O pensamento corsário de Pasolini

A pesquisadora e tradutora Maria Betânia Amoroso comenta a atualidade dos “Escritos Corsários” de Pier Paolo Pasolini, publicados na íntegra pela primeira vez em edição brasileira

Andrei Reina
Revista Bravo!
9 min readMay 5, 2020

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Pier Paolo Pasolini em 1975 (Foto: Dino Pedriali)

“Todos sabem que eu pago as minhas experiências em carne e osso. Mas estão aí também os meus livros e os meus filmes. Talvez seja eu que erro. Mas continuo a dizer que estamos todos em perigo.” Ditas na entrevista que concedeu na véspera de seu assassinato, em novembro de 1975, as palavras de Pier Paolo Pasolini soam hoje premonitórias.

Mas além da consciência de que ele (como todos) corria perigo, está sugerido ali que seu trabalho artístico e intelectual — desdobrado, além de livros e filmes, em poemas, críticas e artigos de jornal — tinha por objeto justamente o que o punha em risco. Pasolini nomeou-o, em letras maiúsculas, de Novo Poder, “o mais violento e totalitário que já existiu”, que “muda a natureza das pessoas, alcança o mais profundo das consciências”.

É contra as diferentes expressões desse novo capitalismo baseado na ideologia do consumo e do progresso tecnológico — cuja “obra de padronização destruidora de qualquer autenticidade e concretude” reluzia na televisão — que se dirigem seus Escritos Corsários. O livro reúne artigos publicados entre 1973 e 1975 na imprensa italiana e apresenta uma face pouco conhecida do artista no Brasil, mais lembrado por seus filmes. Publicada pela Editora 34, a tradução é a primeira brasileira realizada na íntegra, empreitada de duas décadas levada adiante por Maria Betânia Amoroso.

Professora do departamento de teoria literária da Unicamp, Amoroso é uma das principais estudiosas da obra de Pasolini no Brasil, assunto que a ocupa desde a década de 80, quando traduziu com Michel Lahud alguns dos Escritos Corsários para a editora Brasiliense, e de 90, quando doutorou-se na USP com a tese que resultou no livro A Paixão pelo Real — Pasolini e a Crítica Literária (Edusp, 1997). Em 2002, apresentou a trajetória do artista no livro Pier Paolo Pasolini, coedição da Cosac & Naify com a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Em entrevista por e-mail à Bravo!, Maria Betânia Amoroso comenta a história da tradução e aponta a atualidade do pensamento de Pasolini, que, segundo ela, deve ser encarado em sua complexidade. “A crítica de Pasolini exige que se tome as questões nomeando-as, analisando-as pelos seus inúmeros ângulos, não fugindo das contradições”, diz.

Esta é a primeira edição brasileira e integral dos Escritos Corsários, um projeto de tradução que tem no mínimo 20 anos. Quais estágios este trabalho atravessou até enfim ser publicado?

É uma longa história mas o que me parece importante ressaltar é que, embora os anos sejam tantos, ao ser lido, agora, o livro não perde sua força e importância por mérito da perspicácia analítica de Pasolini e porque, independentemente do ângulo pelo qual se olhe, o mundo continuou a caminhar na direção do abismo anunciado por ele, diante do qual, hoje mais do que nunca, estamos todos. Não sei afirmar se houve outras tentativas anteriores de tradução do Escritos corsários, mas a primeira da qual participei foi ainda nos anos 80 quando Michel Lahud (1949–1992) resolveu traduzir alguns desses ensaios. Eu também participei da tradução. A seleção dos textos foi publicada em 1990 pela Editora Brasiliense com o título Pier Paolo Pasolini. Os jovens infelizes. Antologia de ensaios corsários. Houve um segundo momento, já na década de 2000, quando Paulo Arantes dirigia uma coleção na editora Vozes e se tentou adquirir os direitos para publicação do livro. Neste caso, foi um e-mail vindo da direção da editora que adiou a tentativa. Não guardei esse e-mail mas dizia que Pasolini não era um autor que seguia a linha editorial da casa, uma editora católica. Finalmente a Editora 34 bancou a iniciativa. E só temos a agradecer a ela, em particular ao editor, Cide Piquet, que acompanhou, passo a passo, a edição do livro.

No texto de apresentação do volume, a senhora define o livro como “uma tentativa de descrição do que ele chama de Novo Poder e, ao mesmo tempo, uma autodefesa de Pasolini contra esse mesmo Poder”. Ainda que o próprio autor classifique esse Poder como “muito difícil de definir”, é possível destacar as suas principais linhas de força? Diante delas, para onde se dirige a crítica de Pasolini?

