Os Crespos e a busca poética do porvir
Os atores Sidney Santiago Kuanza e Lucélia Sérgio refletem sobre os 15 anos da Cia. Os Crespos, que realiza encontros virtuais com artistas e intelectuais negros a partir do dia 26
Como ensina o movimento negro, as celebrações do 13 de maio podem ser enganosas, uma vez que, com frequência, a lembrança da assinatura da Lei Áurea se sobrepõe à luta dos abolicionistas, ao histórico de revoltas dos escravizados e à ausência de medidas do poder público para tornar efetiva a integração do negro na sociedade brasileira.
Com o objetivo de “propor confrontos e contranarrativas” a essa história oficial — e imaginar outras, através da “busca poética do porvir”, como diz Lucélia Sérgio — , a Cia. Os Crespos foi fundada no mesmo dia há 15 anos. O grupo nasceu do encontro entre cinco alunos da Escola de Arte Dramática da USP, na época os únicos negros no curso.
Desde então a companhia se firmou como um dos principais nomes do teatro de grupo de São Paulo, tendo abordado temas que vão dos afetos à revolução, como na trilogia Dos Desmanches aos Sonhos (composta pelos espetáculos Além do Ponto, Engravidei, Pari Cavalos e Aprendia a Voar sem Asas e Cartas à Madame Satã ou Me Desespero Sem Notícias Suas) e na peça de rua Alguma Coisa a Ver com Uma Missão. Nesse percurso, colaboraram com dramaturgos como José Fernando Peixoto de Azevedo (também diretor), Cidinha da Silva, Allan da Rosa e Marcelino Freire.
Como parte de sua pesquisa, Os Crespos também promovem encontros com artistas, intelectuais e ativistas do movimento negro, como os realizados no projeto Terças Crespas, sediado no Centro Cultural São Paulo. O isolamento exigido pela pandemia transferiu as conversas para o perfil do CCSP no Instagram, com reestreia marcada para a próxima terça (26). Os atores Lázaro Ramos e Hilton Cobra, a ensaísta e dramaturga Leda Maria Martins e a coreógrafa e arte-educadora Gal Martins são os convidados.
Para conhecer mais sobre a formação, o trabalho e as perspectivas de futuro da Cia. Os Crespos, a Bravo! conversou com os atores Sidney Santiago Kuanza e Lucélia Sérgio, que estão no grupo desde a fundação. Leia a seguir.
Como se formou a Cia. Os Crespos?
Sidney Santiago Kuanza: Em 2004 entraram cinco alunos negros na Escola de Arte Dramática, uma instituição que àquela altura tinha 56 anos, e que possuía um vestibular específico no qual eram aprovados somente 20 alunos por ano. A escola foi formada no seio de uma modernidade paulista, que historicamente, como todas as instituições desse porte, negligenciava qualquer debate sobre inclusão e pluralidade. Mas nesse momento contava com a presença de estudantes negros que furaram a barreira desse limite imposto. A EAD no início dos anos 2000 tinha um corpo discente negro bem reduzido e com um debate racial nulo. Diante deste quadro de mudança, esses alunos resolveram pensar suas heranças culturais e ancestralidade no espaço da escola.
E quais os foram os primeiros passos do grupo?
SSK: Primeiro promoveram um grupo de estudos chamado Núcleo Negros em Questão, que tinha como recorte realizar um estudo sobre os negros nas artes cênicas no país. Inicialmente se constituiu como um grupo aberto a toda escola (professores, alunos e funcionários), e na ocasião somente os alunos negros se interessaram pela proposta. Depois disso foi muito orgânica a nossa aproximação. Por iniciativa própria intensificamos a grade da escola com proposições relacionadas à agenda racial — simpósios, roda de conversa, mostra de cinema negro, entre muitas outras atividades, como a homenagem que realizamos a atriz Ruth de Souza, que esteve conosco na escola em 2006. Depois, motivados pelo contexto da luta por ações afirmativas no país e o modelo do teatro de grupo que protagonizava lutas sociais na cidade de São Paulo, formamos Os Crespos e, em 2006, iniciamos os estudos da nossa primeira montagem, Ensaio Sobre Carolina, que foi inspirado no livro Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus. Convidamos para dirigir a montagem o único professor negro na instituição, o então diretor e filósofo José Fernando Peixoto de Azevedo, que também ingressou na escola em 2004.
No primeiro volume da revista Legítima Defesa, você, Sidney, faz um panorama da história do teatro brasileiro e, nela, destaca os passos em direção ao “tão sonhado direito à imagem da comunidade afro-brasileira”, dados por grupos como a Cia. Negra de Revista e o Teatro Experimental do Negro. De que maneira a Cia. Os Crespos se inscreve nessa história?
