Na escassez, a fartura

CRÍTICA: “Taurina” (2018), de Anelis Assumpção, nasce como um desejo

Renato Gonçalves
Revista Bravo!
3 min readFeb 23, 2018

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Capa do disco "Taurina", de Anelis Assumpção, com pintura de Camile Sproesser.

A fome e a abundância são temas universais na cultura ocidental. Em tempos de infértil e difícil agricultura, são valorizadas imagens de fertilidade e opulência, como as formas graúdas que compõem a clássica Vênus de Willendorf ou as figuras femininas do Renascimento. Quando a balança pende para o excesso e não para a falta, como ocorreu logo após o período industrial, marcado pelo apelo ao consumo desenfreado e a proliferação de opções de mercado, a excessiva e doentia magreza se torna o padrão ideal a ser alcançado, como nos revelam os corpos das esqueléticas modelos do mundo da moda. Sob o signo de uma extrema e generalizada escassez no Brasil da segunda década dos anos 2000, nasce Taurina, terceiro disco de Anelis Assumpção.

Vênus de Willendorf (circa 28.000 a.C. — 25.000 a.C.)

Não faltam sabores, cheiros, sons, e, principalmente, afetos nas treze faixas que compõem o disco lançado neste mês de fevereiro disponibilizado nas plataformas digitais e também em CD e LP. Como no banquete de Platão, onde se versou sobre o amor nas suas mais diversas formas, Anelis Assumpção explora os mais diversos aspectos do afeto: a escuta do outro (Mergulho Interior), a saudade (Gosto Serena e Caroço), a ebriedade de uma paixão (Amor de Vidro e Moela), as imbricações entre o sexo e o amor (Chá de Jasmim). Cercada de amigos, Anelis recria sonoramente o ambiente de acolhimento e troca que tem estruturado a sua geração de músicos ao inserir áudios reais de WhatsApp trocados com seus colegas em meio às faixas, levando o ouvinte a um cenário de extrema cumplicidade e intimidade.

Os arranjos elaborados pelo veterano Beto Villares e co-produzidos por Zé Nigro exploram uma ampla gama de timbres colorindo as imagens poéticas das canções do disco, majoritariamente compostas por Anelis. Sendo um dos arranjos mais completos do disco, a produção de Escalafobética, feita em parceria com João Donato, enriquece a descrição de uma personagem que "abelharainhamente" segue seus dias ao empregar baixo, bateria, guitarra, percussão, trombone, kalimba e mellotron, além dos vocais de Thalma de Freitas.

Embora tudo pareça doce e delicioso, o aparentemente edulcoramento do cotidiano não mascara o que se carece. Exposta como fratura a ser preenchida, a ausência é toda hora lembrada, como em Pastel sem Recheio (“receio meu coração dentro / nada de recheio no recreio”), Caroço (“tá sem sal, sem tempero, sem gosto”) e Água (“Se água acabar, vou te deixar…”). Embora se fale muito no universo culinário, essa fome não é só de comida, como está posta na metáfora de um grande bolo social em “Receita rápida”, única canção pinçada do repertório de Itamar Assumpção (composta em parceria com Vera Motta): “quem na massa põe a mão?”.

Do jeito “tão insalubre que essa vida anda” (Segunda a Sexta), Taurina é um disco temático que extrapola os motes “comida” e “astrologia” que, além de correrem o risco de soarem previsíveis, justificaram, desde o início, o projeto dentro da plataforma Natura Musical, patrocinadora do disco. O novo trabalho de Anelis Assumpção é a expressão de um desejo genuíno — e talvez o único que se pode ter — frente a toda a carência que está posta aí. Onde há falta, há desejo.

Taurina, de Anelis Assumpção, está disponível nas plataformas digitais de streaming e no YouTube.

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Renato Gonçalves
Revista Bravo!

Pós-doutorando no IEB-USP. Doutor em Ciências da Comunicação (ECA-USP), mestre em Filosofia (IEB-USP) e pesquisador multidisciplinar. Docente ESPM-SP.