O Novo Poder, escrito com letras maiúsculas por Pasolini pela falta de uma palavra única para designá-lo, é responsável pelas grandes transformações que ocorrem na Itália a partir dos anos 60, 70, e devidas ao ingresso tardio do país no capitalismo avançado. Esse neo-capitalismo tem como seu centro difusor a ideia do consumo, do progresso associado ao desenvolvimento tecnológico infinito, e não o do desenvolvimento humano. Consumo que não é unicamente de bens materiais, mas essencialmente de bens simbólicos: a cultura do consumo se estabelece quando são eliminadas do horizonte social outras formas de viver que não as ditadas pelo capitalismo. A ideia da sobrevivência, como a de tempos que sobrepõem modos de viver diversos que convivem nas suas diferentes manifestações, é muito cara a Pasolini: é o que nos diz, por exemplo, a sua atenção e interesse pelos dialetos na sua relação com a língua italiana. Para muitos, tanto aqueles pragmáticos, integrados pela lógica única dos tempos do consumo, como para outros, esperançosos nas soluções que virão pelo progresso tecnológico, Pasolini foi um conservador. Eu diria que tanto a palavra conservador como a palavra revolucionário são modos fáceis de liquidar a complexidade de Pasolini. Os textos reunidos no livro Escritos corsários nos relatam a intensidade dos seus debates, nos dão a dimensão da interferência crítica de Pasolini no conjunto de questões importantíssimas: o funcionamento do Estado, a permanência do fascismo, a responsabilidade daquele que se apresenta como intelectual, a função do jornalismo numa sociedade que se diz democrática, o sentido do progressismo das esquerdas, a eliminação de culturas etc. A crítica de Pasolini exige que se tome as questões nomeando-as, analisando-as pelos seus inúmeros ângulos, não fugindo das contradições. A autodefesa a que me refiro vem do fato que a autonomia do juízo crítico de Pasolini não evita confrontos, pelo contrário, o que a certo ponto de sua vida passa a significar criar modos de se defender, ou se explicar, em público. A organização por ele desse livro é, nesse sentido, uma resposta aos ataques que sofreu e uma forma de autodefesa.

Na mesma apresentação, a senhora menciona a “sobreposição de significados” do binômio “corpo em luta/corpo em luto” que há na escrita de Pasolini no período de publicação desses escritos. Como ela ajuda a entender a “necessidade de exposição — e, acrescentaria, de sobrevivência” em relação ao Novo Poder?

Veja, na resposta anterior me referi à particular e difícil situação de Pasolini criada a partir de suas intervenções críticas constantes principalmente através de jornais. Seria um erro falar em situação de diálogo porque, na verdade, nesse período da organização e publicação do livro, que antecede em muito pouco o da sua violenta morte, Pasolini estava sozinho. Essa solidão é claramente perceptível para quem lê a tradução. Mas é também perceptível que não se cala, e na solidão de quem pensa segundo verdades assumidas, sobrevive e elabora seu pensamento de forma radical. É um sobrevivente porque o seu mundo, como ele dizia com tanta insistência, não existia mais. Mas ele sim.

No livro A Paixão pelo Real, a senhora escreve que há “um projeto Pasolini”, desenvolvido pelo artista “durante a sua vida toda, lançando mão, para executá-lo, de todos os meios expressivos disponíveis”. Como podemos localizar os Escritos Corsários no quadro maior da obra pasoliniana?

Falar da existência de “um projeto Pasolini” foi a forma que encontrei para me perguntar se a melhor maneira para se compreender a obra e o pensamento de Pasolini fosse a de estudá-lo através dos gêneros que frequentou, separando a poesia da prosa, o cinema da crítica. Era o que eu andava fazendo até ali. Já me parecia na época (o livro que você cita é de 1997), que é bem mais interessante, ao menos para mim, pensar no seu difuso ensaísmo, uma discussão de ideias apresentadas de modo sempre muito pessoal, que perpassa tudo aquilo que fez, da literatura ao cinema, passando pelo jornalismo. Escritos corsários é um dos momentos máximos do ensaísmo pasoliniano, na minha opinião.

O período de publicação dos textos da coletânea (1973–1975) coincide com os últimos filmes de Pasolini — as partes finais da Trilogia da Vida (Os Contos de Canterbury e As Mil e Uma Noites) e Salò. Qual relação podemos estabelecer entre a produção literária e cinematográfica do período?

