Não diga que estamos morrendo, hoje não

Através da produção independente, a música brasileira retoma o seu protagonismo político

Renato Gonçalves
Revista Bravo!
5 min readJan 23, 2020

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Juçara Marçal em foto de José de Holanda

Desde a sua consolidação em meados do século XX, a música brasileira esteve imbricada às questões políticas de seu tempo. Das representações da malandragem no samba no calor da aprovação das leis trabalhistas ao rap que escancarou os abismos entre as elites e as periferias, passando ainda pela canção de protesto na ditadura militar e o rock como trilha sonora da transição democrática, a música esteve a par das transformações socioculturais brasileiras. Dentre todas as expressões artísticas, talvez seja a canção, cujo formato não encontra paralelo em nenhuma outra cultura, aquela que melhor retratou a nossa trajetória.

Na entrada dos anos 2020, quando emergem o descrédito a instituições, a naturalização da barbárie e a ascensão das lutas por reconhecimento político, por onde tem caminhado a música brasileira? À margem dos circuitos de difusão massiva, como a televisão, o rádio e os conteúdos digitais privilegiados pelos algoritmos das plataformas digitais, a produção da música independente resiste, persiste e insiste nas possibilidades questionadoras e reflexivas da palavra cantada. Com a produção independente, a música brasileira retoma o seu protagonismo político.

Dois são os pontos-chave da música independente: a internet e o fim das grandes gravadoras. Se, no início do século XXI, a internet revolucionou o consumo da música, fomentando, inicialmente, a pirataria, e, posteriormente, a criação das plataformas de streaming, momento em que a música deixa de ser um produto e passa a ser um serviço, a indústria fonográfica teve suas lucrativas estruturas produtivas abaladas. Nesse ínterim, a produção independente, que, no Brasil, já não era novidade desde pelo menos as pioneiras experiências de Itamar Assumpção e seus contemporâneos da Vanguarda Paulistana na década de 1980, ganhou forças e se consolidou como uma cultura, arregimentando um público altamente interessado e um circuito de difusão próprio, formado por casas de show, críticos e blogs especializados.

Livre das preocupações comerciais de outrora, foi exponencial o crescimento da música brasileira nos últimos anos. Com a relativa facilidade de gravação, produção e difusão dos fonogramas, a música independente é marcada tanto pelo grande número de artistas quanto pela diversidade de seus trabalhos. Dos sintetizadores do rap de Djonga e Baco Exú do Blues à aspereza das guitarras de bandas como Carne Doce e Metá Metá, não há uma só proposta estética que una tudo o que vem sendo incansavelmente produzido. Porém, é possível identificar que, desde as jornadas de junho de 2013, marco de nossa história recente, muitas destas produções têm convergido para uma só direção: a reflexão política sobre os nossos dias.

Entre a música brasileira e a produção intelectual de nossos tempos, cujas discussões têm ecoado nas mais diversas esferas, há muitas intersecções e a partir delas podemos traçar um breve panorama de artistas e obras.

Paralelamente à reformulação de epistemologias, saberes e narrativas sob o olhar negro, cantoras e compositoras, em primeira pessoa, têm falado de vivências e subjetividades negras, pensando a diáspora africana (como em Um Corpo no Mundo, de Luedji Luna), expondo as experiências cotidianas de racismo (Cota Não é Esmola, de Bia Ferreira) e reivindicando a existência negra (Preta D+, de Tássia Reis).

Na esteira das discussões feministas, que, cada vez mais, ultrapassam as fronteiras do discurso universitário, Triste, Louca ou Má, da banda Francisco El Hombre, é didática ao expôr as marcas do machismo. A sexualidade feminina, outrora reprimida, é retomada por Ana Cañas no disco Todxs: “não se apavore com uma mulher que goza” (Lambe-Lambe). Fazendo um resgate histórico, Lilith, de Ava Rocha e Tulipa Ruiz, recupera a mitologia de uma das muitas mulheres apagadas da cosmologia ocidental.

