Ocupação ecoa as ‘vozes-mulheres’ de Conceição Evaristo

Andrei Reina
Revista Bravo!
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10 min readMay 30, 2017
A escritora Conceição Evaristo (Foto: Richner Allan)

Quem apenas ouve Conceição Evaristo falar tem a impressão de que está recebendo um conselho. Sua voz, baixa e calma, é emitida com gentileza. Mas se no entanto se escuta o que ela diz, é provável que os olhos se abram com espanto. É baixinho, deixando a força brotar subterraneamente, que Conceição diz coisas como: “A nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.”

Algo semelhante se dá com sua escrita. Nela, o prazer em narrar, a ternura de personagens como Ponciá Vicêncio e o carinho por figuras femininas da família, como o verbalizado pela narradora do conto Olhos d’Água para sua mãe e filha, convivem com a violência (da sociedade, do Estado, dos homens) e a pobreza. Seu modo particular de se comunicar, seja face a face ou por escrito, parece vir menos de um conformismo do que da ciência de que esta realidade é um produto histórico, fruto de anos de privação e sofrimento. O conteúdo do que diz e escreve, violento e comovente, é transmitido com a distância que advém da sabedoria.

É este passo para trás que permite Conceição Evaristo conectar o passado, o presente e o futuro — ou, como a autora irá preferir, o antes, o agora, o depois e o depois-ainda — da mulher negra em sua luta histórica por liberdade. Este entrelaçamento se dá a ver já em Vozes-Mulheres, um de seus primeiros poemas publicados. Nele, estão irmanadas as vozes de sua bisavó (que “ecoou criança nos porões do navio”), de sua avó (obediente “aos brancos-donos de tudo”), de sua mãe (cuja revolta ecoou baixo “no fundo das cozinhas alheias”), a sua própria (que “ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome”) e a de sua filha, que “recolhe em si as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas” para um dia ressoar “o eco da vida-liberdade”.

Ecos desta transmissão podem ser ouvidos, vistos e lidos na Ocupação Conceição Evaristo, em cartaz no Itaú Cultural, em São Paulo, até o dia 18 de junho. Documentos, fotografias, livros, vídeos e textos expostos no centro cultural dão testemunho da vida, obra e trajetória de uma das principais escritoras brasileiras vivas e que, aos 70 anos, enfim recebe reconhecimento do tamanho de sua importância.

Entrevista de Conceição Evaristo à Bravo!

Primeiros ecos

Conceição Evaristo nasceu em Minas Gerais no ano de 1946 e passou parte de sua infância na favela conhecida como Pindura Saia, na zona sul de Belo Horizonte. Nos anos 1970, muda-se para o Rio de Janeiro, onde conclui o curso normal e leciona em diversas escolas públicas. No final dos anos 1980, cursa graduação em Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro, área na qual se mantém nas décadas seguintes como pesquisadora— em 1996, defende o mestrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e, em 2011, o doutorado na Universidade Federal Fluminense.

Em 1990, Evaristo tem seus primeiros poemas publicados no volume 13 dos Cadernos Negros, revista do grupo literário Quilombhoje, sediado em São Paulo. A circulação de seus escritos ficaria restrita ao movimento social negro e a alguns colegas universitários até 2003, quando é publicado Ponciá Vicêncio. O romance marca uma virada na recepção de seus textos, tendo sido traduzido para diversos idiomas e incluído como leitura obrigatória em vestibulares.

A ocupação coroa o reconhecimento tardio que vem recebendo a autora, processo que inclui um Prêmio Jabuti na categoria de contos e crônicas para o livro Olhos d’Água, em 2015, e o convite para participar da programação oficial da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, em julho deste ano. Conceição Evaristo nota semelhanças entre a sua trajetória e a de outras artistas negras que, como ela, só tiveram seu talento e relevância reconhecidos tardiamente, como Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara e Jovelina Pérola Negra. “A visibilidade para as mulheres negras no campo da arte é muito tardia”, ela diz. “É muito fácil pensar que as mulheres negras cozinham, dançam, arrumam bem uma casa, cuidam do corpo do outro, são boas de cama, mas imaginar as mulheres negras como intelectuais, escritoras, médicas, acadêmicas… o racismo brasileiro não permite que se crie esse imaginário”, conclui.

A escritora Conceição Evaristo (Foto: Richner Allan)

Constelação diaspórica

Outra mulher negra que ganha reconhecimento com a ocupação é Joana Josefina Evaristo, mãe de Conceição que, além de criar os dez filhos, lavava e passava roupa para fora. O dia-a-dia árduo não a impediu de enriquecer a vida deles com brincadeiras, entre as quais muitas incluíam a contação de histórias. “Eu não nasci rodeada de livros, eu nasci rodeada de palavras”, diz Conceição em vídeo-instalação da mostra. Essa oralidade, que vem de sua mãe e de suas tias, está presente em sua literatura. A própria Dona Joana arriscaria seus passos com as palavras, preenchendo diversos cadernos com histórias, observações do cotidiano e reflexões escritas em verso e prosa. Sua inspiração veio da leitura de Quarto de Despejo: diário de uma favelada, da também mineira Carolina Maria de Jesus.

