elas não existam. Mais que isso. Que homens e mulheres não possam ajustar seus corpos, condutas e políticas de acordo com suas necessidades precípuas.

Sabe quando se diz que a vida dá um nó em qualquer roteiro? Ela abre travessão quando você acredita que tudo se encerra em seu ponto final e, naturalmente, movimenta-se mais rápido que a arte tenha tempo de traduzir suas rupturas, espelhá-las, questioná-las ou demoli-las.

Mesmo que não se queira saber, hoje existem 31 gêneros, 18 sexualidades e, por enquanto, dois sexos, incluindo os indivíduos com DDS (Distúrbio do Desenvolvimento Sexual Ovotesticular). Você, provavelmente, só ligará a sigla se eu citar suas nomenclaturas antigas: hermafroditismo ou intersexualidade, que caíram em desuso depois que o Conselho Federal de Medicina (CFM) emitiu a resolução 1664/2003. Ela definiu as “Anomalias de Diferenciação Sexual”, que propôs uma “definição adequada do gênero”.

O ser humano, feliz ou infelizmente, gosta de classificar, precisa usar de recursos imagéticos e memoriais para ter o mínimo de certeza sobre onde pisar, seja para catalogar invertebrados ou batizar galáxias. Se isso é eficaz é assunto para outro artigo, mas você e eu precisamos ser alguma coisa para alguém, de preferência sem movimento de transição. Precisamos, não. A multidão exige, mas muitos colegas de espécie não se entregam a um rótulo.

O assunto aqui é a transexualidade, tema que vem frequentando departamentos de roteiro de cinema e TV em boa parte do mundo, incluindo o Brasil, notebooks de escritores e dramaturgos, como eu, veículos de comunicação, como este, salas de espetáculos e, também, escritórios de advocacia que pretendem garantir cidadania a indivíduos que fizeram a transição de gênero. Como estamos na Bravo, vamos falar, portanto, de como a arte se comunica com essa nova ordem.

Primeiramente, é preciso que se diga que não existem referências disponíveis a respeito de homens vivendo como mulheres ou mulheres vivendo como homens antes do Império Romano. É, não começou com Roberta Close ou com o filho da cantora Gretchen, Thammy Miranda, como muita gente pensa. Nero (37 d.C. 68 d.C.) chutou sua mulher grávida, Poppaea, até a morte, arrependeu-se e, tomado de remorsos, buscou alguém parecido com ela. Encontrou em um escravo, Sporus, essa semelhança, e ordenou a seus cirurgiões que o transformassem em mulher. Ou ele aceitava ou adivinha?

Nero/Reprodução da Internet

São muitos e muitos exemplos, muitos deles revelados no livro “Construindo Daniel”, escrito por mim para a editora Harper Collins e que será publicado nos próximos meses a partir de um extraordinária histórica verídica. Há, porém, controvérsias que apimentam conceitos a respeito do assunto, que divide opiniões entre médicos, sociólogos e até mesmo nos grupos que sofrem na pele o problema. A principal delas, no momento, é a chamada “Teoria Queer”, surgida nos anos 1980.

Ela defende a controvertida ideia que a orientação sexual e a identidade sexual ou de gênero são resultado de uma construção social. Por esse prisma, não existem papéis sexuais essencial ou biologicamente inscritos na natureza humana, como defendem biomédicos. O que existe, segundo a teoria, são formas socialmente variáveis de desempenhar um ou vários papéis sexuais.

A arte começou a representar transgêneros a partir de personagens históricos como Aquenáton, faraó egípcio da 18ª Dinastia. Ele tinha busto e quadril largo. Enquanto faraó, encarnava a divindade, e teria sido propositalmente concebido como uma figura andrógina. Há diversas personalidades que se seguiram a ele, que nem caberia listar agora.

Aquenáton/Reprodução da Internet

A transgeneridade foi retratada, sob outros substantivos, em esculturas, pinturas e gravuras. Em “Rrose Sélavy”, de 1921, Michel Duchamp (1887–1968) é o modelo travestido e incorporado como uma de suas várias interfaces. A foto, dos anos 1920, é clássica. Andy Warhol (1928–1987) também reproduziu uma série de autorretratos travestido.

