Negro drama

Grace Passô e Marcio Abreu falam sobre a peça “Preto”, que a Cia. Brasileira de Teatro apresenta no Sesc Campo Limpo

Andrei Reina
Revista Bravo!
9 min readDec 1, 2017

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Foto: Nana Moraes

Incômodos e maravilhamentos históricos estão na origem de Preto, peça que a Companhia Brasileira de Teatro apresenta no Sesc Campo Limpo, na zona sul de São Paulo. A denúncia do discurso erguido sobre o racismo estrutural e o reconhecimento de subjetividades insurgentes estão na base da encenação e da dramaturgia, elaborada pelo diretor Marcio Abreu com as atrizes Grace Passô e Nadja Naira.

“É impossível partir de temas como o racismo no Brasil e isso não significar um incômodo atroz. Ao mesmo tempo, mergulhar em questões ligadas às experiências das negras e negros no nosso país é perceber a potência e luz da negritude brasileira”, explica Passô. Mas ainda que o jogo seja de claro-escuro, o horizonte é sempre negro: é na “pretura como modo civilizatório”, como se repete desde o início, que reside a aposta de Preto. “Estamos falando daqui, de um país preto que se aquilomba cada vez mais e de formas distintas”, escreve Passô no programa da peça.

Na dramaturgia, o uso frequente da repetição e da troca de palavras em frases-feitas — procedimento que Abreu também utilizou no espetáculo Nós, com o Grupo Galpão — acaba por rachar aos poucos o verniz televisivo que cobre o tom dos diálogos. Às confissões artificiais, perguntas inconvenientes e números musicais hiperbólicos somam-se microfones, câmeras, telões e músicos à esquerda do palco na ambientação de um talkshow fragmentado.

A subversão do discurso midiático, que achata identidades, se completa com monólogos que exprimem o desejo de autodeterminação. Ele aparece em chave negativa no solo da atriz Cássia Damasceno, no qual certas expectativas que pairam sobre as mulheres negras —de que sambem, cantem e posem, no caso — são recusadas. E positiva na ode ao amor entre mulheres que Grace Passô, enlaçada em Renata Sorrah, faz ao descrever com riqueza de detalhes um sexo oral. “Alguma pergunta?”, dirige-se à plateia ao final das lúbricas imagens, seguida de pausa longa o bastante para que alguém se manifeste.

Esta insurgência individual encontra par, em Preto, em aspirações coletivas de transformação. Elas são evocadas, por exemplo, na descrição das já célebres fotografias de Rafael Braga contra um muro pichado com a frase “Você só olha da esquerda pra direita, o Estado te esmaga de cima pra baixo” e da secundarista Marcela tomando de volta uma carteira escolar das mãos de um policial militar — imagens que se tornaram símbolos de solidariedade e resistência contra a opressão.

É também com aspiração coletiva que em diversos momentos da peça — montada em uma tenda que reproduz um palco italiano, que opõe plateia e intérpretes — os atores comentam que melhor seria se todos ali estivessem em roda. Isto seria facilmente alcançado caso as cadeiras fossem arranjadas ao redor do tablado. A opção por não fazê-lo, no entanto, é significativa. Os esbarrões entre atores brancos e negros denunciam, do palco, que a comunidade que o formato de arena proporcionaria no período de duração de um espetáculo não se estabeleceu na sociedade.

Terminada a peça, os espectadores dão de cara, do lado de fora da tenda, com uma grande roda de cadeiras e uma fogueira acesa ao centro. Não se trata de um alívio para as noites frias do estranho verão paulistano, mas de uma sugestão. Afinal, é no campo aberto da história, em uma disposição desierarquizada de indivíduos, que se resolvem os problemas que a cultura sozinha pode apenas iluminar — ou, no caso de Preto, escurecer.