Como afirmei na resposta anterior, cada vez mais tendo a considerar Pasolini um intelectual e pensador, que fez uso de muitas linguagens. Os filmes que você citou são interessantes no sentido de observar como aquela mesma discussão sobre as transformações da sociedade que está em Escritos corsários se apresenta também nos filmes. A Trilogia da Vida é a celebração do sexo, da liberdade dos corpos nos filmes inspirados em obras literárias clássicas, mas essa celebração foi, digamos, cancelada pelo próprio Pasolini que faz a abjuração desses filmes, já que não há mais a liberdade festejada e sim a domesticação dos desejos e da sexualidade pela sociedade da cultura de massa. Salò poderia ser entendido como a anti-trilogia da vida: sexo, fascismo e morte são seus signos.

Na crítica da sociedade do consumo presente no ensaio Aculturação e aculturação, Pasolini destaca o papel central da televisão na “obra de padronização destruidora de qualquer autenticidade e concretude” na Itália de meados do século 20. Pensando nos dias de hoje, a senhora acredita que essa observação pode ser extrapolada para novos meios de informação, como a internet? Em outras palavras, qual a atualidade da crítica que Pasolini faz à sociedade de consumo?

Pasolini descreve, comenta, discute a Itália. No máximo temos algumas aproximações suas ao assim chamado Terceiro Mundo, expressão comum nos anos 70. De qualquer modo, o processo da experiência do mundo como virtualidade, como desencarnação dos corpos e das mentes é parte integrante do velho sistema de produção de mercadorias do capitalismo e na ordem simbólica, na redução de cada vivente à figura do consumidor, mais ou menos sofisticado, mas consumidor. Tudo isso, hoje, já num estado muito mais avançado do que ele conheceu. Portanto nessa esfera, acho possível ler Pasolini e encontrar elementos que levem a pensar no estado atual do mundo resultante das novas tecnologias, da inteligência artificial, da uberização do trabalho e da vida mas, é claro, não se trata de torná-lo um visionário ou um mito.

A senhora escreve que “a Itália última de Pasolini são as ruínas de um ‘mundo antigo’ que ele vê desaparecer, substituído por valores advindos da sociedade de consumo”. Estaria implícita, nesta crítica da modernização, um desejo de retorno a um período pré-capitalista, que o aproximaria do marxismo ruinoso e antiprogressista de alguém como Walter Benjamin?

Que há em Pasolini uma crítica aos pressupostos da modernidade (mais do que da “modernização”) não tenho dúvida, mas não há a ideia de retorno à velha Itália, a não ser como ironia quando, por exemplo, escreve que o neo-fascismo (isto é, o neo-capitalismo na Itália a partir dos anos 60, 70) fez a verdadeira revolução, já que enquanto o fascismo clássico sequer arranhara o modo de ser e de pensar do italiano, o novo fascismo propiciara uma “mutação antropológica” irreversível. Não há volta, portanto. As aproximações com Walter Benjamin, com os pensadores da Escola de Frankfurt são comuns, mas há particularidades no pensamento pasoliniano que se explicam melhor se relacionadas à própria tradição filosófica e cultural italiana que seria muito difícil abordar nesta entrevista.

Em um artigo sobre a recepção de Pasolini no Brasil, a senhora comenta o poema em prosa Herança, escrito no país — evocado pelo poeta como “minha desgraçada pátria, devotada sem escolha à felicidade” — , onde teria se reencenado “diante de seus olhos admirados e comovidos a cena que já conhece com dor e de cor”. Seguindo o rastro dessa relação passageira, qual seria a pertinência da crítica de Pasolini no Brasil, parte das “grandes periferias do mundo”?

Veja, Pasolini não é Sartre que tinha um projeto político que incluía ações para além da Europa. Escreveu sobre a África, fez poema sobre a sua passagem pelo Brasil. Somos nós, entretanto, habitantes de um país que viveu e vive de ilusões, tanto equivocadas quanto funestas, de vir a pertencer ao Primeiro Mundo, que encontramos afinidades na sua obra. Ter voltado as costas para as potencialidades implícitas de outro desenvolvimento, de outros modos e modelos de vida nos aproxima à crítica à modernidade e as suas reflexões nos ajudam a continuar a luta contra a imensa desigualdade social do Brasil e contra tudo aquilo que ela implica. Nesse sentido, Pasolini ilumina, convida à reflexão. O resto depende de nós.

Escritos Corsários, Pier Paolo Pasolini (tradução, apresentação e notas de Maria Betânia Amoroso e prefácio de Alfonso Berardinelli). Editora 34, 296 págs., R$ 68.

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