Os caminhos da Afrosinfônica

Maestro Ubiratan Marques conta da sua trajetória do axé aos arranjos orquestrais com BaianaSystem e Mateus Aleluia

Paula Carvalho
Revista Bravo!
13 min readDec 7, 2020

--

Ubiratan Marques. Foto: Cartaxo/Divulgação

Paula Carvalho e Fábio Marinho*

A nossa tradição de orquestras afro-brasileiras é longa: de Abigail Moura (fundador da Orquestra Afro-brasileira, em 1942), inspiração para nomes como Carlos Negreiros (que participava do grupo) e Moacir Santos, à retomada de projetos que fundem matrizes da música afro-brasileira com jazz, com a Orquestra Rumpilezz, criada por Letieres Leite, passamos por algumas escolas de arranjo e interpretação que inspiraram muitos músicos brasileiros. Um exemplo recente é o BaianaSystem, que trouxe a sonoridade da Orquestra Afrosinfônica para O Futuro Não Demora, disco lançado em 2019. Nestes caminhos, o trabalho liderado pelo maestro baiano Ubiratan Marques desde 2009, além de trazer elementos como o coro e as cordas, apontam para um sentido do sagrado bastante diferente dos clássicos de sinfônicas europeias. A todos esses artistas, um projeto comum também é o do ensino: eles também dão aulas, muitas vezes liderando escolas, e formam outros artistas — no caso de Bira, por anos na Universidade Livre de Música Tom Jobim, em São Paulo, e posteriormente com o seu Núcleo Moderno de Música, hoje sediado no Pelourinho, em Salvador.

Cinco anos depois do primeiro álbum, Branco, a orquestra de 22 músicos capitaneada por Ubiratan Marques lançou no dia 20 de novembro Orín, a Língua dos Anjos, disco que explora composições de Mateus Aleluia sobre espiritualidade, além das participações de Lazzo Matumbi, André Magalhães (também produtor do álbum), Gerônimo e dos próprios músicos do BaianaSystem. Conversamos com Bira em setembro por videoconferência — a ideia era falar sobre sua visão da composição e de como as claves rítmicas estão presentes em seu trabalho desde o início de sua carreira da música, com a Banda Reflexu’s, uma das pioneiras do axé na Bahia. Aproveitamos agora para publicar a conversa de forma mais longa, com duas perguntas feitas recentemente sobre o novo trabalho.

Você pode comentar um pouco sobre o processo de produção de Orín, a Língua dos Anjos? Como surgiram as parcerias e qual a importância de Mateus Aleluia para a ideia de ancestralidade que norteia o disco?
Começando lá atrás: quando eu voltei de São Paulo para Salvador, seu Mateus estava voltando também de Angola, a gente se conheceu e parecia um reencontro, uma pessoa da minha família. Ele me convidou para produzir junto com ele o primeiro álbum solo, o Cinco Sentidos (lançado em 2010). De lá para cá nos tornamos cada vez mais íntimos. Orín, a Língua dos Anjos nasce das conversas com seu Mateus. Ele sempre usa essa frase — “a língua dos anjos” — quando tem algum mistério, algo entre o céu e a terra. O disco de fato parte dessas seis músicas com ele, que estão no álbum. A palavra orín significa canção em iorubá. A ideia surge também de um filme que participei, Orín: Música Para os Orixás, dirigido por Henrique Duarte. As outras parcerias — Lazzo, Gerônimo — são com grandes amigos. Toquei com Gerônimo por 20 anos, é como se fosse meu irmão. Esse álbum vem justamente nesse momento em que a intolerância vem tomando conta e as pessoas são tão duras que parece que você não as conhece. O disco vem com essa energia de nos proteger e dar força para continuar lutando.

Você participa do disco do BaianaSystem e agora eles participam do da Orquestra e você lança o álbum pelo selo deles. Pode comentar um pouco dessa parceria também?
Eu conheço os meninos há muito tempo — Seko (Bass, baixista) é primo de Gerônimo. Conheço também Betinho (Roberto Barreto) de muito tempo. Em 2016, liguei para Beto para chamá-los para fazer algo da Afrosinfônica com o BaianaSystem, tinha falado também com os meninos do Ilê Ayê, era um projeto. Aí eles me deram umas bases para ouvir — era a de “Fogo” — e comecei a fazer arranjos, sem muita pretensão. Na sequência, eles me chamaram pra gravar “Invisível”. Em 2017, toquei com eles no carnaval. E depois comecei a viajar com eles, as músicas “Água” e “Fogo”, que eram apenas projetos, entraram no disco, e foi indo. “O Futuro Não Demora” ajudou também a promover a Afrosinfônica. Eu sou admirador do processo criativo deles, vejo uma identidade ali fora do comum. Acho impressionante a forma como eles constroem as ideias e como isso mexe e transforma as pessoas. Para mim é um grande aprendizado, é algo muito parecido com o que vivi lá atrás com a Banda Reflexu’s. A nossa banda lá atrás falava em libertar Mandela, falava da história de Madagascar, falava de ancestralidade, e era muito pop.

