O caminho das pedras

Morris lança com exclusividade a canção e clipe “Pátria Bipolar”, terceira pedra a pavimentar sua volta à canção depois de 10 anos dedicado ao teatro

Guilherme Werneck
Revista Bravo!
9 min readJun 26, 2020

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Fazia 10 anos que Morris não lançava um disco, depois de sua estreia com a Urbanda e, na sequência, com a banda Dr. Morris e os Vivos. Nesse hiato, a música seguiu central na sua vida, mas totalmente atrelada à produção para o teatro. Nos últimos dois anos, a partir de uma epifania na exposição do artista chinês Ai Weiwei, preparou uma nova leva de canções e tinha acertada a sua volta com o disco Homem Mulher Cavalo Cobra. Um álbum com direção artística de Romulo Fróes e uma super banda formada por Rodrigo Campos e Allen Alencar nas guitarras, Marcelo Cabral no baixo, Igor Caracas na bateria e Felipe Roseno na percussão. Mas veio a pandemia e todos os planos foram repensados.

O que seria um lançamento tradicional de disco, com show programado para acontecer nesta semana no Sesc 24 de Maio, em São Paulo, esfacelou-se em uma estratégia bastante inovadora: tratar as 13 canções de forma singular e lançá-las semanalmente, com clipes ou apenas como singles.

Como no teatro, essa escolha é feita a partir de um processo de descoberta do disco, de suas temáticas, narrativas e repertório. Nesse processo, uma ideia forte, que iria permear toda parte gráfica, era a das pedras, ligada à mitologia e as pinturas rupestres. Essa ideia acabou se transformando num ponto simbólico importante e permeando essa estratégia atomizada. "Cada lançamento é uma pedra. Tanto que lá na frente talvez a gente lance uma pedra com duas músicas. Paramos de chamar de single e passamos a chamar de pedra. Esse caminho de pedras que a gente vai formar até sair o disco", diz Morris numa longa conversa pandêmica pelo telefone.

Romulo Fróes complementa: "Tem muito a ver essa ideia de pavimentar esse disco, de botar uma pedra de cada vez, com cada pedra sendo símbolo de alguma coisa. Então fala de pavimentar um caminho possível nesse tempo de pandemia, de pavimentar um caminho de algo que possa ser melhor, que nos leve para fora dessa maluquice que a gente está vivendo. Do ponto de vista da carreira, essa ideia de pavimentação me parece correta, porque é o Morris voltando depois de dez anos. Quem é Morris? As pessoas estão começando a sacar."

Nesse caminho de pedras, a primeira foi o clipe de Onça-çá, parceria com Clima, com vídeo de Luan Cardoso, depois veio o clipe de Longe da Árvore, parceria com Juliana Perdigão e dirigido por Henk Nieman, editor de imagem da Bravo!, e agora nós lançamos uma música que é um pouco o ponto de partida desse trabalho: Pátria Bipolar, de novo com direção de Luan Cardoso. Uma porrada super atual que fala diretamente dessa nossa fratura como país, que vem de longe mas se agudiza nos últimos anos.

Embora os elementos remetam aos fatos políticos recentes, e contemplem a nossa existência imediata espremidos entre o vírus e o verme, a música tem um arco narrativo maior e mais bonito, e diz muito de um Brasil cindido que começa bem antes das fraturas de 2013. No fundo, usa Ai Weiwei para tratar de temas umbilicalmente nossos, como o convívio entre beleza e horror, ética e mentira, rua e opressão, opulência e miséria, conforto e precariedade, liberdade e muros.

Para o clipe, Luan trouxe um caminho bem interessante, inspirado em clipes de bandas como Bad Religion e Rage Against the Machine, com as manifestações, as máscaras. E o clipe se beneficia de ter um diretor totalmente imerso no projeto. “Tive a felicidade de acompanhar esse disco do Morris desde os ensaios das bases, então entendi a progressão dos arranjos e estive ativo nas discussões acerca de letras e escolhas, o que me deu a chance de propor, na construção das imagens, um processo mais próximo possível da própria idéia do disco. No Pátria Bipolar, você pode enxergar não só uma experiência visual de cortes e fusões parecida com os filmes da era de ouro do cinema russo — décadas de 1920 e 30 — parafraseando Dziga Vertov e Eisenstein”, conta Luan Cardoso.

