O óbvio não oculto

Arnaldo Antunes lançou no fim de maio, nas plataformas digitais, o seu novo álbum, RSTUVXZ ou Rock Samba, um subtítulo autoexplicativo. Em entrevista à Bravo!, o poeta, músico e compositor fala do estímulo para fazer esse disco e da sua relação com a tecnologia e o mundo de hoje

Helena Bagnoli
Revista Bravo!
11 min readJul 4, 2018

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Foto: Henk Nieman

Escolhi esse título para a entrevista com Arnaldo Antunes inspirada na última frase da música Um Índio, de Caetano Veloso: “Surpreenderá a todos não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto, quando terá sido o óbvio”, porque o que mais me chama a atenção no trabalho de Arnaldo é o frescor com que ele narra as coisas do mundo, “esse olhar quase infantil”, como ele mesmo define. É grandioso pensar no quase haicai que é a frase “as árvores são fáceis de achar, ficam plantadas no chão” ou na imagem “o som do gelo derretendo” e agora no seu último disco: “tempo é tempo, por exemplo, primeiro dia de aula, mas amanhã, só amanhã”. Só ele poderia escancarar essas obviedades com tanta bossa. O mote da conversa era o lançamento do novo álbum, RSTUVXZ , e aconteceu num fim de tarde na casa de Arnaldo, em um dia que ele tinha reservado para entrevistas para falar do trabalho. Felizmente, eu era a última da fila e o assunto rendeu bem mais do que isso.

Você costuma falar da sua prática antropofágica pessoa de misturar os vários territórios musicais. De onde você acha que vem essa liberdade?

Eu acabo transitando entre poesia, música, vídeo,artes visuais, essa ideia de não estar dentro de uma linguagem, no meu caso, acho que em parte vem do meu temperamento, da minha natureza. Eu cresci fazendo links entre diferentes linguagens e escutando música de vários gêneros, então foi natural eu misturar tudo, é de formação. E agora acho que tem uma coisa de adequação aos tempos em que a gente vive, que é a crise dos gêneros, o momento de resgates, o trânsito entre as diferenças foi se tornando cada vez mais natural. No meu caso agora, nesse novo disco (RSTUVXZ) eu tive vontade de confrontar dois gêneros, o samba e o rock.

Esse namoro entre o samba e rock vem se desenhando ao longo do seu trabalho. Como foi a decisão de reuni-los em RSTUVXZ?

Eu venho compondo coisas próximas aos dois universos há muito tempo. Há uns anos eu tive o desejo de fazer um disco juntando tudo, o nome que eu tinha pensado na época era Bipolar, se fosse um vinil seria um lado só de rock e outro só de samba, mas o projeto acabou sendo adiado. Mas as coisas que eu vinha fazendo recentemente iam para um lado ou para o outro. Eu vinha compondo sambas com o Cesar Mendes, com a Marisa (Monte), com Carlinhos (Brown), Pedro Baby, Pretinho da Serrinha, e rocks com o Jeneci (Marcelo), o Ortinho, enfim…As coisas vem pingando e um dia a gente foca nelas. Esse disco é fruto de uma decantação a longo prazo.

E qual foi o estímulo para juntar tudo agora?

Eu pensei que fazia tempo que eu não cantava berrado como na época dos Titãs ou em algumas fases da minha carreira solo e me deu vontade de cantar assim de novo, de resgatar um pouco isso. Ao mesmo tempo, tinha muito samba pronto, aí me lembrei da ideia antiga que eu tinha abandonado e decidi que ia fazer um disco alternando rock e samba, de forma a valorizar os atritos. A energia deles no fundo é muito parecida, de expansão dos sentidos, é um desejo de expressão e liberdade que as duas linguagens possibilitam.

Você fala em atritar o samba e o rock, como é isso?

Eu já vinha fazendo coisas muito próximas a isso, como a releitura de sambas antigos em forma de rock, como A razão dá se a quem tem (Noel Rosa) , Vou Festejar ( Jorge Aragão), ou Judiaria, do Lupicínio ( Rodrigues), que na verdade não é um samba é uma guarânia, mas é desse universo do samba.