Rrose Selavy (Marcel Duchamp) by Man Ray (1923)

Passamos, então, por músicos. De David Bowie (1947–2016) em sua fase Ziggy Stardust e Aladdin Sane, aos figurinos das bandas do chamado glam rock, como a Roxy Music nos anos 1970, chegando em Marilyn Manson décadas depois. A provocação foi grande, e continua hoje, em bandas como As Bahias e a Cozinha Mineira, Lineker, Liniker e os Caramelows, Verônica Decide Morrer, PAZ, e em intérpretes como Mel (da Banda Uó), Johnny Hooker, Mc Linn da Quebrada, Rico Dalasam, e Jaloo. Isso somente no Brasil recente.

No cinema, há “Traídos Pelo Desejo”, dirigido por Neil Jordan em 1992, em que um militante do Exército Republicano Irlandês (IRA) apaixona-se por Dil, uma mulher transexual. A lista só cresceu depois desse longa-metragem, com dois expoentes elogiados pela crítica especializada: “Transamérica”, por Duncan Tucker, em 2005, e “A Garota Dinamarquesa”, assinado por Tom Hooper em 2016. Ambos foram indicados em categorias do Oscar.

Transamérica/Divulgação

No primeiro, a história de Bree que, uma semana antes de fazer a cirurgia de redesignação sexual (CRS), descobre ter um filho de 17 anos que precisa de ajuda. O segundo título também centra-se nos momentos anteriores à CRS de Lili Elbe, que nasceu homem e foi a primeira pessoa a se submeter a uma cirurgia de mudança de sexo, e morreu pela rejeição do organismo a um implante de útero.

O espanhol Pedro Almodóvar é um cineasta que trata do assunto desde o início de sua carreira, quando já contratava transexuais para a equipe, mas, sem dúvida, “Tudo Sobre Minha Mãe”, de 1999, e “A Pele que Habito”, de 2011, foram os mais reluzentes exemplares na tradução da temática para uma grande audiência. No primeiro, uma mulher transexual tem extrema importância para o enredo, enquanto no segundo a transição digamos que seja mais violenta e didática.

Dois outros casos, em que os focos são as crianças transexuais: “Minha Vida em Cor-de-Rosa”, dirigido por Alain Berliner em 1997, “Tomboy”, por Céline Sciamma em 2012. A transexualidade infantil é uma das faces mais delicadas desse fenômeno, que já é acompanhado por famílias e médicos em dois ambulatórios do Brasil, em São Paulo e no Rio Grande do Sul.

Tomboy/Divulgação

Podemos citar, ainda, com diferentes angulações, “Vera” (Sérgio Toledo, 1987), “Meninos Não Choram” (Kimberly Pierce, 1999), “XXY” (Lucía Puenzo, 2007), “Albert Nobbs” (Rodrigo Garcia, 2012) , “Laurence Anyways” (Xavier Dolar, 2012), “De Gravata e Unha Vermelha” (Miriam Chnaiderman, 2015), “Meu Nome é Ray” (Gaby Dellal, 2015), “Tangerine” (Sean Baker, 2015). Esqueci de algum? Certamente.

Na TV, há Sophia Burset, personagem da atriz e ativista transexual Laverne Cox em “Orange Is The New Black” (disponível no Netflix), assim como há Nomi, uma hacker transexual vivida pela atriz Jamie Clayton, também transexual, em “Sense8”.

Tangerine/Divulgação

“Boy Meets Girl”, da BBC 2, é estrelado por Michelle Hendley, uma mulher trans à procura do amor, e “Transparent”, da Amazon, deu o Globo de Ouro e o Emmy para Jeffrey Tambor, que viveu toda sua vida se identificando como um homem até decide ser o que nasceu para ser. O que isso quer dizer: chegou às donas de casa e os adictos em séries, ou seja, a informação está no seu sofá ou no seu notebook. Como lidar?

Há, também, “I Am Cait”, reality show do E! estrelado por Caitlyn Jenner, que se tornou o ícone mais célebre do universo transexual por tudo o que representa: ex-atleta olímpico, Bruce Jenner, heterossexual, com três ex-mulheres e seis filhos legítimos. Por fim, e por enquanto, “I Am Jazz”, do canal Discovery Home & Health, com Elle Fanning vivendo um garoto de 17 anos que faz a transição de gênero.

