O que assistir na 42ª Mostra de Cinema de São Paulo

Filmes premiados em festivais europeus, nacionais inéditos e clássicos restaurados estão entre os imperdíveis da Mostra

Andrei Reina
Revista Bravo!
7 min readOct 18, 2018

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Drama social dirigido por Hirokazu Koreeda, “Assunto de Família” foi premiado com a Palma de Ouro em Cannes

São 336 filmes em duas semanas. Chegou aquela época do ano em que cinéfilos e curiosos em geral ficam de cabelo em pé para se programar para a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que chega hoje à sua 42ª edição com sessões na capital e no interior. A reputação cosmopolita do festival segue firme na exibição de nada menos do que 19 dos pré-indicados ao Oscar de melhor filme estrangeiro, de O Grande Circo Místico, de Cacá Diegues, ao sul-coreano Em Chamas, de Chang-Dong Lee.

Entre os mais antecipados, estão longas premiados nos principais festivais do mundo. Dos destaques em Cannes comparecem o drama social japonês Assunto de Família, de Hirokazu Koreeda, que levou a Palma de Ouro; a trama policial Infiltrado na Klan, de Spike Lee, que recebeu o Prêmio do Júri; o romance político em preto e branco Guerra Fria, de Pawel Pawlikowski, reconhecido como melhor diretor; o iraniano 3 Faces, com roteiro premiado de Jafar Panahi e Nader Saeivar; e o mais novo experimento de Jean-Luc Godard, Imagem e Palavra, que levou a Palma de Ouro Especial.

Há ainda filmes premiados no Festival de Veneza, como o novo de Alfonso Cuarón, ambientado no México dos anos 1970 — Roma, vencedor do Leão de Ouro — e A Favorita, história do afeto entre mulheres do século 18 filmada por Yorgos Lanthimos que levou o Grande Prêmio Especial do Júri e a Copa Volpi de Melhor Atriz para Olivia Colman. De Berlim, vêm dois títulos sobre identidades sexuais em trânsito: o romeno Não Me Toque, de Adina Pintilie, que recebeu o Urso de Ouro, e o polonês O Rosto, de Malgorzata Szumowska, premiado com o Urso de Prata.

A produção nacional conta com títulos novos e aguardados— como o mineiro Temporada, de André Novais, eleito o melhor do Festival de Brasília, que também reconheceu Grace Passô como a melhor atriz — e clássicos restaurados, como Pixote — A Lei do Mais Fraco, de Hector Babenco, e Jardim de Guerra, filmado por Neville de Almeida em 1968, na esteira do AI-5.

A já tradicional sessão ao ar livre, na área externa do Auditório Ibirapuera, será no dia 27, com a exibição de A Caixa de Pandora, clássico do cinema mudo dirigido por Georg Wilhelm Pabst há 90 anos. A trilha sonora será executada ao vivo pela Orquestra Jazz Sinfônica sob a regência de Fábio Prado.

Muita coisa? Para ajudar na montagem da sua programação, a Bravo! pediu sugestões de três pesquisadores e críticos da área:

  • Barbara Alves Rangel integra a coordenadoria de cinema do Instituto Moreira Salles, onde atua como programadora e curadora.
  • Carol Almeida pesquisa a relação entre cinema e cidades na Universidade Federal de Pernambuco e escreve críticas no site Fora de Quadro.
  • Raul Arthuso edita o site Cinética e pesquisa cinema brasileiro na Universidade de São Paulo. Dirigiu curtas como Master Blaster e À Parte do Inferno.

Leia a seguir as indicações comentadas. Para saber os horários e locais das sessões, clique no título dos filmes.

“Extinção” é o novo filme de Salomé Lamas, jovem diretora portuguesa

Barbara Alves Rangel

Extinção, de Salomé Lamas

Descobri o cinema de Salomé Lamas (um dos nomes mais jovens e promissores do cinema contemporâneo português) ao ver Terra de Ninguém, que aborda as consequências da guerra colonial empreendida por Portugal em Angola, o combate ao ETA [Euskadi Ta Askatasuna, basco para Pátria Basca e Liberdade] na Espanha e a guerra civil em El Salvador. Centrado na figura de um matador de aluguel, o filme incorpora a sua narrativa este testemunho contraditório sem fazer uso de julgamentos morais. É justamente este dispositivo que flutua entre o registro cinematográfico e o testemunho pessoal que me interessa neste novo filme de Lamas, que desta vez aborda as reminiscências da URSS [União das Repúblicas Socialistas Soviéticas].

Túmulos sem Nome, de Rithy Panh

Em uma espécie de continuação de seu filme A Imagem que Falta, Panh retoma a reflexão sobre o genocídio perpetrado pelo Khmer Vermelho. Se em seus outros filmes ele utiliza imagens de arquivo, de depoimentos ou mesmo de maquetes para lidar com este luto coletivo, desta vez ele elabora, a partir de sua história pessoal, uma outra camada à memória — infinita — deste trauma.

Pixote — A Lei do Mais Fraco, de Hector Babenco

A preservação de filmes infelizmente permanece um tema desconhecido no Brasil. A restauração, que é apenas uma etapa deste processo, é o que sempre vêm à tona em iniciativas louváveis como essa e que encontram pouco eco no país por falta de recursos. Assim, o interesse em rever Pixote se dá pela possibilidade de reencontrar este filme e também pela curiosidade em torno do trabalho de restauro e das escolhas envolvidas neste processo.