E movimentos contrários também, como pegar o Exagerado do Cazuza, que é um rock e ler como uma bossa nova, nos meus discos aparecem coisas assim.

Eu não tinha desejo de fazer fusão, como o samba-rock, que acabou virando um outro gênero, porque essa mistura já foi muito bem feita pelos Novos Bahianos, Benjor, Tom Zé, a própria Tropicália, ou mesmo o Raul Seixas e a sua música Mosca na Sopa, em que ele faz o refrão como samba e a estrofe como rock.

Eu queria fazer samba-samba e rock-rock.

O que tem de diferente nesse disco?

Eu parti de um conceito sonoro. O mais comum na minha produção é eu fazer uma coletânea eclética, livre, coisas que vou compondo e que acabo vendo ali um disco, mas tem alguns discos meus em que eu penso primeiro num conceito sonoro, que foi o caso desse. Teve dois discos antes desse em que eu pensei dessa forma, que é o Qualquer, que foi o primeiro deles, que só tem instrumentos de corda e piano, sem percussão, sem bateria, privilegiando voz e violão, de certa forma uma volta à canção, realçando as letras. Depois teve o Iê-Iê-Iê , alí eu parti de uma ideia de releitura desse gênero que existiu nos anos 60 e que foi extinto, ninguém mais fazia iê-iê-iê, foi um jeito de resgatar, fazendo uma leitura própria e contemporânea. E agora o RSTUVXZ, R de rock, S de samba e o UVXZ, pois no meio do disco em diante aquilo se desdobra, outros gêneros vão pintando em pitadas, mas essencialmente o que norteia o disco é o rock e o samba.

E a banda é a mesma dos últimos trabalhos?

Tem essa graça, tanto os sambas como os rocks foram gravados com a mesma formação, Betão Aguiar, Chico Salém, Edgard Scandurra, Curumim e o André Lima.

Tem participações especiais de um lado e de outro: dois rocks que o Fernando Catatau toca, tem dois sambas que o Léo Mendes toca, enfim, tem uma variedade, mas a formação básica é a mesma, por um desejo de ter uma identidade de arranjos, apesar do atrito, de serem gêneros diversos se alternando. Eu queria que o samba tivesse uma leitura original, que fosse o meu samba com a banda, acho que isso dá uma coesão para o disco.

Como foi a escolha do Curumim para ser o produtor musical do Disco?

O Curumim toca comigo há muitos anos e eu vejo ele crescer cada vez mais no trabalho solo dele, o último disco, Boca, eu acho incrível. E, nos últimos anos, ele começou a produzir discos de outras pessoas com resultados surpreendentes. Também por causa do swing, das ideias de programação que ele tem. O produtor é uma peça essencial de um disco.

E teve um pedido específico?

Eu falei com ele que, assim como ele fez no disco dele, eu também queria vinhetas que emendassem uma faixa à outra. Ele fez isso de maneira genial, porque ao mesmo tempo que ameniza a passagem de um samba para um rock ou vice-versa, também acentua a diferença, e às vezes a vinheta é uma batida de samba e entra um rock, às vezes é uma guitarra e entra um samba, tem uma brincadeira aí que ficou muito rica. E foi incrível, ele encampou essa coisa de produtor de um jeito maravilhoso, inventivo, de pensar nos arranjos junto, dar sugestões, timbragens.

Destaquei três músicas do álbum para você comentar: A Samba, Amanhã, só amanhã e Pense Duas Vezes…

A samba — É a minha homenagem às mulheres do samba, e o título tem essa brincadeira de colocar um artigo feminino para uma palavra de gênero masculino apesar de acabar com a. O samba é um universo masculino, mas tem essas mulheres incríveis que apesar de terem tido muita dificuldade em penetrar nesse mundo,conseguiram e são geniais.

Amanhã só amanhã é uma reflexão sobre o tempo, o óbvio. Eu gosto de revelar coisas coisas que são evidentes mas que por isso mesmo não estavam sendo percebidas. Minhas canções, meus textos, poemas trazem esse olhar quase infantil, de estranhamento e surpresa com as coisas do mundo.