Pátria Bipolar

Falar de Pátria Bipolar é falar também da construção desse álbum. "Ela foi feita em 2018 e é o ponto de partida do disco. Nessa época estava rolando a exposição do Ai Weiwei, na Oca [no parque Ibirapuera, em São Paulo]. Eu visitei a exposição algumas vezes e fiquei muito tocado. A partir dela, comecei a compor uma série de canções baseadas no impacto que a exposição teve sobre mim. Nessa leva estão Pátria Bipolar e Boia de Pedra, que é sobre o tema dos refugiados", conta Morris. "O que me impressionou na exposição foi o poder de fazer uma arte muito genuína mas que dialoga com a situação de um mundo com muita injustiça. A isso se soma o contexto do Brasil. Em 2018 já era o Temer, a gente vinha daqueles dois anos estranhíssimos, era ano de campanha, de eleição, Bolsonaro aparecendo", completa.

Pátria Bipolar chegou, inclusive, a ser cogitada para dar título ao disco. "O nome do disco não vinha de jeito nenhum, a gente ficava pensando, falando, pensou em Boia de Pedra e descartamos porque era muito pesado, e Pátria Bipolar é bonito, mas reduz, determina, e o disco é bem mais poético do que isso”, lembra Morris. Romulo Fróes fez parte dessa discussão: “Como título de canção, Pátria Bipolar é ótimo, funciona. Mas desde o começo eu não achava que traduzia o disco”, conta.

Segundo Morris, o disco tem quatro blocos temáticos: “um fala sobre identidade, outro sobre mitologia, um terceiro sobre morte e o último sobre pessoas”. Do núcleo mitológico veio a canção que acabou dando título ao disco: Homem Mulher Cavalo Cobra. Uma canção feita anos atrás, depois de uma palestra do professor da Unicamp Laymert Garcia dos Santos, tradutor da peça Programa Pentesiléia — Treinamento para a Batalha Final, da italiana Lina Prosa. “Eu nunca tinha prestado atenção na mitologia. E a mitologia, para além de ficar chamando esse bandido de mito, tem um negócio muito interessante, que é uma forma de ver o mundo diferente, uma terceira forma. Eu posso ver o mundo de uma forma materialista, espiritualista e tem uma forma mitológica de sacar o mundo. Cheguei em casa depois da palestra e fiz essa letra. Dois dias depois eu fiz a música, e ela ficou lá. Nunca tinha feito nada com ela. Na hora que eu toquei pro Romulo, anos depois, ele ficou comovido e achou a música linda.”

Sobre essa tarde, cheia de música e doces, quando o namoro entre Morris e o produtor estava ainda no começo, Romulo recorda: “Ouvimos muitas músicas, achei umas legais outras não. Até Pátria Bipolar estava nessa leva. Eu não gostei dela num primeiro momento, depois ela ficou porque é isso mesmo, fala sobre o Brasil de agora, já com Homem Mulher Cavalo Cobra, que ele não gostava tanto, eu me animei pra caramba”, conta. “Naquela tarde já começamos a levantar repertório, e eu disse que era legal ter outros textos além dos dele e dos meus e comecei a sacar minhas armas secretas, o Clima, a Juliana Perdigão, a Alice [Coutinho], o Cesar [Lacerda], e a galera foi levantando esse repertório. Mesmo sem as pessoas falarem umas com as outras, acabou virando um repertório coeso, tinha a coisa política do Morris, mas veio de um modo mais amplo. A Alice fez uma letra política, mas feminista, o Clima fez uma letra política mas tratando da coisa indígena. Eu não fiz coisa política, mas falei da morte, da vida. Político no sentido de tratar desse momento maluco em que a gente vive e que já dura muitos anos”, completa.

Faíscas

Para além da política e da arte, a faísca de gravar um disco autoral veio do lançamento de Outono no Sudeste, de Maurício Pereira. A Mais (Rubião Blues), a faixa que abre o disco, é uma parceira antiga de Morris com o ex-Mulheres Negras. E, de certa forma, o elo que também o levou a Romulo Fróes. “Depois que eu fiz meu primeiro disco, era uma época que eu estava com muito trabalho de teatro e trabalhando muito em Belo Horizonte porque a minha mulher Elo[a atriz Eloisa Elena] é de BH, eu acabei fazendo muitas coisas por lá, fazendo trilha pro Grupo Galpão, Eide Ribeiro, Yara de Novaes, Carlos Gradim, e lá eu conheci o autor mineiro Murilo Rubião. Ele escreveu só 33 contos, todos muito bons. E eu propus um projeto de compor uma canção para cada conto, e comecei a chamar músicos para fazer parcerias. Dois deles foram o Romulo [Fróes] e o Maurício Pereira, isso lá por 2011”, lembra.

