Obra de Leonilson, digitalizada e divulgada, continua pulsante
Cearense radicado em São Paulo, Leonilson é um dos nomes mais importantes da chamada Geração 80 das artes plásticas.
Morto precocemente em 1993, com apenas 36 anos, o artista tem tido a sua memória preservada desde então com trabalhos como o Projeto Leonilson, uma associação comandada por sua irmã, Nicinha, que cataloga sua obra, e exposições em parceria com diversas instituições.
Dentre os trabalhos recentes que ajudaram a celebrar sua memória está a exposição Sob o Peso dos Meus Amores, produzida pelo Itaú Cultural em 2011.
A mostra ficou em cartaz na sede do Instituto, na Avenida Paulista, e viajou também para a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. Para realizar o trabalho, os curadores Bitu Cassundé e Ricardo Resende contaram com mais de 300 obras expostas e um grande feito de digitalização das obras de Leonilson, que foi iniciado pelo Itaú Cultural e posteriormente seguiu para o Projeto Leonilson (o acervo pode ser visto aqui).
Além disso, foi produzido um mobiliário que, na exposição, ajudou a contar a história do artista de um modo mais íntimo, como explica o cenógrafo Valdy Lopes. Parte desses móveis foram doados ao Projeto Leonilson e servem hoje de abrigo para diversas das suas obras. O acervo pode ser visitado, com agendamento prévio, em São Paulo.
Também em parceria com o Itaú Cultural surgiu o filme A Paixão de J. L., dirigido por Carlos Nader (assista abaixo). Vencedor dos prêmios de melhor longa-metragem nos festivais É Tudo Verdade e Mix Brasil em 2015, o documentário usa fitas gravadas pelo próprio Leonilson como narração, e reconta os últimos anos de sua vida. Sonhos, desejos íntimos (ter um namorado, ser amado), passeios com os amigos e criações são registrados por Leonilson, em um diário mais do que particular.
Nader, que era amigo de Leonilson, diz que já sabia da existência das fitas desde os anos 1990, e achou que o convite do Itaú Cultural para fazer um filme sobre ele seria a “ocasião perfeita” para usá-las. As fitas também estão no filme Com o oceano inteiro para nadar, de Karen Harley.
Neste ano, em maio, o Projeto Leonilson lançará o catálogo Raisonné do artista. Ele será o primeiro artista contemporâneo brasileiro a ter um catálogo completo de sua obra, que reunirá, em 3 volumes, informações sobre todos os seus trabalhos e a bibliografia relacionada a eles existente até então. Antes disso, no dia 14 de março, uma nova exposição reunirá o trabalho do artista no Ceará, num novo espaço da Universidade de Fortaleza (UniFor).
O catálogo compila mais de 20 anos de pesquisa do Projeto Leonilson, que foi fundado logo após a morte do artista. O Projeto Leonilson, em parceria com outras entidades, realiza exposições sobre o artista por todo o país, edita livros, licencia imagens, dentre outras atividades. Há, inclusive, materiais inéditos em posse de sua família, como os cadernos do artista.
História
Leonilson — ou, como era chamado, Leó — nasceu em fortaleza em 1957. Em 1961, mudou-se com a família para São Paulo. Com pais muito religiosos, frequentou colégios católicos. Na adolescência, estudou artes na Escola Panamericana e depois cursou (entre 1977 e 1980, sem concluir) educação artística na FAAP. Na faculdade, ele conheceu outros jovens artistas e começou a participar da escola Aster, de formação mais livre. Passou a conviver com nomes como Luiz Zerbini, Ana Maria Tavares, Eduardo Brandão, Rafael França, entre outros.
Em 1981, Leonilson foi morar na Europa (em Madrid, depois viajou pela Itália, Alemanha e Portugal) e fez exposições individuais internacionais na Galeria Casa do Brasil, em Madrid, e na Galeria Pelegrino, em Bolonha. Em 1983, já de volta, fez as individuais Leonilson — desenhos pinturas na Galeria Luisa Strina, em São Paulo e Leonilson — pinturas e desenhos, na Galeria Thomas Cohn Arte Contemporânea, duas das principais vitrines de arte da época.
É uma exposição de 1984 — Como vai você, Geração 80? — que consagra Leonilson e outros jovens artistas como Leda Catunda, Beatriz Milhazes, Daniel Senise, Gonçalo Ivo, Sérgio Romagnolo, entre outros, como a chamada “Geração 80”. Naquele período vivia-se uma retomada da pintura em todo o mundo, depois de sua declarada “morte” com o boom das instalações e das artes performáticas. No Brasil, como diz o próprio Leonilson em entrevista a Adriano Pedrosa, “(…) os artistas conceituais diziam que a arte tinha morrido. […] Eu acho também que era uma consequência natural: depois da geração de artistas conceituais, é claro que um monte de gente cresceu e entrou na faculdade de Artes Plásticas, largou a faculdade e estava querendo entrar no mercado. […] O mercado estava ávido (risos). Porque naquela época vendia-se tanto trabalho, sabe?”
Ainda na década de 1980, Leó expôs várias vezes em Munique, Paris, Amsterdã, além de diversas capitais brasileiras. No entanto, foi a partir da produção de 1989 que críticos como Lisette Lagnado e Adriano Pedrosa identificam um ponto de inflexão na sua obra, que se tornara mais íntima, delicada, pessoal e, para estes autores, mais consistente.
