O Brasil da pós-política
Crítica: Ignácio de Loyola Brandão volta à distopia com "Desta Terra Nada Vai Sobrar, a Não Ser o Vento que Sopra Sobre Ela"
“Essa reforma começou com as dissidências dentro das legendas. Descontentes se retiravam, formavam um partido próprio. Ou três, quatro, sessenta. Assim que formadas, surgiam novas divergências, sob o lema: fazer política é enriquecer e ganhar cargos? Dessa maneira os partidos foram se multiplicando como bactérias nocivas. (…) Como cada facção podia indicar um candidato à Presidência da República, a possibilidade gerou cobiça desenfreada, de maneira que, quando se viu, havia no Brasil 1.080 partidos, com seus líderes ambicionando o poder máximo.”
Aos 82 anos, Ignácio de Loyola Brandão voltou colocar lentes distópicas para imaginar o futuro próximo do Brasil com o romance Desta Terra Nada Vai Sobrar, a Não Ser o Vento que Sopra sobre Ela. Trata-se da volta de uma narrativa que o autor havia abandonado desde o fim da ditadura militar (1964–1985). E, de certa maneira, se torna o capítulo final de uma trilogia iniciada com Zero, em 1974, uma das mais contundentes críticas ao regime autoritário no país, e que teria sequência em Não Verás País Nenhum, de 1981.
Mas enquanto Zero, com seu caleidoscópio narrativo, era claramente um enfrentamento ao regime militar, e Não Verás País Nenhum imaginava o país em total colapso sob o julgo do Esquema (uma força opressora que também refletia os desdobramentos da política autoritária), Desta Terra Nada Vai Sobrar, A Não Ser o Vento que Sopra sobre Ela se desenha em um futuro pós-político, uma espécie de explosão opressora que vem do derretimento das instituições, do esgarçamento da democracia. E leva ao absurdo essa esfera da política autorreferente, que nasce das manifestações de 2013 e é alimentada pelas bolhas das redes sociais.
Ao escolher como eixo narrativo o fim do relacionamento de dois publicitários, este novo livro se assemelha mais a Não Verás País Nenhum, que segue de perto a história do narrador que acorda com um furo na mão, do que ao Zero, que tem em José sua personagem principal, mas que desenvolve de maneira extremamente rica os personagens secundários, que dialogam com pedaços de realidade tirados de jornais, revistas, programas de televisão. Isso não quer dizer que não existam aquelas personagens curiosas e misteriosas, que espelham um Brasil fantástico, e parecem ter saído de um circo poeira. Mas há menos centralidade nessas personagens, até porque, como utiliza posts e sistemas de vigilância como matéria primeira para a narrativa, tudo se torna mais umbilical e há pouco desenvolvimento das personagens que cruzam o caminho dos protagonistas. Outro reflexo agudo dos nossos tempos.
É muito interessante como Brandão trabalha os elementos narrativos. As ideias são repetidas exaustivamente, o que pode ser lido como uma crise do nexo, uma crítica ao empobrecimento da linguagem, que se deteriora como o meio ambiente, as relações afetivas e as relações políticas.
Sobra um país que baila num vórtice caótico, e personagens que tentam se manter inteiras diante de um mundo colapsado, sem conseguir se apegar a nada, sem perspectiva, dançando num presente perpétuo em que tudo em volta se dilacera e deteriora, e em que nada é certo, palpável, real.
Justamente por tratar desse Brasil que nasce da negação e não da construção, que mergulha no ódio, no ressentimento, na mesquinhez, que reduz quase todas as instituições a nada que não seja bala e bíblia, Desta Terra Nada Vai Sobrar, A Não Ser o Vento que Sopra sobre Ela se mostra um livro importante de ser lido à luz dos acontecimentos correntes da política nacional.
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Desta Terra Nada Vai Sobrar, a Não Ser o Vento que Sopra sobre Ela, de Ignácio de Loyola Brandão. Global, 376 págs., R$ 56.