Protagonizado por Grace Passô, “Temporada” recebeu os prêmios de melhor filme e melhor atriz em Brasília

Carol Almeida

Sol Alegria, de Tavinho Teixeira

A filmografia contemporânea brasileira tem sido profética na previsão de várias das tempestades que se aproximam no horizonte, mas nada consegue ser mais certeiro que o novo filme de Tavinho Teixeira. Para além de imaginar o futuro distópico militarizado e evangelizado do país, aqui se encontram também as possíveis respostas de vida ao controle e normatização dos corpos. Mais uma vez, o cineasta paraibano nos diz que essa resposta só pode se dar pela chave da vibração desses mesmos corpos, aqui vividos em toda sua potência erótica no núcleo duro de uma frente de resistência comandada por freiras que plantam maconha e nutrem poliamor.

Temporada, de André Novais

Um diretor que reinventou os pactos do cotidiano no cinema contemporâneo brasileiro e uma atriz que reinventa, a cada papel, a condensação poética do corpo no olhar. Sem medo de pesar a mão, pode-se dizer que André Novais e Grace Passô constituem desde já um dos mais explosivos encontros que a expressão artística da imagem nos proporcionou. Aqui os dois estão juntos pela primeira vez — uma primeira vez de muitas, esperamos — em uma narrativa sobre a construção afetiva de uma cidade a partir de uma nova moradora desse espaço. Como Grace bem falou na cerimônia de premiação do Festival de Brasília, onde Temporada levou o prêmio de Melhor Filme, bem como Melhor Atriz, é preciso brigar por imagens que possam “desentortar o olhar”.

Los Silencios, de Beatriz Seigner

Quando as águas de um rio baixam, o que se decanta nesse movimento são histórias de vida e de morte que sobrevivem juntas, como se o rastro deixado pelo rio nessa respiração que sobe e desce sinalizasse para uma outra relação que o espaço cria com o tempo. Na fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, o segundo longa-metragem de Beatriz Seigner fala sobre como as memórias de uma região marcada por conflitos de terra — e de água — e funda uma outra cosmologia sobre a nossa relação com o que se vai e o que fica. Uma fábula que busca a partir de elementos do fantástico uma reconciliação do ser humano e da natureza tantas vezes violenta que o cerca.

Novo experimento de Jean-Luc Godard, “Imagem e Palavra” recebeu a Palma de Ouro Especial em Cannes

Raul Arthuso

Imagem e Palavra, Jean-Luc Godard

Jean-Luc Godard é um dos mais importantes artistas dos últimos 50 anos — e sua real dimensão para o universo das imagens em movimento talvez só será verdadeiramente compreendida pelas próximas gerações. Desde os anos 1980, o cineasta francês trabalha nas fronteiras da arte e da cultura, discutindo reflexivamente o cinema e seu lugar no mundo. Suas últimas obras têm desafiado os limites da experiência da sala escura, da filmagem e projeção digital, do som multicanais, costurando a materialidade do cinema e a presença das imagens na sociedade com as transformações políticas, sociais e as crises do humanismo ocidental moderno. Além disso, Filme Socialismo e Adeus à Linguagem são, contrariando o senso comum sobre os filmes de Godard, obras de um enorme prazer de fruição, jogando com tudo o que torna nossa presença coletiva numa sala de cinema algo único, restituindo aquilo que nos torna demasiado humano diante da experiência de um filme. Entre os grandes cineastas em atividade e com filmes nessa Mostra, não há um que me desperte mais expectativa do que este.

Ilha, Ary Rosa e Glenda Nicácio

Café com Canela, filme anterior dessa jovem dupla baiana, foi uma das boas e interessantes revelações do cinema brasileiro contemporâneo. Fora do eixo urbano central do Sudeste, Café com Canela arejou o jovem cinema brasileiro com um referencial popular ainda incipiente na corrente mais independente da produção nacional ao mesmo tempo que colocou em perspectiva os filmes de grande público — que recebem o rótulo de “populares” exclusivamente por causa de seu resultado de bilheteria — como que requerendo para si um imaginário brasileiro cooptado cotidianamente pela televisão e pelo cinema de mercado de modo pasteurizado. Vale a pena ficar de olho no desenrolar do trabalho da dupla, a começar por este novo filme, que traz na tela um outro (ou seria o real?) Brasil — negro, periférico, popular, afetuoso e, ao mesmo tempo, afirmativo tanto política quanto cinematograficamente.

Jardim de Guerra, Neville de Almeida

Dentre os filmes históricos exibidos esse ano, rever Jardim de Guerra pode ser uma experiência intensa no atual momento em que o risco ao democrático, a violência institucionalizada e o fascismo batem às portas da sociedade brasileira para jogá-la no caos. Realizado após o AI-5, no auge da linha dura implantada pela ditadura civil-militar brasileira, o filme retrata o desespero do momento, mostrando não apenas o cotidiano de parte da juventude brasileira que combatia a ditadura como a tortura institucionalizada pelo Estado contra seus opositores. Conhecido por seus filmes de grande apelo popular como A Dama da Lotação e Rio Babilônia, aqui Neville de Almeida fez um filme formalmente exasperante, com fortes cenas de violência dos torturadores e o estado limite de suas personagens, numa faceta experimental e política menos conhecida do realizador. Um filme do passado que pode nos alertar sobre o presente e o futuro.

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