Pense Duas Vezes: O Jeneci(Marcelo) gravou ela primeiro e fez uma versão muito diferente de quando a gente compôs , ele fez as estrofes bem lentas e com outra formação instrumental e pesava no refrão, que virava rock’ n roll. Era quase uma colagem , lembrando algumas músicas dos Mutantes e o Ortinho fez ela como rock mesmo, eu adoro essa canção, é uma parceria nossa que eu acho o resultado muito feliz e há anos que tenho vontade de gravá-la, então decidi que esse seria um dos rocks do disco.

Você esteve na Índia há algum tempo e de lá voltou com várias canções do disco anterior Já É. O que mais veio da Índia com vc?

A riqueza de conviver com uma cultura nova, o ambiente, o cheiro, o trato com as pessoas me enriquece em qualquer viagem. Lá tinha um ritmo que trazia à superfície uma outra sensibilidade, talvez eu tenha voltado de lá mais contemplativo, lá você convive com um outro tempo e isso tem se tornado quase uma necessidade na minha idade, ter menos urgência, eu tento, mas claro que não é sempre possível. Eu sou muito indisciplinado para meditar todos os dias ou seguir alguma doutrina, não é uma coisa que me retém, que doma a minha atenção.

Você compõe mais nas férias?

Sim, eu entro em férias e tenho uma disponibilidade emocional que acaba me fazendo fazer muito mais coisas. Eu tô ali à toa e dali costumam sair as coisas mais importantes. Em geral as férias são sempre muito férteis e produtivas.

Você é obsessivo quando está produzindo?

Quando eu estou gravando um disco eu sou totalmente obsessivo, eu fico mergulhado naquilo e quero ver andar, vou dormir pensando naquilo, já acordo louco para ir para o estúdio de novo, é uma entrega exclusiva, mas quando estou fazendo show, trabalhando na estrada um disco eu fico mais solto. Mas qualquer finalização de processo, de um livro, de uma exposição, de qualquer trabalho eu fico muito obsessivo.

foto: Henk Nieman

O poema e a canção, em que momento eles se juntam?

Não tem muito uma regra, eles são muito próximos. Inicialmente tem coisas que eu já sei que são para ser cantadas, outras que eu sei que são para ser lidas, o destino da coisa já está um pouco na origem, apesar disso as exceções foram se tornando cada vez mais numerosas. Tem coisas que fiz para ser poema, mas depois alguém musicou ou até eu mesmo, tem coisas que fiz como canção e depois peguei um verso e transformei em um poema visual… e o jeito de fazer canção também é muito irregular, as vezes eu faço só melodia, as vezes faço a letra junto, é tudo permanentemente em processo.

A palavra é o seu porto seguro?

A palavra é de onde eu me aventuro em direção às outras linguagens. Ela é o que conecta a minha produção e as várias maneiras de eu me expressar, mas eu não saberia dizer se ela me traduz mais do que a voz, a atitude, a performance, eu cantando para milhares de pessoas em cima do palco …porque tudo isso traduz muito de mim.

Você tem um poeta de cabeceira?

Tenho tantos: Fernando Pessoa, Haroldo ( de Campos), Leminsky (Paulo), Décio (Pignatari), Augusto ( de Campos) estão sempre por perto, mas tem tantos…é um barco cheio de gente.

Os meios digitais, como você os vê?

Eu peguei a transição do analógico para o digital. Eu gravava músicas pensando um arranjo e registrando no estúdio, hoje você grava usando programas de gravação que são matéria-prima para você editar e brincar depois. A gente passou a pensar música de outra forma. Você pode gravar em vários canais e escolher trechos e montar, é um trabalho de colagem muito mais evidente do que era antigamente. Para as publicações tem se milhares de fontes e tudo de graça e roda e inverte, negativa, enfim as possibilidades de fusão… é sem fim.

Como a tecnologia atua no seu trabalho?

Várias coisas que eu venho produzindo desde o meu primeiro computador vem expressando minha adequação aos meios digitais, você não pode usar aquilo só como um enfeite, dizer “a minha poesia continua a mesma, mas agora eu posso colocá-la na página de vários jeitos” não é isso, a mudança é estrutural. O repertório de recursos quando se usa de maneira adequada, acaba dando uma utilidade procedente para ele, ele não se esvazia como um simples recurso.