E foi o fato de Maurício Pereira pedir para incluir essa música no Outono no Sudeste que trouxe Morris de novo para o mundo da canção popular, fora do teatro. E também a buscar em Romulo para produzir o trabalho.

A partir dessa primeira seleção de repertório com Romulo, mais um fio do passado foi reconectado. Rodrigo Campos e Morris tocaram juntos da Urbanda, primeira banda dos dois, que tinha Luisa Maita nos vocais. Quando Romulo e Morris chegaram no repertório, era hora de buscar o som. Romulo diz que logo de cara percebeu que o violão de náilon de Morris tinha de ser o centro do disco. “Mas eu achei legal ter também uma guitarra e, para além do pensamento artístico, teve o pensamento de trazer o Rodrigo [Campos] de volta para a vida do Morris. E o Rodrigo adorou. E eu pensei que seria legal ter uma outra guitarra e pensei no Allen [Alencar]. E o trabalho começou nessa coisa das cordas”, conta Romulo. “O legal é que o Allen tem essa coisa mais indie na guitarra, toca com palheta, e o Rodrigo tem essa pegada de tocar dedilhando”, sublinha Morris.

“Depois desse núcleo, meu desejo era ter um contrabaixo, uma bateria, para ficar um som mais de banda, de garagem, e eu queria que tivesse uma percussão para trazer um negócio mais brasileiro, uma tribo junto, sabe? Nessa época o [Marcelo] Cabral tava voltando de Berlim, e falei que ele podia ser o baixo. Aí nós convidamos o Igor Caracas que também é um cancioneiro, percussionista de formação e é extremamente criativo, e aí para a cereja do bolo tem a percussão do Felipe Roseno. Quando eu chegava para tocar com eles eu já tinha armado um lance no meu violão, e o bacana é que foi tudo entrando no arranjo, construído em conjunto. E todos são compositores, então tudo fluía muito fácil, mais do que aquele instrumentista que fica preso à música, eles entendem que uma canção vai além da parte musical,”, diz Morris. “Fora esse dream team, apareceram os convidados: Juliana Perdigão, Maurício Pereira, Juçara Marçal, César Lacerda.”

Quando Morris disse a Romulo que queria fazer um disco do Ai Weiwei, Romulo insistiu que o processo determinasse o que seria o disco. “E foi legal, porque foi mudando completamente”, diz Morris.

Romulo, que disse não gostar muito de Ai Weiwei, acabou fazendo outra costura para chegar ao álbum. “Eu tive um trabalho muito de levantar o repertório, mostrar para o Morris que as coisas poderiam caminhar mais. Sabendo que as coisas acontecem ao longo do processo. Quando o Cabral e o Igor entraram, com as guitarras e o violão já levantados, foi um processo muito rápido, logo se mostrou um som de banda, com o violão do Morris comandando, como centro da banda”, diz. “Às vezes ele não parece muito na mix, porque tem um monte de guitarra ensurdecedora e synths, mas em algumas faixas a gente tentava tirar ele e sentia falta, quase como um baixo. Ele tem um violão grave, de MPB, de náilon, muito joão-bosquiano”, completa Romulo.

O final desse processo, que agora viram pedras nesse novo caminho, é bem descrito nas palavras de Romulo: “Acho que é um disco de MPB, no melhor sentido que a MPB já teve algum dia. Um disco de canção, de letras elaboradas, de um cara que faz canção com o violão como norte. Ele não é experimental, não tem pretensões de esgarçar o formato da canção, ele tem a pretensão de fazer canções lindas, e acho que ele fez, e de tirar um som inventivo, e acho que a gente tirou. Dentro do cânone. Tem um conjunto muito forte de canções, e o modo como elas conversam.”

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Pátria Bipolar está disponível nas plataformas de streaming. O clipe tem a seguinte ficha técnica:

Direção, Fotografia, Edição: Luan Cardoso

Designer e letreiros: Will Acosta

Agradecimento especial aos fotógrafos Ricardo Stutkert e Roberto Setton

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