Na ocupação, dona Joana e Carolina se encontram juntas, fixadas em uma mesma parede, dedicada às leituras fundamentais na formação de Conceição Evaristo. Na parte superior, os cadernos escritos a mão — alguns com correções ortográficas feitas pela filha, expediente que depois julgaria descabido. Abaixo deles, uma série de livros de autores de diferentes países, estilos e gerações — quase todos negros. Estão lá, além de Carolina Maria de Jesus, Lima Barreto, Solano Trindade, Alice Walker, Toni Morrison, Chimamanda Ngozi Adichie e outros cerrando fileiras numa constelação diaspórica. Postos em conjunto, evocam a possibilidade de uma outra tradição literária.

Cartas negras

E tradição, como se sabe, é algo que deve (ou pede para) ser transmitido. Esta ética da transmissão está presente na ocupação, não só por oferecer ao público os livros de Conceição Evaristo, postos ao lado daqueles sem os quais não existiriam, mas também pela oportuna reedição do projeto das Cartas Negras. No início dos anos 1990, Evaristo e mais quatro escritoras negras — Miriam Alves, Sonia Fátima da Conceição, Lia Vieira e Esmeralda Ribeiro — iniciaram uma correspondência em que trocavam relatos e discutiam temas ligados às lutas antirracista e feminista. A carta de uma era enviada em cópia para todas as outras, que então respondiam do mesmo modo. Para a nova edição, que pode ser lida no programa da ocupação, foram convidadas escritoras negras de gerações posteriores à de Conceição. Na carta inicial, ela convoca: “Voltaremos potencializadas com mais vozes para juntas sustentarmos nossa confraria. Um chamado está sendo feito”. E este foi atendido por autoras como Ana Maria Gonçalves e Elizandra Souza, configurando uma nova troca que é ao mesmo tempo um estender de mãos às novas escritoras.

Mais jovens que elas são as estudantes que frequentam com interesse a ocupação — e que eram presença majoritária em todas as visitas desta reportagem. Há na expressão delas um pouco da de Djamila Ribeiro, mestre em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo, quando leu Conceição Evaristo pela primeira vez. “Foi incrível me identificar com os escritos dela, me emocionar e saber que mulheres como eu eram grandes escritoras, já que a escola não me ensinou isso”, conta. No espaço aconchegante, servido de mesa, cadeiras, silêncio e boa iluminação, elas podem ser vistas folheando os livros de Conceição disponíveis para consulta — além dos que assina sozinha, há também diversos números dos Cadernos Negros.

A história da publicação de um deles, Becos da Memória, é contada através de documentos e cartas expostos. Sua primeira edição, que não foi publicada, foi concluída no final dos anos 1980. Do esboço meticuloso da estrutura, feito a mão por Evaristo, até a enfim publicada segunda edição do romance, contam-se 20 anos de esforço — o criativo e o de ser publicada. Estão lá o envio dos originais de 1987, as cartas com a primeira recepção crítica de amigos e professores universitários, o prefácio do escritor Joel Rufino e as ilustrações esboçadas por seu irmão. A segunda edição, publicada em 2006, é exibida na ocupação com pistas da história que a conformou — o livro aparece, assim, não como um objeto caído do céu, mas como um que forçou seu caminho sob a terra nem sempre fofa da cultura e da história.

Um dos cadernos de Dona Joana e uma das “Cartas Negras”, de Conceição Evaristo, de 1991 (Foto: Divulgação)

Escrevivência

No prefácio do livro, Conceição diz que Becos da Memória foi seu “primeiro experimento em construir um texto ficcional con(fundindo) escrita e vida, ou melhor dizendo, escrita e vivência”, procedimento que ela depois desenvolveria em escritos como Ponciá Vicêncio e que chamaria de escrevivência. Com ela, Evaristo propunha uma escrita baseada nas experiências vividas, testemunhadas ou ouvidas, com foco acentuado no cotidiano de personagens oriundos das classes populares — no caso dos poemas, contos e romances de Evaristo, estão no foco narrativo quase sempre mulheres negras. Apesar do olhar atento ao presente cotidiano, a escrevivência surge de um incômodo histórico, que Conceição Evaristo traduz na imagem das “mães pretas” do período escravocrata — as mulheres negras que, no interior da casa-grande, cuidavam e contavam histórias de dormir para os filhos dos senhores. À ela, a literatura de Conceição Evaristo propõe uma espécie de contra-imagem. Ou, como ela diz:

Quando eu penso escrevivência, eu penso numa imagem que seja capaz de borrar esta. A autoria das mulheres negras não é para adormecer os da casa-grande. Pelo contrário: é para incomodá-los nos seus sonos injustos.

