O que explica o sucesso de Marina Sena?

Renato Gonçalves
Revista Bravo!
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7 min readNov 19, 2021

Análise: a ascensão da artista mineira é um dos reflexos dos novos e complexos fluxos comunicacionais e do consumo da música

Foto: Fernando Tomaz

Frustrando o leitor atraído pela pergunta do título, já antecipo que não tenho a resposta. E acho que será muito presunçoso quem disser que a tem de forma cabal. Explico: o sucesso de Marina Sena só pode ser visto a partir do fenômeno dos novos e complexos fluxos comunicacionais e do consumo da música na atualidade. O que não é pouco. Aliás, nada pouco, pois sobre eles ainda nos falta clareza e nos sobram especulações.

Para quem ainda não a conhece, Marina Sena é uma cantora e compositora mineira saída de grupos que obtiveram um certo destaque no cenário de uma nova música popular brasileira que flerta com a linguagem pop, as bandas Rosa Neon e A Outra Banda da Lua. Neste ano, a artista, de forma independente, lançou o seu primeiro disco solo, De primeira. Na capa, sua postura altiva de miss com a faixa de vencedora prenuncia o desígnio rapidamente atingido: ser premiada com o “número 1”.

Capa do disco De Primeira, 2021.

Goste-se ou não de seu trabalho, Marina Sena é um fenômeno. No Spotify, já contabiliza mais de 3,5 milhões ouvintes mensais (para comparação, dos medalhões da MPB, nesta semana, o único a alcançar similar cifra é Caetano Veloso, que tem um trabalho recém-lançado, o que impulsiona um pouco a contagem). Somente no Prêmio Multishow 2021, foram quatro indicações (nas categorias Álbum do Ano, Canção do Ano, Revelação do Ano e Experimente). A agenda de espetáculos está lotada até metade do ano que vem. O visualizer de “Por supuesto”, música que a alavancou, já alcançou mais de 10 milhões de visualizações no YouTube. O burburinho impressiona e os números o justificam. E, bom, contratantes de shows, ainda importante fonte de renda aos artistas, se baseiam muito em números para fechar contratos.

Acreditar que Marina Sena é o primeiro grande fenômeno brasileiro da música na era das plataformas é um erro ao qual muitos têm recorrido. É só virar a cabeça um pouco para o lado, observar como o segmento do sertanejo tem se comportado desde o início dos streamings e do TikTok e localizar muitos outros fenômenos recentes, como ocorreu com o hit "Coração cachorro", de Avine Vinny e Matheus Fernandes, apenas para citar um dos muitos. Porém, é inegável que, dentro do meio da música popular brasileira institucionalizada no circuito mercado-público-prêmios-crítica, Marina Sena tem sido um dos mais salientes frutos da era TikTok para a colheita da MPB. A bem da verdade, é até mesmo difícil classificá-la como MPB, assim como ocorreu a Rita Lee e Marina Lima, primeiras mulheres hit makers pop brasileiras, que igualmente confundiram a rígida segmentação das prateleiras de discos (no caso delas, entre o pop, o rock e a MPB).

Um dos caminhos para se enxergar a grande recepção e repercussão do trabalho de Marina Sena é pelo viés da propagabilidade. No contexto da mídia propagável, a viralidade é a tônica da circulação de conteúdos, como destrincha Henry Jenkins (no livro Cultura da conexão). Somos todos produtores e consumidores de conteúdo, com maior ou menor amplitude, de acordo com nossos gostos e nossas práticas, sendo a experiência do consumo sempre autoral, ainda que se pese a massificação de alguns conteúdos. Com isso, tentar remontar a trajetória de um viral e buscar entender o porquê de um sucesso é como montar um quebra-cabeça cujas peças foram perdidas. Não há uma linearidade. Há uma rede de vetores que se atravessam, colidem e convergem.

Marina Sena caiu nas graças do TikTok e sua música virou trend. Não se apoiou no jabá, prática de pagamento às rádios para tocar em sua programação. Tampouco esteve apoiada em massivos sistemas de divulgação como televisão e cinema, como outrora representou a relação sincrônica entre a Globo e a gravadora Som Livre. Não sabemos exatamente qual foi o x factor, o fator que realmente tenha feito a artista explodir, mas podemos presumir algumas condições.

Remixagem, apropriação e transformação têm sido a tônica da produção e da criatividade nas/das mídias propagáveis. Hoje o artista deve perceber que quanto mais mexem e modificam espontaneamente sua obra, mais ela ganha força. Não cabe hoje, como já vi artistas fazendo, reclamar de um clipe fan made só porque ainda se vai lançar um vídeo oficial e se gostaria de que aquele fosse o único registro audiovisual da canção no YouTube. É uma lógica que não faz mais sentido no contexto da autoria compartilhada entre produtores e consumidores. Marina Sena (pessoa jurídica), em grande parte, tem se mostrado uma exímia e sábia usuária das redes sociais, abraçando toda e qualquer apropriação (em memes), falando a linguagem de um segmento jovem que não apenas consome música, mas também cria conteúdo a partir dela, sejam eles vídeos de pole dance, covers, memes ou registros de finais de semana na praia etc.

