"Não se levar a sério é fundamental"
Selo brasiliense lança registro de show do Fellini de 1998. Cadão Volpato e Thomas Pappon falam sobre a experiência da banda
Registro histórico de um dos shows da primeira turnê de reencontro do Fellini 8 anos depois da banda ter acabado, em 1990, está no YouTube O Último Adeus de Fellini, lançado pelo selo Quadrado Mágico. O show de 98, em Brasília, reuniu, além dos 3 principais fellinis Cadão Volpato, Thomas Pappon e Jair Marcos, Tancred Pappon e Reka Ortega. Produtor do concerto na época, Wilton Rossi, que também era músico e tocava guitarra na Divine, conta que que a filmagem ficou esquecida: "Tivemos três ou quatro câmeras no palco, uma luz boa, um espaço agradável e de qualidade. Vimos um potencial de apresentar um registro de qualidade, algo raro para qualquer banda alternativa da época."
Hoje diretor do Centro Cultural São Paulo e escritor, Volpato disse à Bravo! que tem dois livros inéditos sobre a experiência com a música: À Sombra dos Viadutos em Flor, que deve ser lançado no segundo semestre e narra o início do Fellini e outro, recém-escrito, que explora o trabalho de sua outra banda, a Funziona Senza Vapore, e narra a mítica história dos registros que foram parar em Recife, nas mãos de um tal Chico Science — que tornou conhecida a sua Criança de Domingo. Science, por sinal, dizia que uma das principais influências do manguebit foi o Fellini.
Conversamos com Volpato e Pappon — os dois únicos presentes em todos os discos da banda — para falar um pouco sobre os registros e histórias do Fellini, que coleciona novos fãs até hoje e foi um marco no pós-punk paulista.
Qual a sua lembrança deste show do Fellini em Brasília em 98? Era mais uma das despedidas da banda?
Cadão Volpato: Não, era o primeiro reencontro depois do fim, que acontecera em 1990. Minhas lembranças daquele show são boas. Era a minha segunda vez em Brasília. Brasília é uma cidade de Marte.
Thomas Pappon: Foi durante a primeira grande reunião da banda após minha mudança para a Europa. Fizemos dois shows em São Paulo, um em Brasilia e um no Rio. Foi um momento especial. Fazia nove anos que não tocávamos juntos.
Chegou a participar do processo de reedição e digitalização desse show?
Volpato: Não. Nem sabia da existência dessa gravação.
Pappon: Não.
Quando vocês lançaram o primeiro disco, em 85, já faziam quase 10 anos de atuação da Warner Music no Brasil, era o ano de estreia do Rock in Rio, ou seja, havia uma tendência crescente de internacionalização da música popular (ao mesmo tempo, claro, que um impulsionamento do chamado rock BR como gênero mais jovem). Como o Fellini se encaixava nessa equação, já que era um dos grupos a propor a ponte entre MPB (samba, bossa nova, etc) e rock?
Volpato: Nenhuma gravadora jamais mostrou algum interesse verdadeiro por aquele trabalho. Estávamos muito à frente do nosso tempo, essa é que é a verdade. Imagina em relação às gravadoras.
Pappon: No final dos anos 70 a MPB ficou muito chata e a juventude começou a se ligar bastante no som de fora — principalmente nas bandas de rock, punk e pós-punk britânicas e americanas, pelo menos em São Paulo e no Rio. O Fellini foi um fruto disso, da vontade de fazer um som inspirado nas bandas incríveis de fora. Mas a gente sempre curtiu MPB. Foi meio inevitável que rolasse a mistura.
Cadão fala que o Fellini era “independente até do sucesso” e que se recusaram a seguir um caminho rumo ao mainstream. Hoje em dia, seria diferente? O Fellini seria outra banda — ou se encaixaria melhor no cenário — pós reorganização da indústria musical com a internet?
Volpato: Nunca vivemos de música. E hoje também não viveríamos. Então não sei como seria. Tudo está disperso demais. E talvez não seja ruim.
Pappon: Nunca ‘recusamos’ seguir o mainstream, é que não sabíamos como. Sério. Fizemos o que dava na telha. Bancamos gravações quando tivemos de bancar. Gravamos em porta-estúdios quando não tinha outro jeito. Ainda bem. O segundo disco, Fellini Só Vive Duas Vezes, só saiu porque a gente pensou ‘foda-se, vai assim mesmo’. Ninguém lançaria um disco com pinta de demotape gravada em casa naquela época. A gente lançou.