SSK: No Teatro Negro brasileiro, no meu entendimento, prática e pesquisa se inserem em uma luta conjunta aos Movimentos Negros da Diáspora, sendo um tentáculo na luta por liberdade e cidadania. Este panorama, pode-se dizer, tem como marco a escrita de Lima Barreto, em um texto inacabado intitulado Os Negros, de 1905, conforme consta na pesquisa do professor Salloma Salomão. No entanto, temos notícias de encenações promovidas por abolicionistas como Luís Gama, que se utilizavam da linguagem teatral tanto para denunciar o sistema escravocrata, quanto para angariar fundos com as peças e comprar alforrias. Assim foi a história, seguida do Teatro Negro de Revista e do Teatro Experimental do Negro, entre muitas outras iniciativas. Pensando cartograficamente, nós da Cia. Os Crespos somos uma continuidade nesta linha temporal, que ainda hoje vê no teatro uma ferramenta muito potente para propor confrontos e contranarrativas, gestando assim fissuras na oficialidade brasileira. Olhando para esses quinze anos, posso afirmar que a nossa tarefa maior foi pensar a formação do artista negro, a disputa por verbas públicas e o investimento na formação de um público negro na cidade de São Paulo. Que mesmo sendo a cidade mais negra das Américas, em números totais, segundo o IBGE, nos permite observar ainda, nas plateias e na arte em geral, os abismos que assolam o nosso país. A nossa inscrição e projeto certamente se debruçou nessa educação e também na disputa por imaginários como a maior contribuição para essa cronologia. O nosso slogan tem sido: “Enquanto houver senhores e escravos, nós não estaremos dispensados da nossa missão”, como diz uma das personagens de Heiner Müller em texto que montamos quando do início da Cia., que tinha como membros fundadores Joyce Barbosa, Lucélia Sérgio, Maria Gal, Mawusi Tulani, Tayrone Porto e Sidney Santiago Kuanza.
Na mesma edição inaugural de Legítima Defesa, você, Lucélia, escreve que o trabalho de grupos como Os Crespos vão além de um identificação com a exclusão e “põe em cena com certa efetividade, por exemplo, a discussão teórica sobre a presença cada vez mais performática do ator em cena”. O que tem orientado o trabalho de ator na companhia nesses anos?
Lucélia Sérgio: A presença do épico no teatro tem sido cada vez mais forte e isso vem se construindo há algumas décadas. Fazemos parte desse teatro que rompe com a ideia de um drama puro e que é, portanto, pós-dramático. A ideia de personagem fragmentada, as renovações sobre a ideia de distanciamento, o diálogo com várias mídias, a interlocução com o público, são várias as características de um teatro que pulsa nessa vertente de busca por representar figuras sociais, distanciando-se da ideia de indivíduos. Fazemos parte também de um movimento de teatro de grupo, muito forte no Brasil. Um teatro de pesquisa e continuidade, que desenvolve seus trabalhos em processos colaborativos. Vem dessas pesquisas diversas inovações teatrais, não inovações puramente tecnológicas, mas investigações no discurso, na relação com a plateia, no espaço teatral, no trabalho da atriz e do ator. O teatro negro é irmão desse processo. Há vários grupos desenvolvendo suas pesquisas, que têm revolucionado a discussão sobre a identidade nacional e nossa sociabilidade, refletindo sobre esse corpo em cena, sobre os signos que cada corpo/relação empenha no imaginário do público. Construindo sociabilidades imaginadas e uma ideia identitária, o que no trabalho da atriz e do ator envolve a performatividade, no sentido de não se tratar só de emprestar suas características e emoções para a personagem, mas de ser objeto de suas próprias investigações. Visitar, expor, dialogar — não com um outro, mas consigo mesmo, cavando fundo no ato do representar aquilo que nem mesmo conhece, pois está ocultado de si por construções sociais muito inflexíveis.
E como isso se dá em cena com Os Crespos?