Como você pensa o processo de composição, da música de matriz africana ganhando a aura de sinfônica?
A hora da composição é muito espontânea, eu não percebo realmente o momento da criação. Quando é a hora de botar no papel para organizar, eu começo a sistematizar e trazer ideias, é o momento do roteiro. “Aqui, quero que o terreiro apareça”. Então, vou para a percussão. “Aqui, quero uma procissão de negros” — Moacir Santos fala muito sobre isso né?. “E agora eu quero essa filarmônica aparecendo em Cachoeira”. Wagner Tiso fala disso também: são imagens. Em“Onde estão as Borboletas” [música de Orín], seu Mateus começa falando do vento. Eu estou com ele, na casa dele, eu já tocando a ideia e ele lá ouvindo a música. Aí vem a produtora e vizinha dele, bem cedo pela manhã, e fala: “Vocês já estão criando?”. Aí ele olha para ela e canta: “De repente perguntaram/Já é hora de criar? Como criar o que já está criado? Repare e veja, tudo está”. Aí a música começa. Depois tem uma parte que ele fala: “Olhe e veja, e depois deixe de olhar/ Pare e pense, depois deixe de pensar”. Quando ele fala ‘de repente’, coloco algo que abrace isso, como se fosse a construção do mundo. O processo do roteiro, do arranjo até a orquestração é diferente. Eu demoro para fazer isso, é muito lento mesmo. Às vezes fico seis meses em uma obra. Esse disco, por exemplo, nosso segundo álbum… a orquestra tem dez anos e a gente vai para o segundo álbum, né? Se bem que eu já estou com o terceiro todo encaminhado, chamado O Poema das Sombras, sobre o racismo, e vamos lançar lá para 2022.

Com Mateus Aleluia. Foto: Wesley Rosa/Divulgação

Pode contar um pouco de como chegou à música? Estava assistindo ao seu encontro com Letieres Leite, vocês estudaram com os mesmos professores no Severino Vieira, foi ali que começou?
Quando era pequeno, eu nem sabia que as pessoas pudessem viver de música. Eu era filho de petroleiro, meu pai trabalhava na Petrobrás. Minha bisavó tinha um cargo no candomblé e minha avó era ialorixá. Minha bisavó tocava muito violão. Mas aquilo pra mim era mais uma coisa bonita que acontecia no meu ambiente, os tambores, o terreiro. E tem o lado de minha mãe também, que era do interior da Bahia. Lá no sertão tinha um cara chamado Zé do Fole, que tocava sanfona e eu ficava ouvindo. Eu sempre passava minhas férias nesses lugares. Com 13 anos, por falta de vagas em outras áreas, fui fazer a parte técnica do ensino médio (científico, na época) em artes. Você podia escolher: dança, teatro, artes visuais ou música. Aí claro, eu escolhi música. Aquilo mudou a minha vida. Já estavam lá dando aulas: Moa do Katendê, Mestre King, que faleceu há poucos anos, uma pessoa renomada na área de dança na Bahia e no mundo. Mimi (Maria de Lourdes) Gondim, Paulo Gondim ia lá de vez em quando. Emilia Biancardi com um grupo que dialogava com o balé folclórico da Bahia. Então quando eu percebi eu tava no meio de jovens, todo mundo ali com 13, 14, 15 anos, com a conexão com a arte já em alto nível. A gente trabalhava com música regional, música afro-brasileira, e estudávamos música erudita também, com os princípios da música europeia, do conhecimento teórico. O começo foi assim. Eu saí desse curso com 17 anos (1984) e já fui direto pra faculdade. Com 18 anos eu comecei a fazer o curso de composição na UFBA.

Chegando na faculdade rolou um choque entre essa cultura mais da música popular e a tradição erudita?
Exatamente. Quando eu tava no Severino Vieira, a gente estudava música mas dialogava com todas as outras áreas. Quando fui pra faculdade quem fez o teste comigo foi (Ernest) Widmer, que é um compositor que foi trazido para cá pelo Koellreutter. Por mais que essas pessoas tivessem um olhar aberto e diferenciado, era música tradicional e o ensino era tradicional. Foi muito difícil. Eu já tava começando a tocar em trio elétrico. Aí entra outro aspecto que muda minha vida: eu já tinha uma banda, tocava nos trios, tocava o repertório de Dodô e Osmar. Esse período é perto de Gerônimo, Luiz Caldas. O choque para mim foi muito maior: eu estava tocando em trio elétrico, e infelizmente a visão dessas professoras e professores era um pouco limitada porque o mundo deles era aquele dentro da faculdade. Não vão olhar para o lado de fora com bons olhos. O que vinha do lado de fora era “música de esquina” e o que tava do lado de dentro era música nobre.

