O abraço dos sons

Apesar de embates com o Estado, Orquestra Filarmônica de Minas Gerais comemora cinco anos da sua sede em Belo Horizonte com casa cheia e projetos para o futuro

Andrei Reina
Revista Bravo!
10 min readFeb 20, 2020

--

A Sala Minas Gerais (Foto: Bruna Brandão)

Durante o último ensaio antes do concerto, o regente vira de costas para a orquestra, que não interrompe a execução de um scherzo sinuoso. O homem baixo e de cabelos brancos desce do pódio, fecha os olhos e se concentra na ocupação que a música impõe ao espaço — e que o convida a dançar em círculo, com os braços abertos.

A Orquestra Filarmônica de Minas Gerais afinava então os últimos detalhes da partitura da Sinfonia nº 2 de Gustav Mahler, obra escolhida para abrir a temporada 2020 na última quinta-feira (13). Foi com essa peça grandiosa — que exige, além de orquestra, dois coros mistos e duas cantoras solistas — que, em fevereiro de 2015, a Filarmônica inaugurou a Sala Minas Gerais.

Localizada no Barro Preto, bairro na zona sul de Belo Horizonte, a aniversariante é o lugar ideal para ouvir as nuances da Sinfonia da Ressurreição, como a composição é conhecida. Ali, até mesmo o silêncio — construído com soluções avançadas de acústica — pede para ser ouvido com atenção.

“No dia em que a gente deu os primeiros acordes dessa Segunda de Mahler em uma sala desconhecida, eu lembro de músicos chorando”, diz Fabio Mechetti, diretor artístico e regente titular da orquestra desde a sua fundação, em 2008. “Eu mesmo fiquei muito emocionado de a gente ter de repente esse recurso maravilhoso que é a sala, depois de — na época — sete anos de trabalho”.

Tímida na noite de aniversário, a chuva não impediu que o concerto tivesse casa cheia. Jovens em roupas de academia, com mochilas nas costas e garrafas de cerveja nas mãos, faziam contraponto ao desfile de vestidos e paletós, confirmando o aspecto aconchegante da sala, estabelecido desde a distribuição dos assentos em uma arena imperfeita ao redor do palco.

Acompanhada das solistas Camila Titinger (soprano) e Luisa Francesconi (mezzo soprano), além do Coro da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo e do Coral Lírico de Minas Gerais, a Filarmônica segurou a atenção do público ao longo da uma hora e meia de duração da sinfonia, cujo tema da ressurreição parecia comentar a luta da capital mineira para sobreviver aos estragos causados pelas chuvas deste início de ano.

Luthier da arquitetura

“Vamos lembrar que a gente está projetando um determinado tipo de instrumento que tem uma função, uma sonoridade, um gosto”, disse José Augusto Nepomuceno em uma das primeiras reuniões de trabalho para o desenho da Sala Minas Gerais. Embrião do Centro de Cultura Presidente Itamar Franco, onde também estão sediadas a Rede Minas e a Rádio Inconfidência, a sala foi pensada do zero para abrigar concertos sinfônicos, o que definiu o som como a prioridade do projeto.

“Nós, como especialistas em acústica e planejamento de espaços para teatro, fomos a primeira equipe a entrar no processo”, diz o arquiteto do escritório Acústica & Sônica. “Depois vieram estrutura, ar condicionado, elétrica, hidráulica. Isso não é demérito [para as outras áreas], é simplesmente uma definição projetual. Quando você vai fazer um instrumento, a primeira pessoa com quem você vai falar é o luthier. É mais ou menos assim. É o papel de luthier da arquitetura”, resume.

Na hora de definir o formato da sala de concerto, Nepomuceno e sua equipe — que depois agregou os arquitetos mineiros Jô Vasconcellos e Rafael Yanni, responsáveis pela área externa — se viram diante de dois modelos. Mais comum, a forma de “caixa de sapato” é aquela encontrada na Musikverein de Viena e na Sala São Paulo. O outro, com a “forma de um vinhedo”, tem seu exemplo mais famoso na sede da Filarmônica de Berlim, “uma sala em forma de arena com patamares que circundam o palco”, na descrição de Nepomuceno.

A Sala Minas Gerais, vista do mezanino e do coro (Fotos: André Fossati)

“Cada um desses modelos tem vantagens e desvantagens”, diz o arquiteto. “A sala retangular tem um histórico de não sei quantos anos de absoluto sucesso, mas tem uma coisa que me incomoda um pouco que é a distância que as pessoas começam a ficar do palco conforme você vai andando ao fundo”. No caso das arenas, salvo os exemplos da Philharmonie e do japonês Suntory Hall, “nenhuma delas se construiu com uma reputação de altíssima qualidade acústica”, comenta.

