O cartaz de cinema como obra de arte

Criadora do pôster especial de “Bacurau” e objeto de retrospectiva no FestCurtas de Belo Horizonte, Clara Moreira fala sobre o lugar do cartaz na cultura cinéfila

Andrei Reina
Revista Bravo!
10 min readAug 22, 2019

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Detalhe do cartaz especial de “Bacurau”

Uma das últimas etapas no ciclo comercial de um filme, o cartaz costuma atender critérios objetivos, a fim de otimizar a divulgação do título. Um bom pôster deve seduzir o espectador que perambula nos corredores do cinema ou desce a barra de rolagem na programação da semana. Se resumir a história a ser contada e anunciar os atores presentes nela, tanto melhor.

Mas a regra da indústria comporta exceções poéticas, como os cultuados cartazes da chamada Escola Polonesa de Pôsteres, criada após a Segunda Guerra em torno da Academia de Belas Artes de Varsóvia e que, já em 1948, realizou uma grande exposição em Viena. Em exibição estava a arte de divulgar um filme oposta ao imediatismo ocidental. No trabalho de nomes como Henryk Tomaszewski, os títulos são traduzidos de forma autoral, despreocupada em ressaltar estrelas ou antecipar a trama.

No Brasil, o cinema independente dos últimos 13 anos foi acompanhado pelas mãos de uma artista em especial. Desde 2006, Clara Moreira já produziu 67 cartazes para filmes e festivais de cinema — incluindo a identidade visual da Semana dos Realizadores, do Rio de Janeiro, e da Janela Internacional de Cinema do Recife, onde vive e trabalha.

Neste período, destacam-se desenhos para filmes de baixo orçamento que tiveram boa recepção crítica, como Ela Volta na Quinta, de André Novais Oliveira, e A Cidade Onde Envelheço, de Marília Rocha, além de trabalhos múltiplos com os cineastas Gabriel Mascaro e Kleber Mendonça Filho.

Deste último, de quem Moreira já desenhou Recife Frio e O Som ao Redor, a artista produziu o cartaz especial de Bacurau, divulgado em primeira mão na Bravo!. O desenho para o filme premiado no Festival de Cannes destaca o “bicho brabo que só sai à noite” — e que nomeia o longa de Mendonça Filho com Juliano Dornelles — em pleno voo, enquanto caça um inseto.

Parte substancial do trabalho de Clara Moreira com o cinema pode ser visto a partir de 30 de agosto no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, onde cerca de 50 cartazes serão exibidos ao lado dos desenhos originais, sempre feitos a mão. A mostra integra a programação do Festival Internacional de Curtas de BH, que realiza ainda, no dia 3 de setembro, o debate “Filmes e(m) cartaz: cinema, artes visuais e artes gráficas”, com a presença da desenhista.

Em entrevista à Bravo!, Clara Moreira comentou a concepção do cartaz especial de Bacurau, as especificidades do trabalho com o cinema e o lugar ocupado pelo cartaz na cultura cinéfila. “Acompanhei desde a adolescência o surgimento dessa produção de cinema brasileiro e, em Pernambuco, o surgimento do que viria a ser esse polo de produção de cinema independente. Eu estava lá quando não era possível fazer um filme. Então até hoje tem um sabor de preciosidade. A gente celebra muito quando um filme é feito”, diz ela.

Como foi a elaboração do cartaz especial de Bacurau?

O Kleber fez uma sessão no processo da montagem do filme, quando estava terminando o corte final. Ele convidou um grupo de amigos pra assistir, e eu vi nessa circunstância. Naquele momento eu não sabia que ia fazer um cartaz, porque um filme do tamanho de Bacurau, uma coprodução internacional, com distribuidoras no mundo inteiro… normalmente não é aí que eu trabalho, esse tipo de cartaz com um pensamento mais publicitário e comercial. É um tipo de cartaz que precisa existir, dependendo do filme, precisa dessa linguagem mais comercial. Mas não é o tipo de cartaz que eu sei fazer. Então imaginei que não iria fazer o cartaz de Bacurau. Um dia depois de saber que eles tinham sido selecionados para Cannes, Silvia Cruz, da Vitrine Filmes, me ligou e a proposta era fazer não o cartaz oficial que ia para as salas de cinema, mas fazer um cartaz especial. Quando chegou o convite, eu ainda estava com o filme muito forte dentro de mim. É um filme muito impactante e emocionante.