Foto: Nana Moraes

A Bravo! conversou com o diretor Marcio Abreu e a atriz Grace Passô, também dramaturgos, sobre Preto. Eles comentaram o processo de trabalho, as escolhas da encenação, a composição do texto e o horizonte político da peça. “Entender a pretura como modo civilizatório significa olhar através da experiência da negrura e não para a experiência da negrura”, diz Passô. Leia a entrevista completa a seguir.

Parece significativo que após uma investigação mais ampla em Projeto Brasil, a companhia se concentre agora na questão racial. Há uma tradição de intérpretes do Brasil que identificaram na escravidão a principal marca da formação do país — como Joaquim Nabuco, citado no programa da peça. Qual é a relação entre o trabalho anterior e Preto?

Marcio Abreu: Preto é um desdobramento direto do Projeto Brasil, tanto em relação às linguagens que baseiam a construção dramatúrgica e a encenação como nos tensionamentos com o real, naquilo que a peça propõe de diálogo com questões que estão presentes na vida das pessoas.

É importante dizer que, assim como Projeto Brasil, Preto não é uma peça que parte de um tema. Projeto Brasil não é uma peça sobre o Brasil, tampouco Preto é uma peça sobre a negritude, a escravidão ou o racismo. Ambas são peças [elaboradas] a partir do atravessamento por questões pungentes. E elas emergem para nós do fato de termos parado durante um tempo, pouco mais de um ano, para pensar o Projeto Brasil. E pensá-lo foi tentar entender como as questões do país mexiam com a gente, transformavam o nosso olhar.

Ambas as peças são reações artísticas a essas questões todas. No início da pesquisa para a criação do Projeto Brasil é que eu entendi que essa peça teria um primeiro desdobramento — que seria o Preto. Eu já tinha esse título antes mesmo de começar a ensaiar o Projeto Brasil. Então a perspectiva de criar essa peça existe desde 2012, 2013.

Em um momento da peça, sua personagem reclama que só a chamam para falar sobre questões raciais. Por outro lado, a peça trata justamente disso, mas parece torcer o assunto até que ele diga o que ainda não é ouvido. O trabalho surge deste incômodo específico?

Grace Passô: Eu acredito que esse trabalho surge de muitos incômodos mas acredito que também surja de maravilhamentos. É impossível partir de temas como o racismo no Brasil e isso não significar um incômodo atroz. Ao mesmo tempo, mergulhar em questões ligadas às experiências das negras e negros no nosso país é perceber a potência e luz da negritude brasileira.

Foto: Nana Moraes

A peça parece apostar na “pretura como modo civilizatório”, como é repetido no início. Quais experiências vocês tinham em mente ao sugerir um outro modo de ocupar o mundo?

Grace Passô: Entender a pretura como modo civilizatório significa olhar através da experiência da negrura e não para a experiência da negrura. Significa olhar a manifestação de negritude como uma linguagem que dialoga com nossa história, e não apenas sofre. Significa reconhecer que a negritude não contribuiu para a formação brasileira mas sobretudo a fundou. E não digo isso interessada na ideia de supremacia, mas ciente de sua consistência formadora. Significa olhar para as culturas negras não apenas como aquilo que resiste em relação a algo que tenta as extinguir mas sobretudo como linguagens, modos de convivência, formas de sociedade.

Para mim, o mundo já é ocupado por experiências negras, portanto não se trata de ocupar o mundo de “outra forma”, na medida em que ele já é ocupado por uma pretura, embora isso não seja reconhecido por parte da sociedade.

Marcio Abreu: Me parece bastante evidente que as lutas das minorias — que no caso da população negra, no Brasil, é a maioria — e as lutas históricas da negritude brasileira abriram com muito esforço, inteligência e articulação espaços na estrutura rígida e hipócrita de domínio e de hegemonia das elites no Brasil. E a gente não pode descansar, porque essa é uma luta constante.

A pretura, a negrura, como diz a professora Leda Maria Martins, felizmente tem articulado sua voz de modo muito presente, transformando pouco a pouco a paisagem do poder no país. Mas é importante dizer que a luta dos dos negros e das negras em movimento não são recentes. São históricas, são antigas e se potencializam cada vez mais, promovendo transformações que a gente, se tudo der certo, vai presenciar com muito vigor.