Sem falar como receptor de mensagens, o meu sonho quando era criança era ter uma banca de jornal para ter todas as revistas, ter uma loja de discos para ter todos os discos, hoje eu tenho, todo mundo tem.

E o que fazer com isso?

Escolher. Acho que a seletividade, a escolha se tornou a coisa mais importante.

O que há de melhor a partir da tecnologia?

Eu acho que são os desafios às nossas sensibilidades, é termos acesso a coisas que expandem a consciência, a maneira de se relacionar, o convívio com tantas diferenças, a riqueza de ter contato com outras culturas, outros povos — riquezas são diferenças — tudo se tornou mais fluente e expandiu o repertório de criação. Assim como a arte moderna ampliou os formatos e suportes, colocando todos os sentidos interagindo, você tem hoje a invasão de mil meios. Mas, isso nunca vai acontecer se não houver uma abertura para a diversidade, para trânsitos de informações.

E o que há de pior?

Eu achava que tudo isso seria libertário para os sentidos do homem, estimulante como motivação e, paradoxalmente, a gente vê o mundo cada vez mais intolerante, isso é imprevisto para mim, não poderia imaginar isso. A gente achava que não existia mais fascismo, nem racismo, nem escravidão no mundo e no entanto está tudo aí e essas forças conservadoras são assustadoras, muito presentes e não é só no Brasil, é no mundo. A gente vê pela eleição do Trump (Donald Trump, presidente dos EUA), pelo Brexit, enfim…Politicamente as fronteiras se ergueram de novo. Depois da queda do muro de Berlim, que a gente viveu como sendo o marco de uma coisa libertária, de uma nova era, o que estamos vendo é crescer a intolerância política de todos os lados.

Como você enxerga o atual momento histórico?

Acho que é uma manifestação de intolerância. Ao mesmo tempo em que a gente tem acesso às informações do mundo todo, e que a gente queria que fosse uma coisa mais livre, de aprender outras formas, "não é só assim que se pensa em Deus, não é só assim que se come, não é só assim que se anda na rua, não é só assim que se trata os outros, tem várias outras maneiras, que legal! ". Mas não é "que legal", a pessoa fala “ah, tem esse outro jeito? mas eu quero o meu”. É uma época de intolerância gigantesca. Me incomoda muito essa coisa muito polarizada. A gente tem visto uma dificuldade de diálogo muito grande, de todos os lados, é um mundo que eu não entendo muito bem. Eu estou acostumado com o “é conversando que a gente se entende”.

E o Brasil?

O Brasil está terrível, uma coisa assustadora. Estamos vivendo um governo ilegítimo, um golpe parlamentar é uma situação escabrosa. Muitos retrocessos em tão pouco tempo de governo Temer (Michel). Algumas tentativas como a exploração da Renca (Reserva Nacional de Cobre e Associados), o fim do Ministério da Cultura, o trabalho escravo — queriam afrouxar as leis, a reforma trabalhista, são muitas coisas, algumas não passaram por conta da mobilização. Estamos esperando que as novas eleições consigam resolver em parte essa situação precária que a gente tem pós-golpe. Eu gosto de chamar de golpe, a gente tem que afirmar que foi golpe, porque foi mesmo.

A arte pode ajudar?

A arte está sempre fazendo coisas pelo país, pelo planeta, mas não dentro de uma coisa programática, partidária ou uma causa, a arte não é submetida à uma função prática, a função dela é muito maior e muito menor que a função dos partidos políticos, dos movimentos sociais, das Ongs, das causas, ela é transformadora sobre cada pessoa. A arte tem o compromisso de estar alterando a consciência , a sensibilidade das pessoas, mas de cada pessoa ou de uma coisa muito maior. A arte tem que ser livre.

E os seus desejos?

Que o Brasil seja um país com menos desigualdade, isso é o básico. A luta pela diversidade , que é fundamental, não pode estar separada da luta contra a desigualdade, elas são quase a mesma coisa.

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