Pitanga: presente, liberto, atual

Paula Carvalho
Revista Bravo!
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4 min readApr 6, 2017
Antonio Pitanga em “Barravento”, de Glauber Rocha

Pitanga já estreia nos cinemas nesta quinta-feira (6) grandioso, embalado numa onda de bons filmes recentes que ajudam o espectador a entender mais profundamente os seus temas. O primeiro deles é Cinema Novo, filme dirigido por Eryk Rocha e vencedor do L’Oeil D’Or em Cannes no ano passado, que faz uma grande aproximação entre os diretores do movimento cinemanovista a partir da estética. O outro é Eu Não Sou Seu Negro, dirigido por Raoul Peck e indicado ao Oscar de Melhor Documentário neste ano. Ambos mostram duas das dimensões mais importantes presentes no documentário sobre o ator Antonio Pitanga dirigido por Beto Brant e Camila Pitanga: a artística e a político-racial.

Um simpatissíssimo Pitanga nos conduz pelo documentário, que estreia nos cinemas nesta quinta. É ele quem conta para o espectador sobre diversas cenas de sua vida, a infância em Salvador, a casa onde morava, a feira em que tomava café. Depois, vai encontrando pessoas que marcaram sua carreira — familiares, amores amigos — sempre com sorrisos e boas histórias. Maria Bethânia, Cacá Diegues, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Gonçalves, Zé Celso Martinez, Ruth de Souza, Ney La Torraca, Jards Macalé são algumas das pessoas que ele vai conversando, num roteiro que refaz também o percurso de sua vida: de Salvador para o Rio de Janeiro, do cinema novo para os teatros Experimental do Negro e Oficina, do galanteador ao responsável pela criação de dois filhos.

Pitanga e a filha, Camila

Pitanga, cujo nome oficial é Antônio Sampaio, conseguiu se inserir no meio dos atores com muita dificuldade. Ele conta nesta entrevista que, quando pequeno, via um grupo de atores ensaiando no Club Fantoches Da Euterpe, no Largo 2 de Julho, em Salvador, mas ali era proibido o acesso de negros. Ele teve, então, de se inscrever para puxar um carro alegórico que saía do clube durante o carnaval para conseguir entrar e, a partir daí, foi conhecendo alguns dos artistas. Ficou amigo de Walter da Silveira, guru do cinema novo, que o apresentou a Trigueirinho Neto e assim estreiou no cinema em Bahia de Todos os Santos, de 1960. Foi com esse filme que adotou o “Pitanga”, nome do seu personagem.

A partir de Barravento, se tornou o preferido de Glauber Rocha. Sua atuação, além de pensante, evidenciava muito o corpo, a ginga da capoeira, a dança. Pitanga é ator daqueles de sair às ruas para observar trejeitos entre o povo e não seguir estritamente o roteiro. A improvisação, claro, é muito estudada: tem noções de luz, maquiagem, câmera, iluminação. A partir dessa consciência total do filme (ou da peça) é que seu trabalho pode se tornar mais livre. Como ele diz: nesta época, aproveitando a experimentação que se fazia nos sets, os atores também ajudavam a construir os filmes — inventavam falas, combinavam cenas com os diretores de fotografia, saíam do script. Depois, se mudou para o Rio de Janeiro e passou a atuar também em peças — atividade que considera o momento mais “pleno” da atuação, onde é possível mostrar a verdadeira capacidade de entrar num papel.

A intimidade de Pitanga também é retratada com carinho: ele é o amante por quem as suas exs têm uma queda até hoje e é também o pai que criou sozinho os filhos Camila e Rocco Pitanga após a separação de Vera Manhães — esta, presença ausente do filme, é citada por todos como a atriz mais bonita do Rio de Janeiro entre o fim dos anos 1960 e os anos 1970.

Um fato de se notar é que Beto e Camila escolheram evidenciar pouco as atuações de Pitanga em novelas. É uma escolha totalmente compreensível: Pitanga fez alguns dos principais filmes do cinema brasileiro, em que tinha papéis importantes, enquanto em novelas não teve uma relevância especial. Mas isso também reforça uma das falas do filme (e, consequentemente, a importância do movimento liderado por Glauber): num período em que havia um apartheid legalizado nos Estados Unidos — como bem retrata Eu Não Sou Seu Negro — , o cinema novo foi um dos primeiros do mundo a colocar como protagonista um ator negro. Antonio Pitanga.

O ativismo — ou “capoeirismo mental”, como diz Camila — é um dos aspectos mais importantes da história de Pitanga. Sua simpatia não se confunde jamais com a cordialidade da nossa tradição nabuco-freyriana. Suas influências para pensar a questão racial estão muito mais ligadas ao movimento negro americano, com Malcom X e Martin Luther King, e apesar da sua ginga, não há passo em falso. A carreira de Pitanga é marcada pelo que hoje se chama de “descolonização”, ou, como diz, o seu modo de se portar é o de um “negro liberto”.

À exemplo da cultura americana, que embora tão racista como no Brasil tem muitos exemplos de produções tentando recontar a história pela voz de negros e negras, Pitanga chega aos cinemas nesse período crucial de ataques a conquistas sociais e se insere com autoridade no rol das obras que querem não só celebrar, mas estabelecer novos exemplos para o país — exemplos de pretos e pretas. E que venham mais por aí: já está previsto, por exemplo, um longa que será rodado pela diretora Juliana Vicente sobre a atriz Ruth de Souza, pioneira da arte negra do país.

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Paula Carvalho
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jornalista, doutoranda em sociologia na usp. quase tudo em torno de som 🎛 pra mandar mensagem: paula.cncarvalho@gmail.com