I Am Cait/Divulgação

No teatro brasileiro, o destaque é “BR-Trans”. Protagonizada por Silvero Pereira, a montagem levou 14 anos de pesquisa de Pereira sobre o universo trans. Estreou em 2013, somou mais 350 apresentações em 22 cidades do Brasil e exterior.

A peça venceu o Prêmio Aplauso Brasil 2016 nas categorias de melhor ator, dramaturgia e espetáculo por voto popular e o levou à fama. O ator deve estar na próxima novela das 21h da TV Globo, “A Força do Querer”, de Gloria Perez, que terá personagens transexuais na trama e estreia neste semestre, quando findar “A Lei do Amor”.

A Força do Querer/TV Globo/Divulgação

Na literatura, o primeiro livro onde é usado o termo “transexual” é “Die Transvestiten”, escrito por Magnus Hirschfeld em 1910. A obra do médico polonês (1868-1935) fez questão de separar as formas semânticas de homossexualidade e transexualidade. Ele disse na primeira década do século passado que este último não é uma prática especificamente homossexual, em via de destruir a homogeneidade aparente da categoria de “atos contra a natureza”.

Outro livro seminal é “The Transsexual Phenomenon”, escrito por Harry Benjamin em 1966, que pode ser adquirido via download pela internet:http://www.agnodice.ch/IMG/pdf/Harry_Benjamin_-_The_Transsexual_Phenomenon.pdf. No Brasil, “Viagem Solitária” (Leya, 2011) é uma referência. Autobiografia de João W. Nery, o primeiro homem transexual a concluir sua CRS. Durante a ditadura militar. O médico que o operou, inclusive, foi preso à época.

A transexualidade também é debatida em inglês nos seguintes títulos: “Gender Outlaw: On Men, Women and the Rest of Us”, de Kate Bornstein, “Transgender Nation Hardcover”, de Gordene Olga MacKenzie, “Current Concepts in Transgender Identity (Garland Gay and Lesbian Studies)”, de Dallas Denny , e “Transgender Warriors : Making History from Joan of Arc to Dennis Rodman Paperback”, de Leslie Feinberg.

Felizmente, não há espaço suficiente para citar tudo o que já foi criado para apresentar o tema da transexualidade sob viés artístico. Infelizmente, por ocasião do 18º Dia Internacional da Memória Trans (Tdor, do inglês), 20 de novembro de 2016, a Transgender Europe (TGEU) divulgou números alarmantes sobre a violência contra transexuais, o que quer dizer que a produção de conhecimento ainda não nos tornou uma espécie evoluída.

A Pele que Habito/Divulgação

Desde 2008, quando o relatório começou a ser divulgado pela instituição, 2.264 indivíduos em transição de gênero foram assassinados em todo o mundo. O número atualizado registrou casos em todas as regiões do planeta, e o Brasil ficou o primeiro lugar: 900 casos. Em seguida, com um número quase quatro vezes menor, México (271).

“Não vemos as coisas como SÃO. Vemos as coisas como SOMOS”, já nos disse Humberto Maturana, 68 anos, chileno, neurobiólogo, crítico do realismo matemático e criador da teoria do conhecer, em que, dentre outras, diz que os estímulos externos, que surgem a todo momento, nos influenciam.

Mais que isso: estamos sempre respondendo a esses estímulos, nos renovando e sofrendo mudanças. Do ponto de vista da sexualidade, podemos dizer que ela não abrange o que EXISTE, mas unicamente o que eu CONSIGO VER. Como eu (ou você) mudo o meu entorno depende muito do quanto MUDO o olhar sobre o que VEJO, a partir dos novos (basicamente os novos) estímulos que recebo.

Se eu não conheço a transexualidade não quer dizer que ela inexista, e a partir do momento das informações que recebo sobre o assunto eu mudo, ou tento, o meu ser e instrumentalizo melhor quem está sob meu radar. Sabemos muito pouco sobre os outros e, também, sobre nós. O que eu não sei é apenas uma proposta de caminho que vem do outro. Nada mais.

*João Luiz Vieira, 47, é jornalista, roteirista, letrista e educador sexual, ou sexólogo, como preferir. Ele tem dois livros lançados como coordenador de texto: “Sexo com Todas as Letras” (e-galáxia, fora de catálogo) e “Kama Sutra Brasileiro” (Editora Planeta, 176 páginas), além de sócio proprietário do site paupraqualquerobra.com.br.

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