Se não estou enganado, há no tom de voz dos personagens algo de televisivo, o que é salientado pelos microfones, o telão, as perguntas inconvenientes de talkshow, o músico à esquerda do palco. Há uma tentativa de “desmontar” esse aparato midiático?

Marcio Abreu: A questão da imagem social ou das imagens sociais — como cada é um visto, considerado ou percebido na sociedade — passa sem dúvida por mediações, tanto nas redes sociais quanto na televisão e outros meios de comunicação de massa.

Na peça, como partimos da vivência de cada um dos atores, foi indesviável para nós pensar como a imagem pública de cada um agia em relação aos temas e como articulá-las na dramaturgia da peça. Não é exatamente uma tentativa de desmonte do aparato, mas de questionamento da imagem em vários âmbitos.

Grace Passô: Há tentativas de transbordar a imagem social de cada um, tentativas de implodir e construir visões sobre o outro e isso é feito também através de uma série de perguntas colocadas em cena. Acredito que o inconveniente esteja na impossibilidade de respondermos perguntas sobre nós mesmos com a mesma precisão como as perguntas se impõem.

Acho que até pode ser interessante pensar nas formas midiáticas para reconhecermos a superficialidade de nossos diálogos na atualidade mas é também interessante pensar que a superficialidade da mídia ameaça todo tipo de diálogo de nosso tempo, inclusive os privados.

Foto: Nana Moraes

O texto da peça menciona algumas vezes que seria melhor que atores e plateia estivessem em roda. De fato, do lado de fora havia uma, com uma fogueira. Por que a escolha de colocá-la fora da peça?

Marcio Abreu: As ideias ao redor de roda, espiral, gira, giro, deslocamento, movimento — a ideia de que a construção de pensamento se dá nos deslocamentos e não na imobilidade — está na essência e está em toda a construção da peça. A imagem de uma roda vazia e o fogo dentro dela me pareceu uma perspectiva de instalação, que sugerisse questões essenciais que perpassam a experiência de ter feito essa peça e reverberam para nós como uma sugestão para o mundo, o que é diferente de representar uma roda dentro da peça.

A dramaturgia foi escrita a seis mãos. Como o trabalho foi articulado? As cenas surgiram de improvisações ou chegaram antes?

Grace Passô: As cenas nasceram em sala de ensaio, algumas vezes a partir de propostas previamente elaboradas, outras a partir de improvisações. Os materiais que estão na composição final são resultado do estudo, elaboração e contaminação dessas propostas e sobretudo do decantamento de todas experiências que vivemos em sala de ensaio.

E qual foi a importância das residências artísticas em diferentes lugares do país e no exterior para o processo de criação?

Marcio Abreu: Um processo de criação realizado em etapas tem sido para mim uma condição muito favorável. Eu tenho tentado, nas minhas últimas criações, realizar períodos de trabalho concentrados com intervalos entre eles. No caso de Preto essas etapas foram em processos de residência artística, o que permite, para nós artistas, condições de trabalho e contato com o público bastante vigorosos. Em todas as etapas a gente criou modos de diálogo com o público, mostrando cenas e processos em criação. Em todos os momentos, desde o mais embrionário, tivemos a presença do público — em ensaios abertos, demonstrações de processos, conversas públicas, oficinas. Então o público é nosso parceiro, as pessoas do público nas diversas cidades em que a gente passou no país e fora do país são parceiros. [Eles] acompanharam a dinâmica de criação de Preto e certamente essa fricção influenciou bastante no que é o trabalho hoje e no que virá a ser.

Preto

Quintas, sextas e sábados, às 20h. Domingos, às 18h. Até 17/12. Ingressos: R$ 9 a R$ 30.

Sesc Campo Limpo: Rua Nossa Senhora do Bom Conselho, 120 — Campo Limpo — São Paulo.

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