LS: Para além dos discursos em cena, temos atuantes rasgados, expostos, que buscam junto com a plateia unir os fragmentos de identidade que se apresentam no texto dramático. No esforço não só da busca poética do porvir, mas em luta por sua humanidade enquanto atua, portanto, performa. Trata-se de ser negro, sem representá-lo no entanto, posto que se é. De abordar sua própria experiência e abrir-se ao inesperado de uma situação arriscada, apesar de protegida pela relação palco/plateia, no limite do risco de uma sociedade formada pela memória revivida de um processo de escravidão. É um limite tênue performar em construção a um futuro que se mostra tão distante, sem cair na ideia de utopia, pois esse futuro é urgência e não se trata de discussão de novidade. É um processo intenso de trabalho em direção a um discurso/presença que reelabore uma cultura cercada por tradições diversas, reduzida a estereótipos e preconceitos forjados numa ilusão de naturalidade. Um trabalho que o faz, pois é preciso ultrapassar a barreira da ideia do negro como outro, para enfrentar uma humanidade que se constrói de fragmentos de história, que é uma projeção de si no tempo. E podemos fazer esse movimento, pois acreditamos que os tempos são e estão concomitantes com o presente. Uma história do passado se perfaz no hoje como o futuro se vive já. Não é cartesiano e pautado no que vemos agora. Se trata de inaugurar no imaginário coletivo uma outra ideia de presença. Não é fácil, nem está resolvido, mas caminha em direção à complexidade do que somos. O trabalho dos Crespos busca, nesse sentido, descobrir poéticas que investiguem essa humanidade e essa relação de tempos. Busca não ensimesmar-se na luta contra o racismo, mas multiplicar-se na busca por humanidade. Do reconhecimento do estado de coisas à identificação cultural ou não com as personagens, o processo é escancarar uma sociedade possível, em um sonho coletivizante que não é romântico, pois considera, sim, que temos que destruir uma parte dessa sociedade, jogar fora os entulhos de uma construção de identidade calcada em relações de subalternização e que para isso teremos que enfrentar nossas dores, doenças e privilégios como sociedade. Como trabalho de atriz e de ator, trata-se de performar sua própria carne/história, sem que seja possível distanciar-se dela, descobrindo o que pode se produzir nessa relação do discurso poético com o público no ato em que se faz, portanto, à medida que se forja essa situação de encontro e vislumbre. É um trabalho científico de arqueologia do futuro feito no presente, no qual a atriz e o ator se expõem performando a si mesmos, sem abandonar a representação de um coletivo. Talvez o mais interessante nesse trabalho é exatamente essa capacidade de ser performer de uma experiência coletiva.
Nesse momento os teatros estão fechados e ainda é incerto como o meio reagirá após a pandemia. Em que pé estão as discussões do grupo a respeito do futuro?
LS: É difícil nesse momento não viver um dia de cada vez. Tudo tão novo e tão assustador, que nos paralisa em certa medida, pois é preciso novamente o esforço de reconhecer do que precisaremos lá adiante. Eu vislumbro uma sociedade com espaços sociais ainda mais fechados e, portanto, um cenário no qual as movimentações sociais serão duramente cerceadas e dificultadas, pois podemos perder aquilo que chamamos de espaço público. E o teatro é a arte do encontro com o público, de viver juntos a mesma experiência coletiva. Uma arte que vive da necessidade publicizada de refletir coletivamente sobre o modo de existir como sociedade, por isso uma arte tão perigosa. Mas, também, uma arte muito interessante como ferramenta num processo de alienação política, por seu poder de persuasão. O teatro foi utilizado a serviço da alienação e construção de imaginários durante a história do nosso país. É um lugar de convencimento que pode, sim, ajudar na manutenção de uma construção forjada de realidade e naturalidade. O teatro que vai renascer com todos nós quando sairmos de nossas casas precisará de apoio público para existir. Das pequenas às grandes montagens, o teatro precisa ser fomentado por dinheiro público, pois não é uma arte de apelo popular no Brasil e reúne uma complexidade cara. Então, seguindo a lógica do capital e da política neoliberal, quais seriam as peças e pesquisas apoiadas pelo governo, num cenário de fechamento dos espaços públicos? Provavelmente teremos que continuar lutando contra isso, buscando a democratização da arte, do direito à arte. Essa luta é maior que nossas questões específicas como negros no teatro? Acredito que como sempre caminharemos em paralelo com essas questões.
De qual forma?
LS: Estamos em luta há mais de 120 anos na arte autodeclarada negra, não será uma novidade. Portanto, a projeção precisa ser de estreias, de pesquisa continuada, de fortalecimento dos vínculos fortemente criados com o público nesses 15 anos. Junto com a repressão virá por outro lado uma sede enorme por esse reencontro. Nós fizemos um novo pacto que desobedece o pacto nacional de democracia racial, nós fizemos um pacto com a continuidade: nenhum passo atrás, nenhum direito a menos. O que o teatro negro inaugurou nessa sociedade não tem volta, mudou nossa postura com relação a nós mesmos e o liberto não aceita novamente a escravidão. Pode ser custoso, soterrado na repressão, mas continuaremos articulando nossa liberdade por baixo dos escombros. Assistimos a muitas gerações em luta. Não estaremos de braços cruzados nessa batalha. O nosso trabalho será, portanto, o de implosão.