Violência, beleza, vertigens

Três críticos indicam o que ver 6ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, que tem entre os destaques os experimentos polêmicos do encenador suíço Milo Rau

Andrei Reina
Revista Bravo!
8 min readMar 12, 2019

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Cena de “Cinco Peças Fáceis”, de Milo Rau (Foto: Phile Deprez)

A frase é conhecida. “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”, sapecou Karl Marx sobre as cabeças idealistas do século 19. Se é verdade que o mundo não se transformou como o velho barbudo previa, não se pode dizer que o espectro de sua filosofia tenha cessado de se manifestar — seja no pesadelo conservador ou na imaginação artística.

“Não se trata mais de somente retratar o mundo. Trata-se de transformá-lo. O objetivo não é representar o real, mas tornar real a própria representação”, crava o primeiro item do manifesto publicado pelo teatro municipal de Gante, na Bélgica, após o célebre e polêmico encenador suíço Milo Rau assumir o posto de diretor artístico da casa, em 2018.

É com este horizonte que a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo inicia nesta quinta-feira (14) a sua sexta edição, que ocupa diversos palcos da cidade e tem Rau como artista internacional em foco. Na sessão de abertura, fechada para convidados no Auditório Ibirapuera, será apresentada A Repetição. História(s) do Teatro (I), peça que parte do crime homofóbico que vitimou Ihsane Jahfi, homem belga espancado até a morte em 2012.

“Combinando uma recriação da pesquisa de sua equipe sobre os eventos com uma reencenação do crime, Rau conseguiu chegar ao cerne de sua brutalidade insensata enquanto questionava nossa experiência como espectadores”, escreveu a crítica Laura Cappelle ao incluir A Repetição na lista de melhores do teatro europeu em 2018 do New York Times.

Também são atravessados por temas violentos os outros dois espetáculos trazidos pelo diretor suíço. Cinco Peças Fáceis almeja contar a história da Bélgica através da biografia de Marc Dutroux, pedófilo condenado por sequestro e assassinato de menores, enquanto o semidocumental Compaixão. A História da Metralhadora investiga zonas de conflito no continente africano e no Oriente Médio.

Os ingleses do Forced Entertainment, grupo experimental fundado por Tim Etchells nos anos 80, apresenta Mágica de Verdade, que utiliza procedimentos de game shows televisivos. Já em O Alicerce das Vertigens, escrito e dirigido por Dieudonné Niangouna, um drama familiar torna visíveis as cicatrizes coloniais do Congo. Felipe Hirsch dirige um elenco chileno em Democracia, coprodução da MITsp com o Festival Santiago a Mil baseada em textos de Alejandro Zambra. Também do Chile vem Paisagens para Não Colorir, resultado de longo processo criativo do diretor Marco Layera com um grupo de adolescentes. A ala internacional se completa com dois monólogos: a discotecagem cênica MDLSX, com a italiana Silvia Calderoni, e Partir com Beleza, no qual o performer marroquino Mohamed El Khatib elabora o luto pela morte da mãe.

Entre os três espetáculos brasileiros que estreiam na mostra principal está o Manifesto Transpofágico, concebido e interpretado por Renata Carvalho, conhecida pelo trabalho (e pelas reações geradas por) O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu. Wagner Schwartz, perseguido em 2017 em razão da performance La Bête, apresenta um solo baseado na sua relação com a pintura A Boba, de Anita Malfatti. Gabriela Carneiro da Cunha, por sua vez, cria uma “instauração cênico-ritual” para ouvir os ribeirinhos afetados pela usina hidrelétrica de Belo Monte em Altamira 2042.

Com o objetivo de fazer produções nacionais circularem por outros países, a mostra paralela MITbr — Plataforma Brasil é composta por dez trabalhos recentes, entre os quais se destacam solos, como os Vestígios da coreógrafa e bailarina Marta Soares, e criações coletivas, como Isto é um Negro?, do jovem grupo paulistano E Quem é Gosta?, e Cria, da Cia. Suave, do Rio de Janeiro.

