O Brasil popular de Tarsila em 4 obras
Masp exibe maior exposição já dedicada a Tarsila do Amaral e a investigar a representação feita pela pintora de elementos da cultura popular brasileira
A partir de amanhã (5), o Masp exibe 92 obras de Tarsila do Amaral naquela que, de acordo com o museu, será a mais ampla exposição já dedicada à artista. Algumas de suas principais telas estarão presentes em Tarsila Popular, incluindo o Abaporu, marco do modernismo que retorna a São Paulo depois de 11 anos sob empréstimo do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires. A inauguração da mostra reforça o contexto de revalorização internacional da pintora, após a aquisição da tela A Lua pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, o mesmo que, no ano passado, abrigou uma individual em que Tarsila era apresentada como inventora da arte moderna no Brasil.
Apesar da abrangência, a exposição no Masp se concentra na representação que a pintora faz da vida e da cultura popular brasileira, pesando assim o legado e as contradições de seu projeto modernista. Em comentário sobre Carnaval em Madureira, tela em que a Torre Eiffel aparece em pleno subúrbio carioca, o curador Fernando Oliva escreve que Tarsila encontrava-se “dividida entre aplicar as lições das vanguardas europeias e representar algo da ‘identidade nacional’, entre se apresentar como uma brasileira de elite, cultivada na ambiência cultural parisiense e, ao mesmo tempo, mostrar-se conectada a uma noção de popular nos trópicos”.
Para conhecer melhor a face popular de Tarsila do Amaral, a Bravo! pediu ao curador Fernando Oliva, ao assistente curatorial Guilherme Giufrida e ao estagiário de curadoria Matheus de Andrade que comentassem quatro obras da exposição. Os textos a seguir são baseados em trechos do catálogo de Tarsila Popular.
Carnaval em Madureira (1924), por Fernando Oliva
Em 1924 Tarsila do Amaral visitou o Rio de Janeiro com o grupo dos modernistas paulistas e o poeta suíço Blaise Cendrars (1887–1961), onde passaram o Carnaval. Em Madureira, bairro popular que é considerado o “coração da zona norte carioca”, ou a “capital dos subúrbios”, a artista se deparou com uma réplica em madeira da Torre Eiffel que chegava a 18 metros de altura, construída pelo comerciante e cenógrafo de coretos José Costa como forma de promover as festividades do carnaval de rua daquele ano. Reforçando sua ligação com o povo e o popular no país, e desse modo com uma noção de brasilidade, especialmente por meio da paleta de cores, parte de sua estratégia de inserção naquele momento, a artista decidiu representar a cena. Carnaval em Madureira tem a Torre Eiffel como protagonista, altiva, no centro da tela, em amarelo pronunciado. Deslocamento chocante, um dos símbolos máximos da França em pleno subúrbio carioca simbolizava tanto o ideário de uma arte nova, o modernismo, como os dilemas da própria artista, dividida entre aplicar as lições das vanguardas europeias e representar algo da “identidade nacional”, entre se apresentar como uma brasileira de elite, cultivada na ambiência cultural parisiense e, ao mesmo tempo, mostrar-se conectada a uma noção de popular nos trópicos. Como assinala Sergio Miceli, a obra figura um mundo — um Brasil — intocado pela tristeza, pelo drama humano; um espaço utópico e mítico de convivência dos opostos (a Torre Eiffel na paisagem carioca), de luz e de cores exuberantes, sem nuanças ou contradições. A racionalidade formal da construção se integra ao entorno feito de uma paisagem tipicamente brasileira, seja na natureza (os morros, as rochas e a palmeira, ao fundo), ou na cidade (o casario de Madureira, as bandeirolas e os adereços de carnaval, os chapéus que compõem os figurinos dos foliões).
Morro da Favela (1924), por Guilherme Giufrida
A atual denominação “favela” vem do chamado morro da Favela, que se situava onde hoje é o morro da Providência, no Rio de Janeiro, uma das primeiras ocupações de moradia informal da população marginalizada em um morro carioca. Localizado na zona portuária do Rio de Janeiro, próximo ao cais do Valongo, o maior porto de entrada de escravizados do mundo, a origem do morro da Favela está no processo de remoção da população pobre do centro da cidade para que fosse efetuada a abertura de novas avenidas na gestão do prefeito Pereira Passos (1836–1913), de 1902 a 1906. Seus primeiros moradores eram soldados egressos da guerra de Canudos (Bahia, 1896–1897), de onde vem o termo “favela”, uma planta da região. Tarsila do Amaral visitou o Rio de Janeiro no Carnaval de 1924, ano em que pintou três paisagens cariocas: Morro da Favela, Carnaval em Madureira e E.F.C.B., em referência à Estrada de Ferro Central do Brasil. O cenário no Morro da Favela surge como uma zona rural habitada pela população negra, povoada por casas coloridas e vegetação tarsiliana. Em meio às casas de alvenaria geometrizadas e pintadas de rosa, branco e azul, encontram-se barracos de madeira escura que parecem mal se sustentar verticalmente, assumindo posturas semelhantes às das plantas, espremidos entre as outras casas. Seis personagens negros e dois animais povoam a paisagem. Discípula de Fernand Léger (1881–1955) e da estilização geometrizada cubista, Tarsila ordena os elementos de um relevo acidentado através de faixas horizontais, distribuídos harmonicamente pela tela. Obra central da primeira exposição de Tarsila do Amaral em Paris, pode-se dizer que esta pintura contribuiu com uma certa invenção moderna da favela como imagem carioca, no contexto da pintura de cenas nacionais estereotipadas para exportação. A favela aparece romantizada, higienizada, sem privações, conflitos, repressão policial ou contrastes sociais, mas como um modo de vida interiorano em meio à cidade.