Aproveitando que você está falando dessa divergência entre o lado de fora e o lado de dentro da universidade, você comentou que passou pelo estudo tradicional de música, calcado na matriz europeia, a questão teórica, o piano como instrumento harmônico. Há essa influência fortemente da música europeia na harmonia, no entendimento da harmonia. E você já chegou a comentar sobre sua dificuldade de estudar piano na juventude. Não era qualquer um que tinha piano em casa, o piano tem um acesso difícil tanto pelo repertório como pelo custo. Como isso influenciou seus estudos nessa época?
Isso foi outra coisa que me levou pro trio elétrico. Eu não tinha instrumento. Um teclado naquela época era o preço de um carro. Quem tinha isso eram as bandas que faziam muito baile. Eu comecei a tocar no trio elétrico porque o cara “deixava na minha mão” [emprestava] — ele não me pagava, eu não recebia cachê, mas ficava com o teclado para levar para casa. Quer dizer, eu era explorado por ele [risos]. Já que eu não tinha tanta necessidade, morava com meus pais na época, já estava no lucro, tinha um piano em casa para começar a estudar. Nos trios o piano e os teclados ainda não eram muito usados. A gente ficava parado, fazia só harmonia.

André Magalhães, Lazzo Matumbi, Gerônimo, Beto Barreto, Russo Passapusso, Bira Marques. Foto: Wesley Rosa

Quando você decide que ia ficar mesmo na música popular?
Na universidade, me lembro que estava tentando “pegar” uma música de Caetano — eu estava estudando Bach, tocando alguma peça, e quando a professora saía eu parava para tentar pegar a harmonia daquela música do trio elétrico. Um dia, ela me ouviu tocando essas outras coisas. “Ah, quer dizer que é isso que você fica tocando por aí?”. Naquela época o professor era mestre, a gente não respondia de forma nenhuma. E ela começou a falar: “Olhe, se você continuar tocando essas coisas, você não vai ser ninguém, porque esse tipo de música não leva a nada. Você tem que tocar os grandes mestres, Bach, Beethoven”. Eu entendo, era assim o universo deles. Aquilo entrou por aqui e saiu por aqui (faz gesto com os ouvidos) — eu já me alimentava muito mais do lado de fora do que dali de dentro. Tanto que eu não terminei o curso de composição, fiquei um ano e meio. Depois eu já fui para a Banda Reflexu's, que abriu o mercado fonográfico da Bahia. Isso em 1987. O rótulo axé surge nesse período aí, com Hagamenon (Brito, jornalista). A Banda Reflexu's vende 1 milhão de cópias. Claro que tem a contribuição de Dodô e Osmar, mas o mercado fonográfico e as gravadoras mesmo começam a se interessar pela Bahia quando a Reflexu’s vende 1 milhão de cópias. E a gente fazia uma música preta, música de blocos afro. Quando pensei, já estava trabalhando e vivendo de música.

Nessa época do axé, como vocês lidavam com a desigualdade que havia na própria banda, a desvalorização dos músicos que tocavam percussão em relação aos músicos que faziam a parte mais harmônica, tocavam guitarra, que estavam nos instrumentos mais “valorizados”?
Tinha isso, era natural. Eu vivi isso desde o começo mesmo. Eu comecei com Gerônimo. Tinha até cachês diferenciados. Porque era muito difícil você encontrar um pianista. Era uma briga para você conseguir um tecladista. Tinha muita gente que tocava guitarra baiana. Isso está muito relacionado a essa tradição e colonização: a percussão vinha principalmente das pessoas que eram das comunidades. Eram pessoas que tinham muitas dificuldades, e faziam samba de roda ou alguma coisa parecida que era muito mais um hobby. Quando essas pessoas vinham para o trio elétrico, havia uma sensação de que isso já era um favor. Muitos tocavam surdo, repique. Aí você entra um pouco na discussão da desigualdade mas relacionado ao que realmente tinha muito valor: a gente está falando aqui de uma música que era totalmente explorada, a música negra estava ali nos trios elétricos, mas os negros não tinham nenhuma entrada naquele trio. E quando entravam, era para cumprir uma função que na cabeça do produtor não tinha muito valor. Era muito triste.