“E se a gente tivesse uma sala ‘caixa de sapato’ e construísse balcões ao redor dela, como se fosse um modelo híbrido?”, perguntou-se Nepomuceno. “A gente poderia ter a proximidade acústica e visual dessas salas de arena e ao mesmo tempo um volume, uma orientação espacial próxima das salas retangulares”, concluiu.

“Dentro dessa caixa de sapato a gente colocou um contrabaixo gigante”, brinca Fabio Mechetti, em referência às paredes abauladas, que conferem à sala, segundo ele, “um som mais redondo, evitando pontos de rebatimento acústico, coisas que complicam a acústica de salas muito quadradas”. A distribuição dos balcões ao redor do palco, por sua vez, “faz com que o público abrace a orquestra”.

Embates sinfônicos

A inauguração da sala também foi um passo decisivo para a sonoridade da Filarmônica, que até 2014 se apresentava no Palácio das Artes. A orquestra podia realizar apenas os seus ensaios gerais no local, onde ainda “competia” com outras atrações e grupos estáveis pelo uso do espaço, administrado pela Fundação Clóvis Salgado.

Fabio Mechetti (Foto: Bruna Brandão)

“Eu não acredito que seja possível construir uma orquestra que ensaie num local e toque em outro. É impossível”, defende Fabio Mechetti, que explica com uma metáfora esportiva. “É como um time de futebol treinar num ginásio de futebol de salão e depois ir jogar no Maracanã. Não vai dar certo”.

Para o regente, ter uma sede própria permite que a orquestra encontre seu som. “Você e a sala desenvolvem uma sonoridade própria. A Filarmônica de Viena e a Wiener Musikverein são um instrumento só. A Concertgebouw e a sua orquestra são um instrumento só. Logicamente que eles têm séculos de existência e nós apenas cinco anos, mas a ideia é construir um instrumento único, em que um influencie o outro”.

Mechetti admite que o som da orquestra e da sala se encontram em construção. “A gente ainda está aprendendo a tocar na sala. Depois de vários anos ensaiando em um local e tocando em outro, acostuma mal a orquestra. Você desenvolve certos hábitos que depois tem que limpar quando a sala é amiga sua. Mas a programação contínua, a repetição de programas e a temporada mais longa — nós fomos de 20 e poucos concertos para 53 de 2014 para 2015 — fizeram com que a orquestra ganhasse qualidade e presença na comunidade”.

A Sala Minas Gerais é pouco utilizada para a apresentação de outros grupos ou mesmo para a realização de eventos, como faz a Sala São Paulo, por exemplo. “Ela está sendo pouco repercutida além dos nossos concertos e esperamos que isso mude, para que a gente possa maximizar ainda mais o potencial da sala — não só acústico mas também como geradora de recursos”, avalia Mechetti. “Existem orquestras que vão tocar em São Paulo e no Rio de Janeiro. Dar uma corridinha aqui em Belo Horizonte seria fantástico para todo mundo, em termos de custo.”

Para o regente, o quadro se explica por um problema administrativo. “Infelizmente, depois do primeiro ano, em 2015, o controle da sala foi tirado da Filarmônica. Nos últimos quatro anos a gente não pôde trazer outras atividades e criar vínculos com outras associações porque a sala na verdade não era nossa. Ela pertence a quem construiu, que é a Codemig [Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais]”, diz.

A situação pode mudar em um futuro próximo, a depender do resultado do edital publicado pela Secretaria de Cultura e Turismo no início do mês. Após uma versão anterior que não atraiu interessados — por apresentar exigências incompatíveis com o universo da música de concerto, segundo Mechetti — o novo pleito determinará a organização social responsável pela orquestra e pela sala a partir de junho desse ano. Gestor do grupo desde a sua criação, o Instituto Cultural Filarmônica entrará na concorrência.

O orçamento anual da Filarmônica é hoje de R$ 32,7 milhões, com 53% cobertos por recursos do Governo do Estado e 47% de patrocínios (empresas e pessoas físicas), assinaturas e bilheteria. A participação do Estado no projeto, observa Mechetti, deteriorou ao longo dos anos. “A equação que a gente combinou quando começou a Filarmônica era que o governo deveria pagar pela folha [de pagamento]. Programação, gravação e turnês iriam ser feitos com captação privada. Nossos músicos [90, atualmente] não são funcionários do Estado, são celetistas. Essa fórmula funcionou nos primeiros cinco, seis, sete anos”.

A partir de então, os cortes começaram. “A cada ano o governo corta um pouquinho mais e a gente tem que usar dinheiro de captação para cobrir a diferença. Aquilo que era de folha de pagamento de 100% em 2008 hoje beira quase 60%. Houve muito pouco tempo. Se fosse uma coisa mais estendida, daria tempo das coisas ficarem mais ajustadas. Mas hoje estamos praticamente fazendo o mesmo número de concertos que a Osesp com um terço do orçamento deles. E mesmo assim o governo acha caro o projeto”.