Pastoral (1927), por Fernando Oliva
Retrato póstumo feito a partir de uma antiga fotografia que mostra Oswald de Andrade Filho (1914–1972), o Nonê, ainda menino, ao lado do avô, o doutor José Oswald Nogueira de Andrade, morto em 1919. Há uma descrição de cena semelhante feita pelo escritor Oswald de Andrade (1890–1954), então marido de Tarsila: “Vou visitá-lo na praia. Revejo-o sempre no mesmo terno preto, o chapéu-coco e o guarda-chuva. Está sentado a um banco no velho jardim que rodeia a Biquinha de São Vicente. Tem uma criança linda ao lado. É meu filho. Ele me fala calmo, depois de me fazer perder a hora do trem de volta”. O pai de Oswald, à direita, olha fixamente para o espectador. O semblante sério e compenetrado contrasta com a posição das pernas, que mostram certo relaxamento. O menino posa comportado com as mãos sobre os joelhos, mas tem o olhar distante, alheio à cena. Entre eles, a ligá-los pelos braços, um macaquinho. O tema central (avô e neto sobre o banco) é emoldurado por uma variedade de plantas tropicais, como espadas-de-são-jorge e grandes bromélias, típicas da fase Pau-Brasil (1924–1928) de Tarsila, mas já antecipando seu período antropofágico (1928–1930). Os tons de azuis, rosas e verdes, que estruturam cromaticamente a cena, se relacionam com a paleta adotada pela artista em suas aproximações às telas típicas da religiosidade popular. O gênero “pastoral” é uma abordagem adotada nas artes e na literatura que se caracteriza pelo tratamento idealizado do estilo de vida dos pastores bíblicos, retratados como pessoas simples em meio a paisagens bucólicas, em conexão com a natureza, de acordo com as estações do ano. O gênero era bastante popular nas cidades interioranas e no Nordeste do Brasil, no contexto religioso cristão, o que interessava especialmente à Tarsila dos anos 1920 como caminho de conexão com o popular.
Religião Brasileira I (1927), por Matheus de Andrade
Tarsila, assim como outros modernistas, procurou representar os signos considerados reveladores da nossa identidade nacional, ou seja, os elementos entendidos naquele momento como parte genuína e intrínseca da tradição artística popular brasileira que deveria ser preservada. Inspirada por pinturas e objetos de altares domésticos e das igrejas e festas religiosas que conheceu em suas viagens, a artista produziu uma série de obras com temática religiosa, entre as quais, Religião Brasileira I. Aqui vemos imagens representativas sobretudo do catolicismo pintadas de maneira bastante estilizada. Tarsila contou que a inspiração para esse trabalho surgiu quando ela se deparou com uma cômoda que servia de suporte a um altar doméstico colocado sobre uma toalhinha de crochê branca, com santos e vasos cheios de flores de papel crepom colorido dispostos à volta. Aquela visão deu forma a este arranjo bastante dinâmico e vivo, mas que não é ingênuo — ele sintetiza o imaginário popular brasileiro. Como apontou Regina Teixeira de Barros, o retábulo no centro da tela, pintado em azul, evoca o culto a Maria. Ele abriga a imagem de uma Nossa Senhora com o menino Jesus, desenhados de maneira simplificada, apenas com o contorno das figuras. Altares secundários dividem o espaço com vasos, flores, símbolos do divino (pássaros) e figuras humanas diminutas, em clara alusão aos elementos decorativos de pequenos sacrários e altares domésticos. O excesso de elementos que preenchem quase a totalidade da superfície do quadro, definidos por contornos bastante acentuados e por áreas de cor estruturantes, nos remete ao espírito barroco do horror vacui, ou seja, à intenção de preencher todas as superfícies vazias. Por outro lado, a não simetria do conjunto enfatiza o caráter popular do altar, que não é sincrético e multiétnico, mas que reúne certas simbologias para evidenciar um dos aspectos centrais da cultura e religiosidade brasileiras.
Tarsila Popular. De 5 de abril a 28 de julho. Quarta a domingo, das 10h às 18h. Às terças, o horário é estendido até 20h e a entrada é gratuita. Nos outros dias, o ingresso custa de R$ 20 a R$ 40. Masp: Avenida Paulista, 1578 — Bela Vista — São Paulo.