Como foi a pesquisa para desenhar esse bicho tão enigmático?

Os primeiros traços do bacurau

Ele é um pássaro bem complicado e muito interessante. Quando você vai fazer uma pesquisa de imagem sobre a ave, você encontra muita foto do bacurau pousado no chão, relaxando, quieto, fofo até. Ele faz ninho no chão. Esse é um dos motivos por quais ele é todo rajadinho assim. Ele se camufla na terra, na folhagem. Tem uma série de padrões nas penas dele que vão reproduzindo um pouco o chão. E é muito bonito, na verdade, são vários padrões distintos. Essas imagens, em geral captadas durante o dia, mostram o bacurau descansando porque ele é um animal de hábitos noturnos. Durante o dia ele descansa e, à noite, sai pra caçar. A principal característica do bacurau é que ele é um superpredador. Ele tem um bico bem pequenininho, mas o rasgo da boca é imenso, porque ele come inclusive insetos grandes, como vespas. Ele caça e come voando, ele abocanha esses insetos no voo. É uma cena rara de ser captada. Isso traz a gente para uma frase que é dita no filme sobre o bacurau: “É um bicho brabo, que só sai à noite.” Então foi natural que ele fosse desenhado à noite, quando está ativo, caçando, sobrevivendo. Esse ataque nada mais é do que ele sobrevivendo.

Você tem um método para fazer um cartaz ou ele muda conforme o filme?

É impossível ter um método, porque como eu trabalho dentro desse ambiente da produção independente — curtas-metragens e pequenos filmes de baixo orçamento — digamos que é tudo muito pessoal, a partir da direção. Raramente tenho relação com distribuidoras, produtores. É sempre uma relação muito direta com o autor do filme. E sendo assim acaba variando muito, porque são pessoas com desejos e expectativas diferentes entre si e que produzem filmes diferentes entre si, com processos muito particulares. E mesmo quando é um mesmo realizador, cada filme guarda tantas especificidades que não dá pra reproduzir o processo. Com Gabriel Mascaro, por exemplo, foi um processo totalmente diferente fazer Um Lugar ao Sol, Avenida Brasília Formosa e Doméstica. Não tem um método fixo, é realmente determinado por cada um desses encontros e por como eu estou naquele momento, como o filme bate em mim.

Então a postura para fazer um cartaz não difere de uma obra sua, mesmo sendo uma encomenda?

Por mais que fazer um cartaz atenda uma demanda que é externa, ela passa pelo meu corpo. Eu uso o desenho pra fazer cartazes. Quando todas essas informações entram no corpo e viram desenho, elas me atravessam. Mesmo quando é uma demanda mais objetiva. Às vezes o realizador tem uma imagem bem esquematizada do que ele quer ver num cartaz. Mesmo assim atravessa o corpo e vira uma coisa que passou por dentro de mim. Leva um pouco do meu momento, dos meus interesses, curiosidades, desejos, sentimentos. Passa por mim, mas a provocação e a inspiração vêm também desse mergulho no outro, desse mergulho no filme.

Como a produção de cartazes para cinema surgiu como uma possibilidade?

Eu nunca imaginei e não pretendia ser artista. Na minha infância eu sempre desenhei, meus pais me estimulavam, mas na adolescência decidi ser arquiteta e urbanista. Entrei na faculdade de arquitetura querendo estudar teoria urbana. Me formei com um trabalho de conclusão de curso sobre legislação urbanística, entrei no mestrado pra fazer um mapeamento de ocupações e movimentos de luta por moradia na região metropolitana no Recife. E sempre estive desenhando. Na graduação, o curso de arquitetura ficava no Centro de Artes e Comunicação [da Universidade Federal de Pernambuco], onde tinha o Cineclube Barravento, fundado por Marcelo Pedroso, Leo Sette, Juliano Dornelles. Eu frequentava o cineclube e Juliano fazia os cartazes. Era um super desenhista, um super artista. A gente tinha uma comunidade cinéfila no Recife, que circulava ao redor do Barravento e da Fundação Joaquim Nabuco, onde Kleber era programador. Eu desenhava, estava por ali vendo as sessões e em um momento substitui o Juliano. Comecei a fazer os cartazes do cineclube. Dali um tempo todo mundo se formou, o cineclube se desfez e muita gente continuou trabalhando, agora fazendo seus próprios filmes e seus próprios festivais e mostras. E eu continuei acompanhando essas produções, fazendo cartazes.