O quanto a ECA foi importante para a cena do pós-punk em São Paulo? Havia relação entre pós-punks da ECA e os punks da Freguesia do Ó?
Volpato: Os únicos punks da Freguesia do Ó que conheço são os daquela música horrível do Gil (e olha que eu acho ele admirável). A ECA foi importante para umas 30 pessoas — o tamanho do pós-punk naquele tempo. Acho que o que nos atingiu foi a energia centrífuga dos punks. Mas eu sempre gostei de melodia, não dava para ser punk e dançar o pogo no meio da rapaziada. E quase não havia mulheres entre eles.
Pappon: Se houve, foi pela Sandra [Coutinho] e a Ana [Machado], das Mercenárias. Elas eram as únicas pessoas da ECA que frequentavam shows punks. Uma vez vi um show delas numa escola em algum subúrbio na zona oeste de São Paulo num sábado, só com bandas punk. Foi a única vez que vi um show punk num contexto punk. Em 83/84, houve lugares como o Napalm, Carbono 14, Madame Satã e Ácido Plástico (na zona norte), em que houve uma aproximação entre punks e pós-punks. Era uma misturas de classes. Punks moravam no subúrbio, Osasco, Santo André, São Caetano, Freguesia do Ó, etc…Os pós-punks moravam em Pinheiros, Butantã, Perdizes, Santo Amaro, Campo Belo…
Aliás, cabe falar numa “cena” pós-punk? Havia um horizonte comum entre vocês e outras bandas como Último Número, Finis Africae, Akira S & As Garotas que Erraram, Voluntários da Pátria, Picassos Falsos, Mercenárias, etc?
Volpato: Sim, havia. Mas éramos todos muito diferentes. No Akira S e nos Voluntários estavam nossos amigos. As Mercenárias me pareciam mais punks do que qualquer outra coisa (eram impactantes, claro). Confesso que conheci bem pouco as outras bandas, mas andavam por ali, na mesma cena.
Pappon: Sem dúvida. Todas essas pessoas ouviam Joy Division, Bauhaus, The Cure, Gang of Four, Clash (menos eu)… e tocavam nas mesmas casas.
Os anos 80 costumam ser bastante lembrados pelo uso de cocaína (também, claro, entre artistas) — mas como, lembra o Bressane, o Fellini estava mais para o LSD e os beats do que para pó e álcool. Concordam com ele? A lisergia foi um fator importante para a banda?
Volpato: Não. O caso do LSD (temos uma música com esse nome) foi uma experiência única e pessoal, não tem nada a ver com a banda. Apenas relatei um episódio, como se fosse um Aldous Huxley atacado pela mosca da poesia. Quanto aos beats, sempre gostei muito deles, por aquilo que representam.
Pappon: Foi para o Cadão. LSD e Chocomilk. Já o resto da banda era mais ligado em álcool e pó mesmo.
O Fellini antecede uma tendência que hoje é consagrada — vide o Nobel de Dylan e o Pulitzer de Kendrick Lamar — da união da música e da literatura. Como vêem essa relação? A música tem o mesmo tamanho da literatura?
Volpato: Sempre achei que não. Mas foi desse atrito entre música e literatura que nasceram minhas letras. Hoje tenho pensado muito sobre o assunto. Escrevi dois livros de não-ficção a respeito. O primeiro, À Sombra dos Viadutos em Flor, narra o começo do Fellini, de 1983 a 1985, e sai agora no fim do ano. O segundo, sobre a outra banda que tive, o Funziona Senza Vapore (e seu disco perdido e reencontrado, de onde saiu a música Criança de Domingo, gravada pelo Chico Science), eu acabo de escrever.
Pappon: Não sei. Tendo a achar que o Fellini é importante pra vida de muita gente por causa das letras e da música, ambas totalmente únicas. O Cadão escreveu contos, romances e ensaios, mas mereceria um prêmio de literatura fácil pelas letras do Fellini.
Faz parte do Fellini uma atitude de não se levar tão a sério que tem feito falta no cenário musical atual. Qual era o papel desse humor na banda?
Volpato: Parodiando uma frase do magnífico À Sombra do Vulcão, de Malcolm Lowry: “Não se pode viver sem humor”. É uma coisa em que sempre botamos fé, quando usada com moderação.
Pappon: Se tem uma coisa que aprendi emulando letras do Cadão na minha banda The Gilbertos, é essa: não se levar a sério é fundamental no business da musica pop.