O crítico vai ao cinema
Ismail Xavier comenta três dos nove filmes selecionados por ele para a mostra Carta Branca, do Instituto Moreira Salles, que começa nesta quinta-feira
Quais são os filmes fundamentais para a formação de um crítico de cinema? As respostas certamente variam — como variam a produção cinematográfica e os critérios de sua avaliação no tempo. Mas uma mostra no Instituto Moreira Salles Paulista exibe, a partir desta quinta-feira (17), um conjunto de filmes representativo de uma das mais influentes gerações do cinema (e da crítica).
Com liberdade para selecionar nove títulos para a mostra Carta Branca, Ismail Xaiver se impôs apenas duas regras: “incluir apenas filmes realizados no hemisfério norte, de um lado e de outro do Atlântico, e não escolher dois filmes do mesmo cineasta”. A seleção reflete os anos de formação do crítico nos anos 60 e a sua atividade como professor da Escola de Comunicações e Artes da USP.
Conhecido por análises minuciosas do cinema brasileiro — em livros como Alegorias do Subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo e Cinema Marginal e Sertão Mar: Glauber Rocha e a Estética da Fome —, que davam continuidade à tradição crítica estabelecida por Paulo Emílio Sales Gomes, Ismail também expressou preferência por “filmes que trazem em seu programa poético uma nítida reflexão sobre o próprio cinema” em sua seleção.
Nas sessões de abertura, o crítico fará uma breve apresentação de Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela, de Jean-Luc Godard, e Um Corpo que Cai, de Alfred Hitchcock. No sábado (19), a sessão de O Eclipse, de Michelangelo Antonioni, será seguida de debate entre Ismail e Richard Peña, professor de cinema da Universidade Columbia, de Nova York.
A mostra inclui ainda clássicos europeus como O Anjo Exterminador, de Luís Buñuel, O Casamento de Maria Braun, de Rainer Werner Fassbinder, e Hiroshima, Meu Amor, de Alain Resnais; o documentário experimental soviético Um Homem com uma Câmera, de Dziga Vertov; o faroeste americano O Homem que Matou Facínora, de John Ford; e o longa cubano Memórias do Subdesenvolvimento, de Tomás Gutiérrez Alea.
A unidade carioca do IMS exibe a mostra a partir do dia 26, com a mesma programação.
A pedido da Bravo!, Ismail Xavier comentou três dos filmes selecionados para a mostra: Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela, O Eclipse e Um Corpo que Cai. Leia a seguir.
Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela (1967)
“Todos os filmes da mostra foram escolhidos porque tiveram um papel especial na minha iniciação ao cinema a partir de 1965, ou tiveram uma presença reiterada em minha atividade de professor, sendo obras a que retornei com prazer ao longo dos anos e pelas quais tenho especial apreço. Por outro lado, minha escolha expressa uma preferência pelos filmes que trazem em seu programa poético uma nítida reflexão sobre o próprio cinema, como é o caso de Duas ou Três coisas que Eu Sei Dela, de Jean-Luc Godard, um exemplo de filme-ensaio no qual se reconhece as imagens-e-sons como modalidades do ensaio enquanto ‘forma que pensa’; é um filme no qual a subjetividade do cineasta se expande e se expressa pela voz que conduz a representação, interpelando conceitualmente o próprio cinema.
Temos uma articulação do documentário sobre as obras de modernização de Paris com o cotidiano da protagonista representado em suas ações e na referência direta a seus devaneios. Lembro a sequência em que a protagonista está à espera de seu carro num lava-rápido e Godard faz uma reflexão sobre a própria cena em que a ausência da ação não se reduz a um intervalo sem expressão, mas trás toda a espessura de um instante que o cinema capta de modo a lembrar a frase de George Méliès em 1895, ‘no cinema as folhas se agitam’ para marcar seu deslumbramento diante da capacidade do cinema expressar estes momentos fugidios estampados no gesto da personagem, num encontro fortuito, num rosto, explorando estes pequenos condensados de experiência.”
O Eclipse (1962)
“Em O Eclipse, de Antonioni, ao lado da já comentada forma pela qual o cineasta redefiniu a espessura do tempo e dos momentos de inação de suas personagens, temos uma cena de encontro dos protagonistas na qual, no tateamento da relação entre ele e ela, há o momento em que, literalmente, há a imagem das folhas agitadas ao vento, como que para rimar com o meneio de cabeça de Monica Vitti, e dar densidade a estes estremecimentos que estão em sintonia com o momento das personagens. Momento de inação e expectativa tornado uma ocasião de pensar em sua sintonia fina com pequenas dobras do tempo.
Temos nestes dois casos uma ‘consagração do instante’ que é a marca do poético segundo Octavio Paz. Tais pontos de inflexão têm sentido distinto no cinema destes dois cineastas, pois a forma como Antonioni trabalha o descompasso entre a sensibilidade de sua protagonista e o ritmo da vida urbano-industrial no ritmo do capital financeiro é distinto do modo como Godard o faz, o que não retira a afinidade entre os dois cineastas. Temos aí dois casos de cineastas inovadores no cinema moderno.”
Um Corpo que Cai (1958)
“Um Corpo que Cai, de Alfred Hitchcock, é outra obra-prima que traz no seu programa poético a reflexão sobre o próprio cinema, uma aula sobre o cinema clássico-industrial que encontra neste thriller do maior mestre do gênero seu próprio espelho. O plano urdido por Elster para matar a sua esposa se constrói a partir de uma trama na qual ele próprio atua como o manipulador dos cordéis que deve permanecer oculto, de modo que a sua trama se desenvolva como um filme calibrado para impressionar um sujeito que ele conhece e escolhe para ser a figura de espectador-testemunha mais ajustada ao efeito que ele procura. Deste modo, temos aí a metáfora: o autor do crime perfeito é como o diretor de um filme clássico, ou o cineasta é autor de um crime perfeito ajustado à demanda do espectador cuja demanda ele conhece como ninguém.”
Mostra Carta Branca: Ismail Xavier: São Paulo: de 17 a 27 de maio. Ingressos de R$ 4 a R$ 8. IMS Paulista: Avenida Paulista, 2424 — Bela Vista — São Paulo. Veja a programação. Rio de Janeiro: de 26 a 31 de maio. Ingressos de R$ 4 a R$ 8. IMS Rio: Rua Marquês de São Vicente, 476 — Gávea — Rio de Janeiro. Veja a programação.