O nado sincronizado de Letrux

Crítica: Com o livro "Tudo que já nadei", Letícia Novaes mostra-se uma autora de seu tempo.

Renato Gonçalves
Revista Bravo!
6 min readApr 22, 2021

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Foto de Ana Alexandrino

A produção pandêmica começa a mostrar os seus frutos. Imersos em uma pandemia que já dura mais de um ano, nós, brasileiros, párias do mundo e talvez até mesmo de nosso próprio país, estamos às voltas com algumas de nossas feridas narcísicas mais dolorosas, como a impotência, a imobilização política e a privação de alguns dos prazeres mais basais. Diante do vazio, resta-nos preencher com a arte, um dos alicerces que sustentam nossas subjetividades já em ruínas. Nesse contexto, Letícia Novaes/Letrux lança “Tudo que já nadei” (Editora Planeta), livro no qual presentifica algumas das sensações possíveis em meio a um Brasil à deriva.

Divido em “Ressaca”, “Quebra-mar” e “Marolinhas”, o novo livro de Letrux apresenta textos em prosa e poesia, demonstrando uma versatilidade própria a Letícia Novaes, que sempre explorou a palavra, a música e a performance em trabalhos desde antes do estouro nacional com Letrux em noite de climão, seu primeiro disco solo lançado em 2017 (à ocasião, resenhado por este que escreve). Essa flexibilidade tão natural em Letícia talvez justifique, de forma tão consistente, a mobilidade de seus nomes, Letrux/Letícia Novaes.

Membro de uma geração brasileira que escreve em primeira pessoa do singular, como Fernanda Young e Tati Bernardi, Letícia Novaes toma a escrita autobiográfica e a crônica como borda, mas explora, dentro delas, os atravessamentos do corpo social, político e cultural de seu contexto. O que poderíamos enxergar apenas como um delírio ególatra de autores e autoras que falam demasiadamente de si apresenta-se com um sinthoma (no sentido psicanalítico do termo) dos tempos. Se as redes nos convidam à excessiva exposição, com seus filtros, espaços de caracteres contados e estéticas/éticas enquadradas e estimuladas por algoritmos, por que não usar esses espaços falando não apenas da felicidade (demanda tão presente e fomentada), mas também da infelicidade e de outros aspectos da vida privada que poucos teriam coragem de postar?

Em “Ressaca”, Letrux faz uso do “textão”, formato clássico de verborragia nas mídias sociais, enquanto um gênero literário que melhor condensa as aflições, as angústias e os anseios de subjetividades insistentemente questionadas pelas redes sociais: “no que você está pensando agora?”. Letícia pensa em muitas coisas ao mesmo tempo. Sua mente é ágil e parte da observação do cotidiano. O olhar aguçado de Letícia sobre o banal realça os sabores dos (des)encontros, dos acasos e dos detalhes que, outrora irrelevantes, tornam-se o mínimo que faz toda a diferença em suas reflexões — procedimento semelhante àquele desenvolvido por Clarice Lispector, uma de suas principais referências, que conseguia até mesmo escrever a partir de um rato morto encontrado na rua (conto “Perdoando Deus”, de 1971).

O mar, como mote do livro, de onde emerge grande parte de suas palavras, surge como uma metáfora para a vida. Se Guimarães Rosa usou o sertão como espaço e matéria para retratar as árduas e arenosas veredas da existência humana, Letícia toma o mar como metáfora dos profundos e densos rincões do ser. Em sua fluência, as imagens que evoca ora são leves, como se as palavras boiassem na superfície, ora densas, como se tocassem o longínquo fundo das fossas abissais. A liquidez de sua escrita escorre por entre a lágrima, o suor, as águas salinas, a chuva, o colírio, os primeiros mênstruos, a urina e o líquido amniótico. A água, elemento escasso em seu mapa astral (como coloca no poema “meu primeiro astrólogo”), inunda sua poesia e prosa.

“O trajeto da lágrima é misterioso. Ora cai no seio, ora cai no umbigo. Outro dia foi parar no ouvido. Na boca lembra mar, pelo menos.

