Poelatria

Uma conversa sobre um pouco de tudo (de poesia) com Chacal, que acaba de completar 70 anos

Bravo!
Revista Bravo!
5 min readJun 15, 2021

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Por Carlos Castelo

Ricardo de Carvalho Duarte, codinome Chacal, fez 70 anos em 2021. Durante esse tempo, entre muitas outras atividades, Chacal teve poemas incluídos na antologia 26 Poetas Hoje, de Heloisa Buarque de Hollanda; uniu-se a Charles Peixoto, Bernardo Vilhena e Ronaldo Bastos para criar o Nuvem Cigana, nos anos 1970; escreveu Aquela Coisa Toda para o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone; depois ligou-se à banda Blitz e compôs uma série de letras. Em 2016, a Editora 34 reuniu sua obra no livro Tudo e Mais um Pouco. Conversamos com o poeta sobre tudo isso e um pouco mais.

Poelatria: João Cabral afirmou, no ensaio Poesia e Composição, que existem poetas de inspiração e poetas que trabalhavam seus versos menos como “transmissores” de algo que lhes havia tomado. Nesta perspectiva de João Cabral, em qual das categorias você se inseriria?Chacal: Essa divisão é mais didática que real. Tudo se mistura. Quando alguém busca se expressar através de um idioma, ele já busca um repertório comum com um monte de pessoas. As imagens que só ele viu passam a ser mediadas pela língua. Aí surge outra falsa dicotomia de que nos fala Cabral: expressão x comunicação. Me formei em comunicação pela ECO/UFRJ, em 77. Gosto de pensar que o outro vai me entender. Muito embora isso seja acertar na loteria. O poema não quer ser entendido. Quer ser amado, dizia Décio Pignatari. Com razão.

Qual a influência de Oswald de Andrade em sua obra?
​Ampla, geral e irrestrita. ​Relacionamento sério com esse calunga. Um certo mal acabamento de quem nunca contou sílabas. Um cara que sempre se recusou a botar a poesia num pedestal e a tratá-la com luvas brancas. Um poema com uma ideia forte por trás: reinventar a poesia no Brasil. E como não sabia que era impossível, foi lá e mudou. Bebo nessa água.

Há quem diga que a produção poética melhora com o passar do tempo. Aos 70 anos, você se considera um poeta mais pleno do que aos 30​?
Acho que um dia faço coisa que preste. Se até hoje escrevo, é porque não tem mais jeito. Impossível agora me tornar um numismata.​ ​Sei lá, difícil dizer se melhoro ou pioro. Melhorar, piorar, depende de quem lê e quando. Os poemas mais lembrados talvez sejam os dos anos 70, quando o indicador da mão esquerda era visto espancando as teclas diuturnamente. Havia um ambiente próprio pra isso.​ A poesia era o futuro do presente. Arrefeceu. Hoje me empolgo de novo. Mais nada a firmar, tudo se desloca. Vou tirando uma a uma as cartas da manga. E aí o poema pode ser apenas prestidigitação. Hoje me divirto muito fazendo mágicas e mímicas, sabendo que o bom poema sempre vai desestabilizar e fazer desabar todas as ditaduras.

A poesia contemporânea, segundo Antônio Cândido, é “dizer densamente muita coisa através de poucas, quase nenhumas palavras, organizadas numa sintaxe que parece fechar a comunicação — mas, na verdade, multiplica as suas possibilidades”. A poesia está caminhando para o epigramático​?
Antônio Cândido leu bem o amor/humor do Oswald. Miliumas artimanhas pulsam ali. O poema é um abalo sísmico. Você pode ignorá-lo e continuar soletrando antigas versificações. Ou vibrar e interagir com novas configurações causadas pelos movimentos tectônicos. Numa palestra na PUC, em São Paulo, Augusto Massi pergunta a Paulo Henriques Britto se ele não acha que a poesia brasileira segue em ciclos que vão dos poemas verborrágicos aos nanohaikais. Paulo Britto diz que é a “teoria do biquíni”. Quando se aproxima demais da nudez, o fabricante de tecidos cria uma moda retrô e elas compram. Ando atrás da nudez. As palavras estão saturadas. A vida em terapia intensiva. Tenho buscado o silêncio no poema e fora. A mímica. A gag. O koan eletrônico. Nesses tempos de mercância, onde tudo é mercadoria, somos obrigados a fazer barulho para ouvirem nosso silêncio. Psiu. ​

​O poeta chileno Nicanor Parra criou a antipoesia. Possuía ela estilo irônico, questionador da poética de nomes estabelecidos, como Neruda e Huidobro. Ainda propunha uma linguagem mais direta e humorada do que hermética. Existiria algum ponto comum entre a antipoesia de Parra e a poesia-mimeógrafo?
Antipoesiamarginal. Perceber a palavra como força política, a força do comum. Não empoá-la, não besuntá-la de pós e cremes. O poema comezinho. A língua é muito rica, abrange muitas palavras. Não são palavras cultas ou chulas por si só, que vão lhe trazer vigor. Mas o ritmo. O ritmo e a sinuosidade do verso. O ritmo e a ideia que ele imprime. Li pouco Parra. O que li, muito admirei. Gosto da sua postura combativa. Micropolítica. Sagra o poema, sangrando a Poesia.

Pound dizia a jovens poetas, mais próximos dele, que era necessário criar algum movimento ou revista poética de modo a receberem atenção dos críticos e aumentarem a sua influência artística. Hoje temos uma profusão de poetas e quase nenhum movimento em curso. Seria uma tendência do nosso século à individualização ou um esvaziamento de propostas estéticas?
Há necessidade de comunidades interpretativas para validar um poeta, uma poética. Pound fazia uma ação de guerrilha. Hoje, as redes sociais, o YouTube, criam mitos com prazo de validade. Acho que vivemos um momento único de excesso de informação, muitas delas falsas. A pós-verdade é um novo jeito de se comunicar. O significante se descola do significado. A narrativa, do fato. A palavra vira um cogumelo, um fungo que brota, sem raiz, sem história, som sem sentido. A comunicação se perdeu no meio de tantas narrativas descoladas do real. Do comum tiraram o “com”. Ficou o “um”. Tira-se o “um”, fica o caminho, que é onde nos encontramos.

Qual poeta, ou poetas, mais acrescentam ao legado do modernismo brasileiro nos dias de hoje?
D​os (as) que conheço e me lembro agora, Bruno Brum, Bruna Beber, Marcelo Montenegro, Angélica Freitas, Chico Alvim, Ana Martins Marques, Zuca Sardan, Maria Isabel Iório, Daniel Minchoni, Regina Azevedo, Fabrício Marques, Alice Sant’anna, Marília Garcia, Ricardo Aleixo, Laura Erber, Heitor Ferraz, Valeska Torres, Catarina Lins e Carlito Azevedo são os modernistas futuristas do presente de que mais gosto.

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+ POESIA

§ A Rizoma, editora de Florianópolis, comandada por Vanessa Gonçalves, lança O Homem Perdido, de André Francisco. O desafio da prosa poética do autor é encarar a cidade como tema e assunto e decifrar suas entranhas, na qual os seres submergem à lógica da vida organizada em função da produção de bens materiais, do trabalho, do mercado e do consumo.

§ De Bashô a 2021: uma jornada pelas sendas do Haicai abordará teoria, leitura, análise, exercícios de produção poética e as tendências do haicai no Brasil. Ministrada por Heberton Baptistela, a oficina contará com exercícios práticos e exposição do que será produzido em um artigo especial no portal Fazia Poesia.

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