O Espelho

Rafael Ventuna
Revista Bravo!
Published in
6 min readNov 26, 2021

Na Ocupação Mirada 2021, a Companhia Brasileira de Teatro, dirigida por Marcio Abreu, explica “Sem Palavras” o que aconteceu com o Brasil

Vitória Jovem Xtravaganza procura por sua imagem refletida © Nana Moraes

A mulher de peito e pênis atravessou novamente por entre as mesas na varanda da pizzaria. Nunca pronunciaram seu nome. Todos a chamavam por “silêncio quando ela passa”, “olhares de rabo de olho” e “balançadinhas negativas com a cabeça”.

Os cabelos dela eram loiros na proporção que seus recursos podiam prover. Vestia-se, digamos assim, no estilo sexy sem ser vulgar. Sandálias sem salto. Um jeans justo ao corpo. Uma blusa estampada de mangas curtas. E, na cabeça erguida, um sorriso amigável no rosto.

Seu desfile pelas mesas perfiladas continuava com sua entrada pela porta. Atravessava o caixa e o balcão. E caminhava até o fundo, onde ficavam os banheiros masculino e feminino.

Esta cena se repetia nas minhas férias escolares no estabelecimento dos meus tios Valdir, Deley e Adriano na Praça do Coreto, à época, o ponto mais movimentado de Jaraguá, cidade do interior de Goiás. Era lá que a burguesia gostava de gastar a recém lançada moeda, cujo nome Real não suportou a “real” realidade brasileira.

Uma vez eu ouvi alguém dizer por entre risadinhas sarcásticas:

— E aí? Você acha que ela vai entrar no banheiro dos homens ou das mulheres?

A movimentação intensa para atender os comensais fazia com que meus tios me dessem no máximo um abraço e um pedaço de pizza. Também me deixavam escolher um chocolate. Eu nunca fui fã de chocolate. Então, sempre escolhia o mesmo. O Surpresa. Porque vinha com um cartão que descrevia uma espécie de dinossauro. Paleontologia era minha fixação naquela fase da adolescência.

Era fácil, com os cartões do chocolate, compreender os conceitos de diversidade e poder. Herbívoros. Carnívoros. Onívoros. Uns voavam. Outros viviam sob as águas. Por mais que fossem diferentes uns dos outros, aqueles animais pertenciam ao mesmo grupo: o grupo de dinossauros. Cuja cadeia alimentar era o que ditava a hierarquia, criando a distinção entre presas e predadores.

Eu ainda ficava por ali fingindo estar de bobeira. Esperando que alguém me escalasse para alguma tarefa. Numa dessas, um funcionário, ocupadíssimo fechando caixas que sairiam para entregas, me pediu para repor papel higiênico nos banheiros.

Quando eu achei o pacote dos rolos de papel por entre as pilhas de caixas de cerveja que ficavam no acesso aos banheiros, me deparei com a loira. Ela olhou para mim, depois para os rolos nas minhas mãos e disse como quem jamais fosse interromper a minha missão neste exato tempo verbal:

— Eu só venho aqui olhar no espelho.

Viní Ventania Xtravaganza sangra ao lembrar a virulência dos estilhaçamentos © Nana Moraes

Reflexos
Como tudo vive seu apogeu e declínio, a Praça do Coreto perdeu sua graça. A sociedade dos meus tios se desfez e cada um seguiu por um caminho. Há décadas não volto lá. E não tenho informação do que teria acontecido à loira.

Desde 2017, quando foram amplamente divulgadas as imagens do espancamento e assassinato hediondo de Dandara dos Santos, eu ainda não consegui visualizar completamente o vídeo. De alguma forma, o horror sem tamanho do ódio exacerbado que matou a travesti Dandara Kettley, me faz pensar em muitos sorrisos amigáveis que espelhos já não refletem mais.

Em que pesem as metodologias das pesquisas, pois há países onde não se pode realizar levantamentos nem se pode confiar em dados sobre a violência fatal contra pessoas trans, o Brasil desgovernado permanece na inaceitável liderança do ranking da mortalidade desta população.

Como todo reflexo é a imagem invertida, o Brasil ainda lidera outro ranking: o de consumo de pornografia trans.

É um fato que nos deixa “sem palavras”, não é mesmo?

Trago no parágrafo seguinte um dado ainda mais chocante. Que em parte ajuda a entender a profunda crise de identidade nacional sofrida pelos brasileiros, reflexos de suas escolhas, que parecem não mais permitir o reconhecimento de sua imagem nem da sua semelhança. E, por isto, buscam uma “terceira via”.

Reza a crendice popular que, quando um espelho quebra, sete anos seguidos serão de azar.