Nicinha, irmã de Leó, discorda: “Em 1985 ele foi chamado para a Bienal de Paris, Bienal de São Paulo, logo depois ele foi convidado para fazer uma gravura em comemoração aos 200 anos da Revolução Francesa. Eu acho que talvez ele não tivesse a repercussão que ele tem agora, mas reconhecimento sim. Logo que ele voltou da Espanha, em 1983, conseguiu também individuais com os dois melhores galeristas do país!”.
Fato é que a partir da produção de 1990, Leó passa a tratar muito mais de questões pessoais, e isso se aprofunda após a descoberta de que era portador do vírus HIV, em 1991. É a partir desse período também que o artista começa a registrar ideias e pensamentos num gravador. As fitas, na verdade, virariam um livro com um amigo, Ricardo Ferreira Henrique, também já falecido.
Nicinha conta que, após a sua morte, a família se reuniu para ouvir as fitas e decidiu que aquele material era muito dolorido e não seria liberado. Com o tempo, passaram a ser usadas pontualmente, editadas as falas que não tinham tanto interesse público.
Obra
Diversos aspectos da obra de Leonilson o levaram à uma certa condição de “mito”: o artista abominava o mundo das galerias (“eu quero que meus trabalhos me levem a mim, e não a uma conta bancária”), era gay e portador de aids (“ser gay hoje em dia é como ser judeu na Segunda Guerra Mundial”) e não era bem visto pela crítica, especialmente em São Paulo. Boa parte dos seus trabalhos, por vontade sua, não era emoldurada, evidenciando essa característica anti-mercado.
Contrário à tendência de contemporâneos seus como o Grupo Casa 7 — formado por Paulo Monteiro, Nuno Ramos, Fábio Miguez, Carlito Carvalhosa e Rodrigo Andrade, que explorava mais a metalinguagem artística, ou seus amigos Luiz Zerbini, Leda Catunda e Beatriz Milhazes, mais figurativistas e desbravadores das cores, Leonilson partiu, sobretudo após 1989, para uma arte mais íntima, pessoal. Séries como as geografias, as matemáticas e as geometrias e os diários são algumas das obras que mostram essa modulação.
Para Carlos Nader, o que o toca na obra dele é a “capacidade de extrair potência da simplicidade”. “Pouquíssima gente consegue isso, ainda mais tão cedo quanto ele. É uma coisa de mestre que ele atingiu muito jovem, talvez até por já carregar em algum lugar dentro dele a percepção de que iria morrer cedo. O Eduardo Coutinho, um outro artista que admiro, atingiu essa mesma essencialidade na velhice. como a maioria dos mestres. E como o Coutinho, o trabalho do Leo tem essa essencialidade, sem perder um pingo de complexidade. Aliás, é o contrário. É um trabalho complexo justamente porque é simples”.
Leonilson trabalhava com bordados, tecidos, lápis Caran d’Ache (seus preferidos), canetas, gravuras, esculturas, croquis, tintas, nanquim, entre outros materiais. A costura passou a fazer parte da sua obra após 1989, sob influência de nomes como Arthur Bispo do Rosário, artista que admirava, e seus pais: a mãe que adorava bordar e o pai um comerciante de tecidos.
Veja a seguir alguns de seus trabalhos:
O Perigoso
A série O Perigoso reflete sobre a condição de portador de aids naquela época. Compõem a série O Perigoso, Margarida, Prímula, Lisiantros, Copos de leite, Anjo da Guarda e As fadas. Sobre eles, o artista disse: “Eu sou uma pessoa perigosa no mundo. Ninguém poder me beijar. Eu não posso transar. Se eu me corto, ninguém pode cuidar dos meus cortes, eu tenho que ir numa clínica. Tem gente perigosa porque tem uma arma na mão. Eu tenho uma coisa dentro de mim que me torna perigoso. Não preciso de arma”.
Bordados
Os três bordados acima representam autorretratos feitos por Leonilson. Em formato mais aveludado, com mais textura, ou mais fabulado, quando escreve “LEO NÃO PODE MUDAR O MUNDO PORQUE OS DEUSES NÃO ADMITEM QUALQUER COMPETIÇÃO COM ELES” e, na parte inferior “O DESERTO O OCEANO OS RAPAZES AS POESIAS”, as obras mostram diversas visões de si.
Ilustrações para a Folha de S. Paulo
Entre 1991 e 1992, Leonilson ilustrou a coluna da jornalista Barbara Gancia na Folha de S. Paulo. Nicinha conta que a parceria funcionava assim: Gancia enviava o título e ele desenhava livremente a partir daquela ideia. Muitas vezes, o desenho não tinha nada a ver com o que estava escrito.
Truth, Fiction
Favorite Game, obra que ilustra o livro Truth, Fiction, organizado por Adriano Pedrosa, é um autorretrato de Leonilson.
Serviço
Para visitar o Projeto Leonilson, agende uma visita: http://www.projetoleonilson.com.br/contato.aspx
*este texto foi desenvolvido pela Bravo! para o Itáu Cultural