Quais eram as dificuldades para os músicos nessa época, considerando que muitos aprendiam ali na prática?
Na Banda Mel, Banda Reflexu's, que faziam música negra, já apareciam músicos que já tocavam instrumentos como guitarra ou teclado. A música permitia, porque não tinha muitos acordes, muitos caminhos harmônicos. Era uma composição que praticamente só tinha dois acordes, mas era muito bem feita, era modal, circular. (toca “Senegal”, da Banda Reflexu’s, no teclado) Você tinha ali dois acordes. Isso permitiu também que muitos meninos — eu conheci todos — se sentissem mais próximos para tocar essa música. Eles se sentiam seguros em tocar essa música. Depois, o pagode foi uma expansão disso. A oportunidade para esse músico vem com a própria música dele. A música dos blocos afros começou a ir para o trio elétrico e ela tinha um caminho harmônico muito elaborado e muito simples. Isso dava segurança. Jorge Amado falava em pintar o seu quintal — é exatamente isso. É muito mais simples. Isso foi o primeiro passo para as pessoas se sentirem mais empoderadas musicalmente.

Quando você fala nesse reconhecimento e proximidade, você fala em termos harmônicos ou ritmicamente? Ou ambos?
As duas coisas. Ritmicamente, nem se fala. Dentro da cultura do candomblé, a harmonia é meio espacial, é mais oculta, você não a ouve muito. Hoje, quando eu chego num terreiro, vejo que todas essas músicas já tinham um caminho harmônico. Mas já que a gente trabalha com melodia e ritmo — dentro do bloco afro é praticamente isso — o caminho harmônico vem modal, relacionado à música circular, da própria mãe África, e não com essa ideia feudal, da Igreja Católica. Ele não vem linear. O caminho melódico levou para um harmonia modal, que está ligada às tradições e civilizações milenares do pensamento circular. A melodia não permitia que a gente usasse um acorde ou um caminho harmônico da tradição europeia. O caminho melódico era muito mais forte. Por isso que eu falo que essa aura está aí dentro dos terreiros e dos blocos afro. Quando o cara fazia “retirante ruralista, lavrador” (início de Revolta Olodum), a melodia já tinha um caminho. Isso está preservado dentro da Banda Reflexus, da Banda Mel e todos esses grupos que faziam essas músicas de bloco afro, a tradição fortíssima de matriz africana — o caminho harmônico, melódico e rítmico.

Você fala que foram "salvos pela melodia", "a melodia que guiou esse caminho modal". Como foi esse processo de harmonização dessas melodias dos blocos afro? Quem estava por trás disso?
Os compositores iam na sede onde ensaiávamos. Damar Tropicália, Rei Zulu, Tonho Matéria, Miltão, Luciano. Daí o autor pegava o microfone e começava a cantar. Por exemplo: “Que mistérios têm os deuses…” [trecho de Deuses Afro Baianos, da Banda Reflexu’s]. A gente ficava ouvindo ou já começávamos a harmonizar. O pessoal de blocos afro não tinha tanta noção harmônica, então eles podiam mudar o tom na outra vez que cantassem. Um chegava lá e cantava dez músicas, o outro cantava doze. Todo dia. Eu não tinha ideia real do valor — eu era meio “cego de tanto ver”. A percepção dessas melodias aconteciam mais quando a gente ia fazer os arranjos. Em vez de usar o mi para concluir a música, usávamos mi menor, por exemplo, foi uma provocação da gente, dava uma aura. Éramos nós que harmonizávamos ali.

Foto: Cartaxo

Nas escolas de música existe esse estudo mais sistematizado, europeu, notação, partitura, a divisão em quadraturas. E por outro lado tem um outro sentido de educação (de que Letieres Leite fala muito) em que você aprende mais pelo ritmo, pelas claves, pelo corpo, forma como se dança. Também é uma ciência, também é um sistema, tem uma forma de se passar isso. Como você vê isso? Está presente também na sua forma de educar?
Isso é natural pra todos nós. Se a gente pegar todas essas coisas que vivemos o tempo todo e olhássemos para essas coisas com mais atenção, talvez a gente aprendesse muito mais. O sistema de claves é muito usado em Cuba, os cubanos já ganharam o mundo com essa ideia, já se organizaram há muito tempo. Da mesma forma, sistematizaram a música europeia. A gente vê o esforço de Letieres também de sistematizar o que ele conseguir — já vai ajudar muita gente. Ele fala que o mais importante é a vivência, e eu acho que é o caminho mais real. É isso que a gente deve buscar, é o que está faltando. Porque a gente não deve ser o outro. Precisamos ser quem nós somos. O Brasil é muito rico culturalmente, não há tempo em uma vida para aprender tudo o que o Brasil tem de importante. Como é que na faculdade a gente vai parar para aprender coisas que são de fora? Um mês já deu… não precisa ficar dez, cem anos estudando isso. Já foi.

*Fábio Marinho é bacharel em música pela Unespar e professor.

--

--

Paula Carvalho
Revista Bravo!

jornalista, doutoranda em sociologia na usp. quase tudo em torno de som 🎛 pra mandar mensagem: paula.cncarvalho@gmail.com