Os embates da orquestra foram travados com múltiplas colorações partidárias. “Nós já passamos por PSDB, PT e agora NOVO. Quer dizer, foram três governos e sete ou oito secretários de Cultura em 12 anos, todos eles com uma filosofia diferente daquilo que a cultura significa para o Estado”, desabafa Mechetti, que lamenta a impossibilidade de alguns projetos pensados para a Filarmônica desde o início não saírem do papel, como a criação de uma orquestra jovem.

Concertos para o futuro

As dificuldades, no entanto, não impedem que a orquestra viva hoje o melhor momento de sua breve história. Além de se estabelecer na cena cultural mineira, a Filarmônica também alça voos nacionais e internacionais. Exemplo disso é a participação do grupo no projeto Brasil em Concerto, tocado pelo Ministério das Relações Exteriores — por iniciativa do diplomata e músico Gustavo de Sá — com o selo Naxos e três orquestras brasileiras (Osesp, Orquestra Filarmônica de Goiás e OFMG) com o objetivo de divulgar a música sinfônica do país.

Aos mineiros cabe a tarefa de realizar cinco gravações até 2023. A primeira, com obras de Alberto Nepomuceno, foi lançada no ano passado. As composições de Almeida Prado para piano e orquestra — três delas inéditas — foram gravadas com Sonia Rubinsky e chegam ao mercado entre abril e maio. Ainda em 2020 a Filarmônica grava as duas sinfonias e o Reisado do Pastoreio de Lorenzo Fernandez, que poderão ser ouvidas no ano que vem. Carlos Gomes (aberturas, prelúdios e trechos de óperas) e Henrique Oswald (as duas sinfonias e a Elegia) são as próximas paradas.

Para a temporada de concertos, está prevista a apresentação das cinco obras para piano e orquestra de Beethoven com a participação do veterano Arnaldo Cohen. No ano em que se comemora os 250 anos do compositor alemão, a Filarmônica interpreta ainda a integral das sinfonias e aberturas. O violoncelista Antonio Meneses e o pianista Critstian Budu também estão entre os convidados de 2020, que terá ainda a presença da violinista norte-americana Stella Chen, vencedora do último concurso Rainha Elizabeth da Bélgica, e do maestro finlandês Leif Segerstam.

Disco da Filarmônica com obras de Alberto Nepomuceno

O ano também marca a estreia de José Soares como o novo regente assistente da orquestra. Aos 21 anos, ele tem entre as suas atribuições a de assessorar a direção artística, de servir como substituto e reger os didáticos Concertos para a Juventude, além de participar de turnês estaduais e apresentações ao ar livre.

“O Brasil em que inicio minha trajetória como regente possui orquestras em maior número e qualidade do que nas décadas passadas. Isso não significa que as dificuldades foram sanadas, pelo contrário”, avalia o regente. “São muitos os momentos de conturbação, dados por crises de diversas naturezas, em que projetos que lentamente germinaram para se formarem são subitamente impossibilitados de prosseguir com suas atividades”.

Para Soares, a Filarmônica é um exemplo com o qual aprende a “importância de lutar constantemente pela produção artística, mostrando seu impacto social, educativo e, de forma ainda mais explícita, econômico”.

Luisa Francesconi, Fabio Mechetti e Camila Titinger (Foto: Bruna Brandão)

Morrer para viver

A escalação da Sinfonia nº 2 de Mahler para abrir a temporada levanta algumas dúvidas. É verdade que, por um lado, ela se justifica pelo maximalismo da composição, que obriga todos os naipes da orquestra a “mostrar serviço”. Ela permite ainda que diferentes registros sejam testados na acústica da sala, “desde os sons mais pianíssimos até os mais agressivos”, diz Mechetti. E foi com ela, afinal, que a Sala Minas Gerais foi inaugurada.

Por outro lado, a escolha de uma obra com a palavra ressurreição para celebrar um aniversário desconcerta. Por que seria necessário “ressuscitar” algo que tem apenas 5 anos? A resposta talvez esteja no diálogo entre a composição e o contexto em que ela é executada.

“Com as asas que conquistei,/ Desaparecerei./ Morrer para viver!”, dizem os versos entoados no quinto e último movimento da sinfonia. Apresentado em uma sala de concerto brasileira no início de 2020, o horizonte metafísico do compositor parece pedir um chão histórico e local: no país onde a cultura é um cabra marcado para morrer lentamente, transformar a morte no seu contrário é a opção que resta.

*O repórter viajou a convite do Instituto Cultural Filarmônica.

--

--