O disco que diz “vou” vem sim

Matheus Pimentel
Revista Bravo!
Published in
4 min readNov 29, 2016

“Parceria é um casamento sem sexo”. Seguindo o raciocínio de Silvia Powell, viúva do violonista Baden Powell, 2016 marca as bodas de ouro de uma das empreitadas mais consagradas da música brasileira: Os Afro-Sambas, de Vinicius de Moraes e Baden. A festa não poderia ser melhor do que um relançamento — justamente o que está por vir.

Os amigos Baden, sempre ao violão, e Vinicius. (Foto: VM Cultural/Reprodução)

“Eu sempre quis fazer Os Afro-Sambas, como qualquer [disco] clássico de Caetano ou João Gilberto”, diz Rafael Rocha, diretor de criação da revista gaúcha de música Noize, responsável pelo relançamento do disco, por meio do seu Record Club. Para ele, o disco está no mesmo patamar de cânones como Transa ou Gilberto Gil (1968). Foi a VM Cultural, empresa que administra a obra de Vinicius, que fez o primeiro contato para providenciar um relançamento, fato que, segundo Rafael, deixou o Noize Record Club “muito honrado”.

Nas palavras de Georgiana de Moraes, filha do poeta, Vinicius vivia com intensidade cada empreitada artística, mas logo partia para uma coisa nova. Assim foi também com Os Afro-Sambas, compostos em clima de diversão e boemia com o amigo Baden, que na época foi visitá-lo e acabou passando três meses em seu apartamento. Quando firmaram a amizade e a parceria, numa época em que os dois se fascinaram pelas músicas do candomblé e inclusive viajaram para beber dessa fonte na Bahia, ele já era um homem da música, pontua Georgina. Na fase mais bossa nova, era visto como “um diplomata que cantava”.

Diferentemente de Vinicius, Baden já conhecia as cantigas de candomblé desde menino. Silvia me conta que os pais dele tinham um amigo que praticava a religião e recebia um caboclo, e o homem encantava o menino Baden.

“Essas antenas que Baden tem ligadas para a Bahia e, em última instância para a África, permitiram-lhe realizar um novo sincretismo: carioquizar dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro brasileiro dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal. (…) É esta, sem dúvida, a nova música brasileira e a última resposta que dá o Brasil — esmagadora — à mediocridade musical em que se atola o mundo. E não digo na vaidade de ser letrista dos mesmos; digo-o em consideração a sua extraordinária qualidade artística, à misteriosa trama que os envolve: um tal encantamento em alguns que não há como sucumbir à sua sedução, partir em direção ao seu patético apelo.”
— Trecho do
texto de Vinicius no encarte original do LP e que também estará presente no relançamento

Capa do LP original, de 1966.

Tanto Silvia quanto Georgiana concordam que houve sim uma “carioquização” dos sons do candomblé, como escreveu o poetinha. Sobre “uma dimensão mais universal”, Silvia ressalta que um mérito do disco foi levar para o público geral a sonoridade dos terreiros, então conhecida apenas por quem os frequentava. Com licenças poéticas, claro, afinal os tais afro-sambas estavam longe de seguir à risca o que se ouvia no candomblé.

“Eu perguntava pra ele [Baden] se tinham reclamado disso [diferenças entre músicas do candomblé e as do disco], ele respondia que não e dizia ‘eu não queria botar um terreiro num disco, queria mostrar que essa música é boa e que pode ser tocada, ouvida e apreciada por outras pessoas e em outros lugares’ ”, conta Silvia. Para Georgina, os dois consagraram a música do candomblé com o prestígio que possuíam, algo que vê como positivo.

Nos últimos anos da sua vida, Baden deu uma guinada no que diz respeito aos afro-sambas: em 1990 regravou o disco, mantendo as canções quase idênticas às originais (Vinicius morrera uma década antes), e, anos depois, não quis mais tocá-los — tornara-se evangélico. Chegou a se referir ao termo “saravá” como “um louvor a satanás”.

O homem que diz “dou” não dá…

O disco será o primeiro clássico lançado pelo Noize Record Club, o que, segundo Rafael, representa um marco para o selo, que funciona como um grupo de assinatura com discos lançados a cada semestre. Atualmente em fase de finalização, o novo Afro-Sambas deverá ser enviado aos assinantes ainda neste ano.

Pergunto a Silvia, Georgiana e Rafael se têm uma faixa preferida. Como era de se imaginar, a resposta vem unânime e pode ser sintetizada nas palavras de Silvia: “se você tivesse que apresentar os afro-sambas por um música, seria o Canto de Ossanha”. A canção, que já ganhou o mundo muito antes de ser cantada na abertura dos Jogos Olímpicos por Elza Soares, tinha mesmo de abrir o disco. Amigo sinhô, saravá!

--

--