Pelo caminho da estética da obra em si, em que se considerem os elementos que estruturam suas faixas, até poderíamos destacar a aptidão pop da montagem e da mixagem musicais de seu disco, que privilegiam as zonas agudas dos arranjos, uma tendência da indústria fonográfica na atualidade que maximiza ao extremo a experiência sonora, até a saturação — um traço estilístico do mercado no momento. Ou ainda poderíamos dizer que a harmonia e a melodia de suas composições sempre têm contornos pop, com o uso de refrões grudentos ou riffs musicais que facilitam a memorização e reprodução. Mas, tomando como exemplo "Por Supuesto", canção de maior projeção, sua letra não é nem de longe simples, como costuma ocorrer no caso de outros virais. Alguns de seus versos, sim, têm vocação mnemônica, como aqueles que têm sido apropriados e ressignificados pelos fãs e detratores: “eu já deitei no seu sorriso/ só você não sabe”. Porém, no geral, a construção textual não é denotativa, mas sim totalmente conotativa. Isto é, para o entendimento de outros versos como "reparo em corte de cena/ ponta, planta, mesa", é preciso um esforço de interpretação um pouco maior do ouvinte.

Juntamente à maré de admiração, as ondas fortes do hate chegaram. Muitos criticaram a versão ao vivo de “Por supuesto”, recortada de uma apresentação da cantora, só porque estranharam a estridência e a mudança no timbre ocasionadas por escolha técnica da artista. Ouvintes menos familiarizados com a ampla gama de técnicas vocais até mesmo chegaram a comparar sua voz a uma das dublagens brasileiras do Pica-Pau. Ora, cantoras e cantores sempre foram e sempre serão criticados pela sua performance vocal. É o seu ofício, afinal. Se até mesmo João Gilberto foi chamado de desafinado, por que dizer que Marina Sena é a primeira a sofrer com isso? Porém, há algo de novidade nisso tudo. O que muda é a extensão da crítica, não mais confinada à outrora criteriosa edição do jornalismo cultural ou à boca pequena da plateia, mas agora fomentada pelas lógicas histriônicas das redes sociais. É o enxame que Byung Chul-Han vai muito bem descrever ao observar os movimentos de cancelamento (no livro No Enxame: perspectivas do digital), é a feroz chuva de críticas potentes para unir e formar públicos não apenas pelo que se gosta, mas também pelo que se odeia. Porém, fale-se bem ou mal de um artista, tudo isso engaja.

Engajamento é uma palavra que entrou no vocabulário do consumo, não apenas da música, mas em todos os contextos. Cabe ao artista perceber que isso mudou a balança comercial de sua obra, para o bem e para o mal. No contexto das playlists, os artistas com maior engajamento são aqueles que têm maior visibilidade e vice-versa. Contudo, não compro o discurso oficial de plataformas como o TikTok e o Spotify que dizem que essas novas formas de circulação e consumo têm democratizado o acesso aos meios de divulgação, antes concentrados na grande indústria e que, uma vez derrubados, permitiram o surgimento de artistas que nunca teriam oportunidade, como foi o caso do rapper norte-americano Lil Nas X.

Primeiro, esse é um discurso corporativista e institucional que se apoia na falsa ideia de que a internet e as redes sociais seriam meios horizontais, nos quais todos teriam voz. Embora sua embalagem diga o contrário, a internet é assimétrica. Segundo, o algoritmo tornou-se a nova indústria. Só mudou de forma. Se antes considerávamos as lógicas por trás das escolhas da indústria do disco obscuras, hoje as da realidade algorítmica são muito mais. Não sabemos como elas operam de fato. Além disso, do dia para a noite, as plataformas, de acordo com suas políticas internas, podem mudar e, de fato, mudam as regras do jogo sem deixá-las evidentes a seus jogadores, isto é, artistas, consumidores e toda a cadeia envolvida no meio musical. Para um Lil Nas X emergir como um grande case de sucesso dessas plataformas, quantos outros talentos tentaram e não conseguiram?

Cair na retórica fatalista de que "não se faz mais música como antigamente" ou de que o que se toca por aí não é "música de verdade" é romântico e ingênuo. Recentemente, gostei da esperta resposta da cantora inglesa Adele em uma entrevista para a Apple Music: “se todo mundo está fazendo música para o TikTok [de menor minutagem], quem vai fazer música para minha geração? Eu terei prazer em fazer o trabalho". Não quero aqui tomar a magnitude da cantora inglesa e equipará-la ao alcance da produção independente brasileira. Porém, sua fala sinaliza algo interessante: há público para todos a despeito dessa euforia pelos novos formatos engendrados pelas dinâmicas das plataformas. Alguns públicos são em maior volume, outros em menor. Caberá ao artista decidir o que busca e saber, desde cedo, o que implica cada escolha. Ter consciência do contexto comunicacional e do consumo no qual se pretende investir já é um bom começo.

Precisamos, mais do que nunca, retomar a ideia de circuito, que foi solapada pela falsa percepção de democratização da internet. As bolhas e seus algoritmos são os novos circuitos. Marina Sena buscou bombar "de primeira" e conseguiu. Em pequena parte, seu sucesso advém de sua obstinação em se inserir em uma grande bolha engajada com a produção constante de conteúdo. Em outra parte maior, sua meteórica ascensão se deve a mistérios que sempre há de pintar por aí. O sucesso na música popular, no contexto digital, é loteria. Mas quando foi diferente?

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Renato Gonçalves
Revista Bravo!

Pós-doutorando no IEB-USP. Doutor em Ciências da Comunicação (ECA-USP), mestre em Filosofia (IEB-USP) e pesquisador multidisciplinar. Docente ESPM-SP.