As múltiplas identidades de gênero e as sexualidades dissidentes às normas, ao lado da filosofia queer, igualmente ganharam um espaço sem antecedentes na música brasileira. O corpo travesti de Linn da Quebrada é construído a partir das falhas e das subversões da linguagem de Pajubá, disco que ainda conta com Liniker, uma das mulheres transexuais de maior projeção de nossa geração. Enquanto Maria Beraldo, com afeto, revela-se lésbica a seus pais na canção Amor Verdade, Thiago Pethit retoma e celebra as clássicas representações da homossexualidade masculina no disco Mal dos Trópicos.

Pensando-se no direito à cidade, pauta incendiária das jornadas de 2013, Rodrigo Campos vem construindo um olhar a partir das periferias desde o disco São Mateus Não é um Lugar Tão Longe Assim, enquanto BaianaSystem se posiciona contra “a especulação imobiliária e o petróleo em alto mar”, em Lucro (Descomprimindo), transformação urbana que tem encontrado forte resistência popular nas capitais nordestinas.

Outras expressões da música independente, cuja dinâmica produtiva permite um menor tempo entre a composição, a gravação e a difusão de fonogramas, são respostas diretas a acontecimentos políticos recentes. Em Bate Mais, do coletivo Teto Preto, as mortes de Marielle e Matheusa são rememoradas, fazendo-se da lembrança um gesto político. O fuzilamento do carro de uma família negra pela Polícia Militar em abril de 2019, poucos meses depois, tornou-se mote para Emicida: “oitenta tiros te lembram que existe pele alva e pele-alvo” (Ismália).

Diante da brutalidade dos fatos cotidianos, por vezes, as estéticas de nosso tempo são áridas, como os sintéticos versos de Karina Buhr (“o tempo tá matador, precisando exercitar paz e amor”, da canção Sangue Frio) e Posada (“falta pão, falta livro, falta corpo, falta espírito, mas tijolo tu já lê, já entende”, Tijolo). A linguagem punk de Kiko Dinucci e os ambientes eletrônicos distópicos de Tantão e os Fita, por sua vez, parecem traduzir os estranhamentos, os deslocamentos e os mal-estares da pós-modernidade, que foram condensados por Letrux na ressignificação do termo “climão” (Noite Estranha, Geral Sentiu).

Em sintonia à vanguarda, a velha-guarda da música brasileira igualmente tem se voltado às questões políticas. O sóbrio olhar de Gilberto Gil, diante da “penúria”, da “fúria”, do “clamor” e do “desencanto” perante os últimos fatos (Ok Ok Ok) encontra paralelo em As Caravanas, de Chico Buarque, onde se expõem as tensões entre o asfalto e o morro no Rio de Janeiro. Contudo, alguns diálogos com a produção independente são ainda mais diretos, como na canção Mãe Gentil, de Marina Lima, que utiliza um sample de Gasolina (de Teto Preto), e nos contornos políticos dos últimos três discos de Elza Soares (A Mulher do Fim do Mundo, Deus é Mulher e Planeta Fome), cuja produção é assinada por músicos da nova geração.

Retomando os versos que abrem o disco Encarnado, de Juçara Marçal, que pode ser considerado um dos trabalhos precursores do filão político contemporâneo da música independente brasileira, “não diga que estamos morrendo, hoje não” (Velho Amarelo). Recusemos a morte tanto da música brasileira quanto da reflexão política. Nunca tivemos uma produção tão profícua e diversa, bem como jamais foram tão profundos os questionamentos sobre política e sociedade brasileira. Uma nova geração tem matizado o Brasil em todas as suas extensões, contradições e problemáticas. Quem quiser ouvi-la, deve acessá-la pelas beiras da indústria cultural sem o saudosismo que reverencia apenas os medalhões que já dominaram a hegemônica música popular brasileira. São outros tempos, outras questões. A nossa música, apesar dos pesares e, sobretudo, devido a eles, segue viva.

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Renato Gonçalves
Revista Bravo!

Pós-doutorando no IEB-USP. Doutor em Ciências da Comunicação (ECA-USP), mestre em Filosofia (IEB-USP) e pesquisador multidisciplinar. Docente ESPM-SP.