O aconchego desassossegado de Linha D'Água

Álbum de M.Takara e Carla Boregas explora as possibilidades entre bateria e sintetizadores

Guilherme Werneck
Revista Bravo!
3 min readMar 19, 2020

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Carla Boregas e Maurício Takara — Reprodução

M.Takara e Carla Boregas lançaram agora Linha D'Água, primeiro álbum como duo, gravado e mixado pelo Fernando Sanches e masterizado pelo Scott Hard. A pedido deles, escrevi um texto para acompanhar o lançamento do disco, que reproduzo abaixo:

Ao ouvir pela primeira vez esse Linha D’Água inteiro, uma frase de um poema do João Cabral de Melo Neto ecoava. “Os rios que encontro vão seguindo comigo.” Talvez por conta do título ou da delicadeza da abertura da faixa título, com seu som de água corrente, algo como uma constante que é preenchida por uma bateria aberta, jazzística sem ser impositiva, e pelo som do sintetizador crescendo aos poucos, criando um clima sinestésico, de um aconchego desassossegado.

Linha D’Água é um disco de explorações e descobertas, de curiosidade e diálogo, e talvez mais do que tudo, uma grande homenagem ao encontro, à parceria, ao construir junto. As oito faixas foram gravadas num único dia no estúdio, mas é fruto de mais de dois anos de colaborações.

Algo natural se pensar que o espírito colaborativo é um traço da carreira dos dois. Takara vem do Hurtmold, mas, além de seus discos solo, e de projetos como São Paulo Underground, sempre esteve aberto a improvisações. Carla é a baixista do Rakta, mas também sempre se apresentou solo e tem o duo Fronte Violeta.

É dessa troca e dessa intimidade que nasce Linha D’Água, mas em duo eles exploram um caminho único, com um procedimento bastante interessante. A partir da bateria, Takara dispara melodias e, com o sintetizador, Carla vai esculpindo o som. O mais bonito desse jeito de tocar é gerar um efeito colateral excepcional, que é eliminar o caráter mais egóico da improvisação livre. O resultado é um som realmente colaborativo, duas vozes que se complementam, que se respeitam, deixando as ideias fluírem.

E Linha D’Água é cheio de boas ideias. Às vezes elas estão mais próximas à música ambiente, como na faixa título, em Mãe D’Ouro e Bocca Chiusa, às vezes esbarram do free jazz, como em Traçado Entre Duas Linhas. Há momentos em que exploram um universo de tensão que chega próximo à música cósmica alemã dos anos 70, como em Rosa de Areia e Constante de Distância, em outros evocam os sons metálicos do gamelão indonésio e aí Execução é o melhor exemplo.

Escolhi usar ideias próximas porque esse não é um disco calcado em gêneros. Antes é um álbum que navega por atmosferas, por explorações. Claro que a percussão tem um peso grande, tanto como alicerce quanto como comentário lírico, mas o bonito aqui é que ela só tem a oportunidade de soar estrutural e melódica a partir da modelagem sonora dos sintetizadores. Por isso penso tanto na frase do João Cabral, porque é bastante emocionante ver os rios que carregamos conosco desaguarem em um lugar comum.

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