Para conhecer melhor o que a MITsp apresenta este ano, a Bravo! convidou três críticos de teatro a selecionar e comentar três destaques. Veja quem são eles e leia a seguir as indicações.

  • Gabriela Mellão é crítica, autora e diretora de teatro, criadora de espetáculos como Kansas e DesolaDor.
  • Kil Abreu é curador de teatro no Centro Cultural São Paulo. Também atua como crítico e pesquisador.
  • Valmir Santos é jornalista, crítico e mestre em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal.
Cena de “Mágica de Verdade”, do grupo Forced Entertainment (Foto: Hugo Glendinning)

Gabriela Mellão

O teatro de Milo Rau

Qual o limite do suportável? Na vida? E no teatro? O diretor suíço-alemão Milo Rau, destaque da MITsp este ano, abre o evento com Repetição. História(s) do Teatro (I) e apresenta outros dois espetáculos na programação (Cinco Peças Fáceis e Compaixão. A História da Metralhadora) que fazem do insuportável bússola. Um dos nomes mais importantes do teatro mundial hoje, Rau usa sua formação como sociólogo e experiência como jornalista de guerra para pesquisar sobre violência em cena e, a partir dela, sobre a própria representação teatral. Vai a campo entrevistar testemunhas, vítimas e criminosos. Na peça de abertura, por exemplo, reconta um assassinato que abalou a Bélgica em 2012, no qual o homossexual Ihsane Jarfi foi morto após ser torturado por um grupo de jovens homofóbicos na cidade de Liège. Reconstitui o crime a partir de conversas que teve com parentes de Jarfi e um de seus torturadores. O material coletado vira dramaturgia para compor um híbrido entre ficção e realidade, teatro, documentário, e cinema. Rau busca potencializar o real através de uma representação assumida. O diretor convoca atores profissionais e amadores para a cena, transforma-os em autores de suas falas, e ainda constrói um trânsito contínuo entre intérprete e personagem. Mais do que um convite, ele quer fazer um chamado para a plateia refletir sobre os rumos trágicos da sociedade contemporânea e se questionar sobre seu papel no mundo e no teatro.

Mágica de Verdade, do grupo Forced Entertainment

Se Beckett se aventurasse pelo universo da TV trash, o resultado seria algo como Mágica de Verdade. A criação é do Forced Entertainment, coletivo inglês iconoclasta que há inacreditáveis 35 anos ininterruptos surpreende a cena teatral europeia e nova-iorquina com peças e instalações das mais diversas linguagens, criadas coletivamente. O espetáculo cuja estreia aconteceu em 2016, mesmo ano em que a companhia ganhou o International Ibsen Award (um dos prêmios teatrais de maior prestígio no mundo), leva ao palco um quiz show absurdo, no qual a repetição do jogo de novo, e de novo, e de novo, sublinha a condição patética da humanidade. Os atores se revezam nos papéis de apresentador e participante. Cada vez cabe a um mostrar à plateia o cartaz com a palavra a ser adivinhada e ao outro a obrigação de acertá-la, contando somente com sua imaginação como parceira. O resultado é a exaustão e o erro, de novo, e de novo, e de novo. O resultado é a sensação de que derrota é a única resposta correta para o modus operandi capitalista de vida.

Partir com Beleza, de Mohamed El Khatib

Nasce do cotidiano a arte do autor e diretor marroquino radicado na França Mohamed El Khatib. Sociólogo de formação, o artista associado ao Théâtre de la Ville de Paris, entre outros dois teatros da França, faz de um encontro imprevisto com a faxineira de uma escola em Bruges o teatro-documentário Moi Corinne Dadat. Em C’est la Vie, transforma em atores dois estranhos que compartilham a dor de terem perdido um filho. É o próprio Khatib quem sobe à cena em Partir com Beleza. Reúne memórias, além de arquivos de áudio e vídeo, fotos, trechos de jornais, mensagens de celular e e-mails, para falar sobre a morte da mãe. O trabalho foi vencedor do Grande Prêmio de Literatura Dramática da França em 2016 e conseguiu se destacar no último Festival de Avignon, apesar de integrar a programação off do evento. Partir com Beleza emocionou por sua simplicidade e singeleza. A partir de um relato pessoal sincero, desprovido de artifícios cênicos, Khatib toca a emoção da plateia e alcança o universal.

