O elo das mulheres

Duas mostras que abrem no Masp tecem genealogia de mulheres artistas, ligando produções de antes e de depois do século 20

Paula Carvalho
Revista Bravo!
6 min readAug 15, 2019

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Kaj Osteroth & Lydia Hamann. Staying with the trouble, 2019. Oil on canvas, 140 x 240 cm. Cortesia das artistas Crédito: Kaj Osteroth & Lydia Hamann

Depois do sucesso da exposição de Tarsila do Amaral, que bateu o recorde de visitas na história do Masp com mais de 400 mil visitantes, abrem nesta sexta-feira (23) as duas principais mostras do ano no museu. Histórias das mulheres: artistas até 1900 e Histórias Feministas: artistas depois de 2000 ligam as pontas menos exploradas da arte feita por mulheres. A primeira parte tem curadoria e pesquisa de Julia Bryan-Wilson, Lilia Schwarcz e Mariana Leme, e a parte contemporânea, de Isabella Rjeille.

Uma instalação de 2014 de Ditte Ejlerskov and EvaMarie Lindahl, que estará na parte contemporânea da exposição, talvez seja o maior símbolo da conexão entre os mundos pré-século 20 e século 21. Em About: The Blank Pages, as artistas questionam a presença de apenas 5 mulheres entre 97 livros de artista publicados pela série Taschen Basic Art Series, uma das mais famosas do mundo da arte. Elas criaram, usando o mesmo design das capas da editora, mais de 100 outros livros, com páginas em branco, de artistas como Sofonisba Anguissola, Louise Bougeois, Artemisia Gentileschi, Yoko Ono, Cindy Sherman — diversas das quais estarão na exposição complementar.

“Em vários pontos as mostras conversam. Partes do século 21 fazem referências às artistas da outra exposição. Pesquisar artistas mulheres é um caminho parecido, um processo de arqueologia”, afirma Rjeille. No seu trabalho, a grande novidade está nas obras criadas para a exposição, a partir do convite para que artistas, tanto do Brasil como de fora, pesquisassem e explorassem temáticas nacionais. Assim surge, por exemplo, Staying with the trouble, da dupla alemã Kaj Osteroth & Lydia Hamann, que retrata diversas das nossas artistas numa cena de cumplicidade, dividindo um momento de descontração com referências a Lina Bo Bardi, Rosana Paulino, Lygia Clark, Djanira, entre outras. Ligada a movimentos sociais, a colombiana Carolina Caycedo desenvolveu um de seus bordados que são dispostos para serem usados nas mostras com as mulheres do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que farão uma performance neste sábado, após a inauguração.

Já o trabalho de Bryan-Wilson, Schwarcz e Leme envolveu uma pesquisa maior entre acervos, coleções pessoais e pequenos museus como a Casa da Hera, no Rio de Janeiro, ou do Museu de Hábitos e Costumes, de Blumenau (SC). O trabalho também incluiu uma investigação entre grandes museus em busca do acervo de artistas mulheres — boa parte dos quais ficam nas reservas técnicas ou acervos, e não expostos.

Mas houve diversas artistas famosas em seu tempo. Mary Beale (1633–1699), retratista do período barroco, foi uma das artistas inglesas mais conhecidas de sua época. Era tão famosa que o seu marido, também pintor, passou a atuar como seu assistente no ateliê, criando as tintas e organizando o trabalho. Élisabeth-Louise Vigée-Le Brun (1755–1842), francesa do período neoclássico, foi pintora da corte, retratista oficial de Maria Antonieta. Ganhava bem, era reconhecida, e fez cursos em diversos lugares do mundo. Com a Revolução Francesa, se exilou e perdeu parte do reconhecimento que tinha no país.

Mary Beale Portrait of a young girl, sem data. Oil on canvas, 52 x 44 cm. Philip Mould and Company, London, UK. Crédito: Cortesia Philip Mould and Company

"A gente tende a perceber a história como progresso, mas no caso das mulheres a Revolução Francesa foi muito ruim. Elas [as mais ricas, ou ligadas à corte] tinham um acesso maior, eram bem remuneradas, trabalhavam para a corte, podiam estudar. Tanto que a [suíça] Angelica Kaufman é uma das fundadoras da Royal Academy of Art. E três anos depois da Revolução Francesa, as mulheres são proibidas de trabalhar", lembra Mariana Leme. Olympe de Gouges (1748–1793), dramaturga que escreveu, na época da Revolução Francesa, a irônica Declaração dos Direitos da Mulher, por se opor ao modo como as relações entre homens e mulheres estava posta na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, foi guilhotinada pelos jacobinos.