Em que ano foi isso?

Eu comecei a frequentar o Cineclube Barravento em 2002, quando entrei na faculdade, comecei a fazer os cartazes em 2004 ou 2005, e o primeiro filme que eu fiz um cartaz foi em 2006. Foi o Eisenstein, um curta de Tião, Raul Luna e Leo Lacca. Aí fiz Décimo Segundo, Muro, depois fiz o cartaz do Janela Internacional de Cinema do Recife, festival que Kleber dirige e que teve a sua 11ª edição no ano passado. Fiz todos os cartazes do Janela. Em um momento da minha vida, fui morar em Belo Horizonte, larguei um pouco a carreira acadêmica e fiquei mais dedicada ao desenho e ao ateliê. Quando vi, estava fazendo isso da vida, sendo desenhista, artista e cartazista.

Qual o lugar do cartaz nessa cultura cinéfila?

A dimensão da circulação desses filmes do circuito independente é muito doméstica, afetiva. Um cartaz é sempre visto nesse contexto. Até hoje o circuito tem essa dinâmica da proximidade, as pessoas se conhecem. E ainda se tem uma coisa de comemorar a possibilidade de fazer um filme. É um feito muito especial, ainda mais pra minha geração. Eu tenho 35 anos e acompanhei desde a adolescência o surgimento dessa produção de cinema brasileiro e, em Pernambuco, o surgimento do que viria a ser esse polo de produção de cinema independente. Eu estava lá quando não era possível fazer um filme, quando não era fácil. Então até hoje tem um sabor de preciosidade. A gente celebra muito quando um filme é feito. O cartaz representa um pouco o filme feito, o filme pronto.

Como foi a experiência de expor seus cartazes em Portugal?

Há dois anos eu comecei uma experiência de produzir meus desenhos mais por conta própria, essa produção mais independente e autoral minha. E aí chegou esse convite de Américo Santos, diretor do Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira, em Portugal. Foi aí que parei para olhar que eu tinha feito tantos cartazes e que já tinham se passado 10 anos. Eu não estava contabilizando, eu estava fazendo. Então tem um caráter de retrospectiva e tem uma vontade de, através desses cartazes, falar um pouco sobre 10 anos de produção do cinema independente brasileiro. É um recorte bastante específico, mas expressivo. E calhou de ser um momento em que exatamente essa produção mais independente está sob ameaça, com o presidente falando sobre extinguir a Ancine ou querer colocar condições para que tipo de filme pode ser feito. Poder olhar o conjunto de filmes que esses cartazes representam, tão diversos e de diferentes lugares do Brasil, nesse momento, foi bom. Foi como um testemunho histórico também.

E como será a mostra em Belo Horizonte?

Vai ser maior do que a de Portugal porque a gente também vai expor alguns desenhos originais, entre 15 e 20, e isso amplia um pouco a exposição para além do produto gráfico que é o cartaz. Mostra o processo que tem atrás, desse desenho feito a mão, artesanal, no papel.

Parte expressiva do cinema independente brasileiro feito nos últimos anos passou pela sua mão. Há alguma coisa que una esses filmes? O que diz essa geração?

Isso que eu estou chamando de cinema independente talvez seja o que una esses filmes, porque é algo feito de um jeito muito livre, que tem a criação artística no centro da produção, determinando as escolhas do que o filme vai ser. É um ambiente muito apaixonado. Eu trabalhei em projetos que envolvem muita paixão e muita luta, porque não tem muito dinheiro. Cada um desses filmes realmente era o sonho das pessoas que estavam envolvidas. Categoricamente, dá para afirmar isso: cada filme desses envolve um sonho imenso.

*O cartaz de “Animal Político” é uma parceria com Raul Lunna

Vislumbres de Uma História de Cinema — Cartazes por Clara Moreira. De 30 de agosto a 30 de setembro. Palácio das Artes — Fundação Clóvis Salgado: Av. Afonso Pena 1537, Centro — Belo Horizonte — Minas Gerais.

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