“Nanette” é a vingança no stand-up comedy

Monólogo da australiana Hannah Gadsby põe (finalmente) os homens brancos heterossexuais no seu devido lugar

Igor Zahir
Revista Bravo!
3 min readJul 18, 2018

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Quando assistir aos primeiros 30 minutos do stand-up comedy Nanette, na Netflix, é provável que um enorme incômodo tome conta de você, por razões que vão de um extremo a outro: ou vai se sentir irritado com piadas de mau gosto que usa para definir qualquer outra pessoa fora dos padrões heteronormativos, ou vai achar um tremendo absurdo, sem graça nenhuma, e vai lembrar que, sim, tudo que a comediante Hannah Gadsby fala acontece fora do palco. Digamos, em sua vida real, e na de tantas mulheres lésbicas, que fogem dos padrões estéticos convencionais e sentem frequentemente na pele algo relacionado ao gênero.

Gadsby não economiza nas críticas afiadas. A australiana solta frases homofóbicas que associam a AIDS aos gays (com uma chamada para sua terra natal, a Tasmânia, onde a homossexualidade era proibida até 1997), as lésbicas e feministas ao recalque e frustração sexual — mais especificamente, àqueles casos em que elas são rotuladas como “mal comidas”; relembra uma ocasião em que um cara confundiu-a com um homem ao jurar que ela estava dando em cima da namorada dele; e faz menção até mesmo aos bebês carecas cujos pais enfiam uma faixa azul na cabeça como se fosse pra segurar o cabelo e deixar claro que aquele é um menino.

Ainda sobre a sociedade preconceituosa, ela recorda uma situação constrangedora em um voo onde a aeromoça confundiu-a com alguém do sexo masculino. E quem dera Gadsby fosse um homem branco, como ela diz com sarcasmo, visto que sua vida seria muito mais fácil. Seria mais bem paga, viveria mais tranquilamente, e não teria que passar por tantos absurdos.

Nessa parte do show, é involuntário aplaudir do lado de cá da tela, mesmo sabendo que a humorista não faz a mínima ideia de que você existe. É quando você percebe que, finalmente, uma mulher colocou os colegas humoristas brancos cisgêneros em seus devidos lugares. É impossível não imaginar uma batalha surreal de tiradas inteligentes de Gadsby, contra as piadas machistas e homofóbicas que alguns nomes famosos (principalmente brasileiros) costumam usar para arrancar risadas e dinheiro do público. Como tal duelo não vai sair da minha mente fértil, voltemos para o foco da resenha.

Faz refletir também o quanto o ser humano espera que os grupos considerados minorias se humilhem diante da plateia para soar engraçados. Gadsby conta que uma fã reclamou, no final de uma apresentação, que não teve conteúdo lésbico o bastante. Também revela, no palco da Ópera de Sydney, que não vai mais fazer piadas com as questões de sua existência. Ponto para ela, que fala isso como um desafio, como quem diz “ah, você quer que eu rasteje e me ridicularize pra conseguir sua gargalhada? Então toma essa na cara”.

Certamente quem assistiu ao seriado-sucesso Please Like Me ficou com os olhos brilhando ao se deparar com Nanette. Na obra australiana ela era Hannah, paciente deprimida do hospital psiquiátrico com jeito introvertido e sarcástico, que fez muita gente morrer de rir (e de chorar) nas cenas com a mãe de Josh, o protagonista.

Nanette funciona até mesmo como um spin-off da Hannah de Please Like Me. Como se a personagem não aguentasse mais e tivesse pulado da tela a fim de colocar pra fora tudo o que ela e outras mulheres LGBT+ ouvem desde pequenas. Gadsby se diz exausta e avisa que vai parar de fazer comédia — pelo menos a autodepreciativa. Se for mesmo verdade, esse stand-up se torna ainda mais especial, como uma obra-prima que ela deixa para cada um de nós que se sentiu representado. Sem falar na utilidade pública: todo homem hétero deveria assistir antes de esboçar a próxima piada, seja ela nos palcos da vida ou nos grupos de WhatsApp.

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Igor Zahir
Revista Bravo!

Art advisor. Comentarista da rádio CBN. Crítico cultural. Colunista da Bravo!.