Outro desafio da exposição foi o de contornar, também, desigualdades que partem não apenas das questões de gênero, mas de classe, raça, situações de colonização e geografia. A mostra vai além da produção europeia com destaque, também, para as artistas brasileiras, como Abigail de Andrade e Bertha Worms, e para a produção pré-colombiana de rendas. Sabe-se que eram as mulheres que produziam esses trabalhos porque elas eram enterradas com suas ferramentas de tecer. Aliás, o grau de importância a que são atribuídos trabalhos em renda e bordados, em contraposição à pintura, por exemplo, também é uma outra questão da obra das mulheres na arte. Enquanto a pintura é tida como uma atividade artística, a costura e outras técnicas— especialmente entre mulheres de fora do eixo europeu — são consideradas apenas decoração.

Além da discussão historiográfica — que questiona por que não conhecemos estes nomes, suas histórias, seus estilos, sua importância — a exposição também faz, através das próprias obras, uma problematização sobre a desigualdade nas condições de trabalho. Nos ateliês pós-Renascimento, por exemplo, enquanto os homens tinham o privilégio de estudar anatomia e conhecer as formas do corpo humano, era vedado às mulheres o acesso à pintura histórica, à pintura religiosa e à pintura de academia, além de diversas temáticas. Nas próprias aulas, retrata-se, as mulheres dividiam um ateliê abarrotado, enquanto os homens tinham espaço e tempo livre. Emily Mary Osborn (abaixo) mostra o constrangimento de uma mulher tentando vender seu trabalho.

Emily Mary Osborn- Nameless and Friendless. “The rich man’s wealth is his strong city, etc.” ‑ Proverbs, x, 15, 1857. Oil paint on canvas, 82,5 x 103,8 cm. Tate London

O Brasil pré e pós-século 20 também se conecta na mostra. Um dos exemplos são as duas artistas que têm origens na cidade de Vassouras, no Rio de Janeiro. Abigail de Andrade, filha de família da elite cafeeira, estudou no Liceu de Artes e Ofícios a partir de 1882, logo que foi permitida a frequência de mulheres na escola. Foi premiada na 26ª Exposição Geral de Belas Artes, celebrada por críticos da época, e viveu um romance proibido com Angelo Agostini. Ficou grávida, e teve que se mudar para Paris para fugir do escândalo. Já Aline Motta, que mostra pela primeira vez o trabalho Filha Natural na Histórias Feministas, vem de uma origem oposta. No vídeo, uma fabulação sobre a sua tataravó, Francisca, ela mistura história, realidade e ficção, e convida uma liderança da região, Claudia Mamede, para investigar questões de genealogia e história.

Aline Motta — Filha natural, 2018–2019. Fotografia digital, 125 x 70 cm. Coleção da artista

Ao comentar o trabalho de Kaj Osteroth e Lydia Hamann, Isabella Rjeille lembra que elas propõem uma nova relação entre as mulheres. “Partem da ideia de admiração como ferramenta radical de se pensar outra relação possível entre as mulheres. Em que o afeto seja uma das maneiras possíveis, capaz de mudar as coisas”. Muitas vezes, nessas biografias e obras, as complicações pelas quais as artistas passaram têm relação com o fato de serem mulheres. Pensar a exposição a partir dessa genealogia pode ser uma forma de sonhar histórias diferentes.

HISTÓRIAS DAS MULHERES: ARTISTAS ATÉ 1900 E HISTÓRIAS FEMINISTAS: ARTISTAS DEPOIS DE 2000
De 23 de agosto a 17 de novembro de 2019
Masp — avenida Paulista, 1578, São Paulo, SP
Horários: quarta a domingo: das 10h às 18h (bilheteria aberta até as 17h30); terça-feira: das 10h às 20h (bilheteria até 19h30)
Ingressos: R$ 40 (entrada); R$ 20 (meia-entrada)

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Paula Carvalho
Revista Bravo!

jornalista, doutoranda em sociologia na usp. quase tudo em torno de som 🎛 pra mandar mensagem: paula.cncarvalho@gmail.com