Cena de “Manifesto Transpofágico”, de Renata Carvalho (Foto: De Souza)

Kil Abreu

Os três espetáculos de Milo Rau

Milo Rau é um dos mais originais e controversos encenadores europeus hoje, com gosto por dramaturgias e construções cênicas documentais. Ele faz um teatro deslocado em que o interesse pela sociologia, pelo ativismo e pela observação de comportamento lançam as pontes para relações e formas novas. Em A Repetição, o que se anuncia é um caso de violência sexual ocorrido no interior da Bélgica em 2012 através do qual se investiga tanto o ocorrido quanto os campos ético e estético da própria representação.

Manifesto Transpofágico, de Renata Carvalho

Porque a Renata Carvalho é uma atriz-travesti por quem têm passado projetos, obras e acontecimentos importantes nos últimos anos. Além da grande repercussão do espetáculo censurado O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu e de outros trabalhos, ela vem atuando junto a pessoas gays, travestis e mulheres trans nas áreas da saúde e da política; então a sua própria história oferece os materiais para a pesquisa que ela chamou “transpologia”. O espetáculo que estreia na MITsp, dirigido por Luiz Fernando Marques, é uma narrativa cênica em torno das condições de existência do corpo travesti.

Cria, da Cia. Suave

Uma parte dos bailarinos reuniu-se antes em Suave, montagem que deu origem ao grupo. Foram convidados a viajar por vários países da Europa com este trabalho enraizado nas favelas do Rio. A coreógrafa Alice Ripoll é quem lidera o elenco formado por jovens vindos do funk, do rap, do passinho. Sobre o repertório nascido e testado nas ruas, diz: “é essa dança engraçada que parece um bezerro que acabou de nascer, está lutando pela vida e brincando ao mesmo tempo”. Cria é um manifesto sobre a alegria e a sobrevivência dos corpos livres.

Cena de “O Alicerce das Vertigens”, de Dieudonné Niangouna (Foto: Jean Julien Kraemer)

Valmir Santos

O Alicerce das Vertigens, de Dieudonné Niangouna

Quando o diretor inglês Peter Brook passou três meses na África, no início da década de 70, almejava encontrar um público e uma arte fora dos contextos ocidentais em termos de geografia, cultura e língua. Encantou-se pela síntese de ritmo e movimento de atores e atrizes negros combinados à capacidade exploratória do vazio e do silêncio em cena. As raízes congolesas da Compagnie les Bruits de la Rue suscitam o oposto, pulsando com criticidade outras noções do que é sagrado ou do que é rústico.

Partir com Beleza, de Mohamed El Khatib

Aqui, intuímos sondar como a dor pessoal tornada pública, sobretudo quando se trata da morte da mãe, pode traduzir-se inventiva no modo de narrar memórias. O projeto transpassaria o foco pessoal. O despojamento de recursos no solo do atuante marroquino é indício de potencial para afetar. Sabemos o quanto falar de si, a partir de mote afins, implica riscos. Vide Matheus Nachtergaele (com Processo de Conscerto do Desejo) e Álamo Facó (Mamãe) nos respectivos trabalhos de 2015.

Lobo, de Carolina Bianchi

Uma criação inebriante em torno dos clichês do belo e do profano, capaz de jogar dialeticamente com o erotismo e expor quão pornográficas são as formas de manipulação sob o capitalismo. Carolina Bianchi é força motriz gregária na articulação de coletivos nos últimos anos em São Paulo, como este Cara de Cavalo. Ela toureia a massa mutante de corpos masculinos com atravessamentos cinematográficos, pictóricos e muito tesão para reimaginar outros sentimentos vitais por meio das artes cênicas.

6ª MITsp. De 14 a 24 de março, em diversos teatros da cidade. Veja informações sobre horários, locais e ingressos no site da mostra. Alguns espetáculos são gratuitos, assim como os seminários e cursos da programação.

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