O som ao redor
A 'criação reversa' de David Byrne vê o criar como uma experiência moldada pela tecnologia, plataforma de negócios ou até mesmo espaços acústicos
PAUSA DE MIL COMPASSOS | coluna semanal
por Cacá Machado
David Byrne conta, em seu livro Como funciona a Música (Amarilys, 2014), que demorou muito tempo para entender o seguinte sobre o processo criativo: “o contexto determina boa parte de tudo o que é escrito, pintado, esculpido, cantado ou encenado.” Como ele próprio reconhece, esta descoberta não é algo tão “genial” assim, mas no mínimo contradiz um certo senso comum segundo o qual a criatividade viria preponderantemente de alguma emoção interna ou de rompantes passionais — na música clássica, por exemplo, esta concepção ajudou a criar o mito do compositor genial que num ato de epifania seria capaz de escrever uma sinfonia inteira.
O tema é antigo e atravessa o pensamento crítico de diferentes modos nos campos das artes. Afinal, é claro que existe uma dimensão interna do texto (subjetiva) e outra externa do contexto (sociocultural) em qualquer criação. Para mim, a melhor formulação sobre este impasse clássico veio da crítica literária com Antonio Candido em seu livro Literatura e Sociedade de 1965: “Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.”
Entretanto, Byrne, líder do banda Talking Heads, que nunca transitou pelo mundo do pensamento teórico, pelo contrário, frequentou o universo das ruas, botecos e becos em sua atividade como músico e agitador cultural, constrói outra sensibilidade para o entendimento das nuances da criação. É muito comum no ambiente da cultura pop e na cobertura jornalística desse meio certa leitura maniqueísta construída sob análises comportamentais relacionadas aos gêneros musicais: Glam vs. Power Pop; bandas de Pop Art vs. Minimalistas ou Conceituais; Punk-Rock vs. Rock de Arena; etc. David Byrne vai no contrapelo e lê o seu mundo de modo mais complexo. Aqui reside a originalidade do seu livro — a partir de sua própria trajetória são abordados aspectos históricos, técnicos, culturais e mercadológicos para tentar entender os processos da criação musical a partir do seu entorno.
Acho reveladora a abordagem que ele propõe para pensar a “cena musical independente” de sua geração ao redor do CBGB nos anos 1970/80. O ponto de virada é aquilo que ele chama de “criação reversa”, isto é, deixar de pensar a música como criação em si própria para entendê-la como uma experiência moldada pela tecnologia (softwares, hardwares), plataforma de negócios ou até mesmo espaços acústicos. Isto, aliás, é exatamente o que a etnomusicologia contemporânea vem chamando de estudos da “auralidade”– o entendimento da música não como linguagem autônoma única mas como uma rede de experiências sonoras (aurais) cuja construção de linguagens varia a partir da elaboração de cada cultura ou perspectiva. Consciente ou não dos estudos acadêmicos, o compositor pop arrisca, então, boas generalizações: a polifonia rítmica da música africana, por exemplo, soa melhor em espaços abertos onde os corpos estão livres para dançar enquanto que, ao contrário, a polifonia melódica de Bach funciona tão bem para pessoas sentadas em igrejas fechadas. O entorno define a prática musical. Por isso também, conclui Byrne, que a sonoridade de bandas de rock independente se encaixa perfeitamente nos espaços apertados e ruidosos de botecos como CBGB. Neste contexto, as casas de shows são estratégicas para a criação de uma cena independente. E o músico elenca aquilo que considera os elementos que formam o entorno de uma cena: mais que poder é dever tocar o seu próprio material autoral; é preciso que haja um lugar de tamanho e localização adequados onde apresentar o novo material; os músicos devem ganhar entrada livre nas noites em que não estão tocando (e talvez um cerveja também); deve haver um quê de alienação quanto à cena musical dominante; o aluguel das casas independentes precisa ser barato (e continuar barato); deve ser possível ignorar a banda quando desejado; a transparência social deve ser encorajada; e, por fim, as bandas devem receber um pagamento justo. O argumento é mais extenso do que eu poderia resumir neste espaço limitado, mas dá a dimensão com muita riqueza dos temas envolvidos em torno das cenas independentes.
A leitura do livro de Byrne me fez pensar, entre outras coisas, nas relações da minha e de outras gerações musicais com a cidade de São Paulo. Lanço aqui perguntas para desenvolver na próxima coluna: quais espaços acústicos moldam as diferentes cenas musicais da São Paulo hoje em dia? Como entender a disputa destes espaços sônica e simbolicamente? Queremos uma cidade que normatize os sons (músicas, cenas, criações) ou que admita o conflito natural de interesses como tônica das negociações? Qual a função do poder público e da iniciativa privada nisso tudo?