Este ponto de vista elaborado pela escritora modifica o modo como se olha para o cânone literário e implica em tensões formais sofisticadas. No caso de Ponciá Vicêncio, Evaristo narra a trajetória de uma menina até a maturidade em tudo o que nela há de negativo — perda, morte, violência, pobreza. Uma vida em constante subtração, que chega ao ponto de Ponciá olhar-se no espelho e nada enxergar, é contada, no entanto, na forma de um romance de formação — gênero literário de origem alemã em que se relata, desde a infância, a trajetória e o amadurecimento de um personagem, como o célebre Wilhelm Meister. Nas mãos de Evaristo, o gênero se transforma através de um “brutalismo poético”, como observa Eduardo de Assis Duarte, professor da Universidade Feral de Minas Gerais. Em artigo dedicado ao romance, ele escreve:

O ímpeto antropofágico se faz presente na postura de rasurar o modelo europeu para conformá-lo às peculiaridades da matéria representada. Assim, a apropriação feita por Conceição Evaristo ganha contornos paródicos, pois em lugar da trajetória ascendente do personagem em formação, oriunda de Goethe e tantos mais, o que se tem é um percurso de perdas materiais, familiares e culturais. E, em lugar da linearidade triunfante do herói romanesco, temos uma narrativa complexa e entrecortada, a mesclar de forma tensa passado e presente, recordação e devaneio.

Conceição Evaristo com sua mãe e tias | Conceição com o marido Oswaldo (Fotos: Divulgação)

Literatura e cotidiano

Na combinação de um ponto de vista original — que é o do olhar de uma mulher, negra e das classes populares — com a atenção voltada para o cotidiano reside a força da literatura de Conceição Evaristo. Esta poética que brota do vivido é materializada na ocupação, para além do papel, nas colchas elaboradas por artistas plásticas e expostas logo na entrada. Em uma delas, chamada Meia Lágrima, a paranaense Lidia Lisboa costurou bolsos de onde o visitante pode retirar trechos de poemas de Conceição, como o que dá nome à peça. Em outra, a paulista Janaina Barros presta tributo a Ponciá Vicêncio, bordando, numa face da colcha, a menina negra rodeada de flores, com um círculo amarelo ao centro que lembra um sol ou, quando alguém se posiciona diante dele, uma auréola. Em ambas as peças, um objeto do cotidiano ganha novos sentidos e usos através da criação de artistas negras. Na contra-face da colcha de Janaina há a inscrição de um trecho do romance de Conceição Evaristo que diz assim:

A vida era um tempo misturado do antes-agora-depois-e-do-depois-ainda. A vida era a mistura de todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser.

Na Avenida Paulista, coração econômico e cultural do país, a Ocupação Conceição Evaristo é um bordar de ecos passados, presentificados numa fruição que aponta para um futuro negro e feminino. Há uma energia que brota do piso feito de tijolos de adobe que parece sussurrar poética e violentamente: Conceição Evaristo e as suas seguem ocupando e resistindo.

Ocupação Conceição Evaristo

www.itaucultural.org.br/ocupacao/conceicao-evaristo

Parte do conteúdo da Ocupação Conceição Evaristo também pode ser consultado no portal do Itaú Cultural e inclui textos e vídeos (também disponíveis no YouTube) com depoimentos da própria Conceição, amigos, colegas de militância, ex-alunos e acadêmicos que se dedicaram à sua obra. O programa da exposição, que conta com a íntegra das Cartas Negras, também está disponível online.

A programação paralela da ocupação conta ainda com o debate “Mulheres negras: arte e militância” no dia 31, às 19h, com a presença de Conceição Evaristo, Sueli Carneiro (diretora do Geledés — Instituto da Mulher Negra), Jurema Werneck (diretora executiva da Anistia Internacional Brasil) e a cineasta Yasmin Thayná. Nos dias 10 (às 20h) e 11 (às 19h) de junho, a trajetória de Evaristo é contada em música e coreografia no espetáculo Canto de Vida e Obra, da dançarina Malú Avelar e das musicistas Mariana Per e Priscila Hilário. A entrada para todas as atividades é gratuita.

Visitação: terça a sexta (das 9h às 20h), sábados e domingos (das 11h às 20h). Até 18/6. Entrada gratuita.

Itaú Cultural: Avenida Paulista, 149 — Bela Vista — São Paulo.

*Este texto foi desenvolvido pela Bravo! para o Itáu Cultural

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