Tem dia que não cai. Pior trajeto. Pelo mais”. [“Líquido K)”, trecho do textão “Líquidos”]

Em comparação ao seu livro de estreia, “Zaralha — abri minha pasta” (2015), “Tudo que nadei” é menos verbivocovisual que o primeiro, para usarmos o termo empregado pela poesia concreta brasileira para designar as relações entre os signos verbais, visuais e sonoros da palavra escrita. Explorando os formatos aparentemente clássicos da prosa e da poesia, Letícia lapida a palavra sem os recursos visuais de outrora, que apareciam como apoio e cimento para a sua poética. Neste livro, as imagens ficam à cargo do leitor, que, ao deliciar suas escolhas lexicais, pode navegar por entre os vastos sentidos que potencializa, exercício explicitamente estimulado em “é chato contar sonho, eu sei”: “sonhei com o mar suspenso. Queria tanto estar dentro da sua cabeça e entender como você imagina isso. O mar suspenso” [excerto].

Em “Quebra-mar”, a poesia de Letícia pesquisa os encantamentos do verso livre, quebrando as linhas e explorando o sentido das pausas das narrativas. Na página em branco, seus versos desenham ondas irregulares, como no mar, e trabalham com o vai-e-vem de assuntos e sensações. Até mesmo na poesia, Letrux mantém a narratividade, marca de sua escrita.

“eu fico bêbada no mar

{é como se}

não falo nada com nada

tenho muita fome

tenho muita sede

movimentos ora lentos

ora espalhafatosos

alcoólicos anônimos” [trecho do poema “arrout”]

Colocando-se em perspectiva “Tudo que já nadei” e “Letrux aos prantos”, disco lançado no exato dia em que a pandemia se agravou no Brasil (uma sexta-feira 13 em março do ano passado), podemos perceber que a poética de Letícia mostra-se bem desenvolvida. Os prantos de um tornam-se marolas, ondas e tsunamis no outro. O atual espírito do tempo marcado pelo dissabor, pela mágoa e pela frustração, aspectos que foram de certa forma antecipados no disco de 2020 (mas, a bem da verdade, já estavam prenunciados no disco de estreia, de 2017), tem, no livro, suas tintas ainda mais carregadas. Como registro do momento presente, Letrux versa sobre a vida pandêmica marcada por restrições.

“Acho que foi Freud que falou sobre o sistema de sobrevivência. Que para sobreviver em tempos sombrios, é preciso delirar. Um sistema delirante. Pra mim, foi eureca. Estou há trinta e muitos anos delirando, sobrevivendo. Escolhendo essa circunstância”. [trecho do textão “Lysergsäurediethylamid”]

O sonho e o delírio, duas chaves para adentrar tanto o inconsciente freudiano quanto o universo poético de Letícia, são recorrentes em sua obra. Acrescenta-se a eles o humor, outra fresta por onde o inconsciente se revela. Letrux, diante do horror e do non sense, delira ou acha graça. São formas de lidar com a realidade das privações. Deliremos todos, então? “Parte pro sonho”, resumia a canção-tema de “Letrux aos prantos” (“Estou aos prantos”).

Ao final do livro, a seção “Marolinhas” traz construções poéticas altamente instagramáveis (isto é, formatos que funcionam bem para serem compartilhados pelos leitores em suas redes), tanto pela sua diagramação quanto pela sua brevidade. E dizemos “instagramável” sem que haja qualquer prejuízo à qualidade poética da autora: Letícia parece dialogar com a síntese própria ao contexto das redes sociais e à aceleração da vida. Condensar o máximo de sentido no mínimo de texto, como ocorre nos haikais, nos slogans publicitários, na poesia de Paulo Leminski (um dos autores mais midiatizados pelos seus leitores) e em tweets, é uma arte das mais difíceis.

“se todo dia tu chora

aí ainda tem história

ou tá na hora de ir embora”

“Tudo que já nadei” é uma obra que sincroniza diversas faces do espírito do tempo. Das linguagens engendradas pelas redes aos atravessamentos intersubjetivos da conturbada vida sociopolítica e cultural do momento, Letrux navega pelos gêneros como quem sabe nadar em dia de mar agitado ou mar sereno. Com este livro, explicita ainda mais seu genuíno ímpeto de explorar múltiplas formas de criação artística. O que outrora poderia ser lido como sendo apenas uma aventura para além da música, um de seus grandes filões de trabalho, a escrita mostra-se madura, pronta para novos mergulhos. Independentemente da linguagem, Letícia Novas é uma autora de seu tempo.

Capa de Giulia Fagundes

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Renato Gonçalves
Revista Bravo!

Pós-doutorando no IEB-USP. Doutor em Ciências da Comunicação (ECA-USP), mestre em Filosofia (IEB-USP) e pesquisador multidisciplinar. Docente ESPM-SP.