Vou dar um exemplo. Imagine que, durante um impeachment iniciado em 2015, um espelho é quebrado. O período entre 2016 a 2022 contém sete anos.

Rafael Bacelar prestes a se estilhaçar © Nana Moraes

Estilhaços
Quando a nudez da mulher de peito e pênis cruza o palco, a plateia já está sentada. O nome desta travesti é Vitória Jovem Xtravaganza.

O espaço cênico é uma grande área quadriculada forrada por linóleo branco. Ao fundo e à esquerda, um banco de aproximadamente três metros de comprimento sugere um ambiente interno. Uma sala talvez. Toda a caixa cênica está exposta. Há um volumoso plástico branco sobre o chão. Após seu solo introdutório, Vitória se cobre com esse plástico, liberando a área.

Na sequência, a dinâmica é uma constante. Os intérpretes Fábio Osório Monteiro, Giovana Soar, Kauê Persona, Kenia Dias, Key Sawao, Rafael Bacelar, Viní Ventanía Xtravaganza e Vitória se revezam em seus monólogos. Pelo histórico profissional diversificado deste elenco, uns tendem mais à dança, outros à performance e outros ao teatro, colando também fragmentos de slam e voguing.

Representam corpos dissidentes que sofrem com ataques de racismo, xenofobia, gordofobia, misoginia, homofobia, machismo, transfobia, etarismo, dentre outras violações. O microfone é um elemento importante para momentos de amplificação das vozes desses corpos.

Na errância de suas caminhadas pelo palco, esses corpos vão se estilhaçando. Voam cacos para todos os lados. Então, estes estilhaços começam a ser expostos à plateia. Cada fragmento é um pequeno espelho onde se vê refletida a hipocrisia da decadente pequena burguesia.

Na previsível ausência de reflexo em um público trans na plateia, Viní e Vitória aparecem em muitas cenas como uma imagem espelhada.

O diretor Marcio Abreu escolheu novamente correr muitos riscos. A peça está modulada em uma frequência vibratória despedaçante que somente é alcançada pelo ator Rafael Bacelar e o diretor musical Felipe Storino, que permanece no proscênio compondo a trilha sonora em tempo real. O que é preciso destacar, de fato, é que os demais intérpretes vibram outras potências. Dando a sensação que a dramaturgia também estilhaça. Isto poderia ser compreendido pela forma como a Companhia Brasileira de Teatro se organiza, pois, a cada trabalho, um novo elenco é formado.

“Sem Palavras” foi produzida em parceria com Künstlerhaus Mousonturm Frankfurt am Main, Théâtre Dijon Bourgogne — Centre Dramatique National e A Gente Se Fala Produções Artísticas, com apoio do Passages Transfestival Metz e correalização com o Centro Cultural Oi Futuro. Este grupo de artistas viveu um processo criativo com atividades remotas e presenciais em 2020 e neste ano, com espaçamentos no cronograma, até as estreias em setembro e outubro na Europa e a primeira sessão no Brasil.

A escolha para ser a peça de abertura da Ocupação Mirada 2021, no teatro do Sesc Santos, garantiu a continuidade da linha curatorial do festival ibero-americano, que, por não ter sido realizado no ano passado, retorna desta vez em versão reduzida e híbrida.

Os 110 minutos de apresentação desgastam o texto. Que aliás é imenso. Fica difícil acompanhar tantas narrativas fragmentadas. Mesmo para um assíduo frequentador de teatro, o texto exige muito. E ainda compete com imagens muito fortes. Há uma profusão delas.

A cenografia clean de Marcelo Alvarenga dialoga perfeitamente com a branca luz proposta pela iluminadora e dramaturga Nadja Naira, revisitando a paleta de cores muito presente em montagens europeias, permitindo que o figurino elaborado por Luiz Cláudio Silva traga a cor preta como símbolo de luto. A iluminação vai além e encontra uma função fundamental na dramaturgia, ressaltando a sensibilidade quase cinematográfica de Nadja.

“Sem Palavras” é um encaixe de estilhaços das singularidades em ameaça. Quando menos se espera, o grande mosaico de fragmentos está à frente da plateia. Não existem palavras que descrevam o que se vê. Mas tudo explica o que aconteceu com o Brasil. Se seremos capazes de forjar novos espelhos, não se sabe. Enquanto isso, como disse Viní em cena, a gente vai inventando os nossos dias. Caminhando até o fundo só para se olhar no que sobrou do espelho.

Ocupação Mirada 2021
24 a 28 de novembro
Grátis ou R$ 20 a R$ 40
Programação híbrida completa em https://mirada.sescsp.org.br/*

*Para as atividades presenciais verificar os protocolos de segurança sanitária como apresentação de certificado de vacinação e uso de máscara.

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