Poelatria

Elenice Zerneri fala da poesia da micronarrativa e de "Nanuscritos Fictícios-filosóficos", livro que acaba de lançar pela Uratau

Bravo!
Revista Bravo!
4 min readJul 13, 2021

--

Por Carlos Castelo

Não há poesia apenas nos poemas. Ela pode estar em muitos outros lugares. Na literatura, entre outras prosas, está nas mininarrativas. Elas têm, em comum com a poesia, a propriedade de reservar um silêncio a ser preenchido pela imaginação e o repertório de quem as lê.

Os contos, de tantos outros artífices da brevidade, comprovam essa hipótese: Dalton Trevisan, Laís Chaffe, José Eduardo Degrazia, Leonardo Brasiliense, Evandro Affonso Ferreira, Samir Mesquita, Leila Guenther (criadora dos instigantes O Vôo Noturno das Galinhas e Partes Homólogas).

Nesta quinzena, conversamos com Elenice Zerneri, que lançou Nanuscritos Fictício-filosóficos, pela Urutau. Elenice é o caso da jovem artista que já traz nos genes o mapa do microconto tatuado de poesia. Em tempo: tomara que, um dia, as academias percebam que, apesar do nome, o pequeno conto é imenso.

Onde entra a poesia em seus microcontos?
Há muito de lírico em tudo o que escrevo. O tal do eu lírico aparece mais do que é comum nas micronarrativas. Pelo formato das publicações que faço no Instagram, intuo que é importante a organização das palavras na tela, também própria da poesia. Muitas vezes viram versos de um micropoema. Mas há sempre uma questão concreta bastante forte. Mesmo que eu fale de saudade, estou falando de um quarto vazio, juntando pó; uma pasta de dente que agora dura o dobro do tempo. Guardo e transbordo um desejo de ser como Manoel de Barros, que dá mais respeito às palavras que vivem de barriga no chão, tipo água pedra sapo.

Por que você escolheu o gênero microconto para se expressar?
Foi uma escolha um tanto involuntária. O que me intriga é a concisão. Sou capaz de passar horas dentro de uma frase de Guimarães Rosa, pensando como ele pode traduzir assim um pedido de casamento: “Você, Maria, quererá, a gente, nós dois, nunca precisar de se separar? Você, comigo, vem e vai?”. Acho que essas formas narrativas, poéticas, artísticas, que são arejadas na sua composição, que deixam uma peça faltando, provocam um estado ativo em quem recebe. Isso me interessa como escritora e como leitora. O microconto é uma forma que, por lidar com o mínimo, permite que uma parte da história se complete com aquilo que o leitor traz consigo. À parte isso, a minha escrita nasce sem preocupação com o gênero. Depois, claro, me utilizo dos autores que trabalharam o microconto de forma mais regrada, pra entender as possibilidades, dentro do que eu gosto de produzir. Mas tenho consciência de mesclar microconto com poesia, de burlar uma porção de regras e, por mim (e pelo que entendo do ofício criativo), tudo bem.

Quais são os autores que mais te influenciam?
Nos meus diários de adolescente, há muitas citações de Clarice Lispector, Paulo Leminski e trechos de bossa nova. Depois vieram o Saramago, o Kafka e Gabriel Garcia Marquez, que é, talvez, o meu escritor preferido ou, no mínimo, o que eu mais li. Machado de Assis, Guimarães Rosa e Manoel de Barros devem estar na lista de todo brasileiro que lê (se não, é um quase-crime). Minha formação em dramaturgia me aproximou bastante de Beckett e Plínio Marcos. Pensando em gente ainda viva, eu não poderia deixar de citar Noemi Jaffe, que escreve muita coisa que eu gostaria de ter escrito. Há outros e outras, mas vou ser fiel ao que me chegou primeiro à mente. O que pego emprestado de todos esses é a vontade de fazer o grandioso com o pouco, com o simples.

Os gêneros breves são mais adequados a tempos líquidos como os dos século XXI?
Sim. Às vezes, até mesmo eles parecem compridos demais. A quantidade de pessoas, no Brasil, que pode se dar ao luxo de se demorar na frase “A velha insônia tossiu três da manhã” (Dalton Trevisan), como a frase merece, é extremamente reduzida. Muita coisa se perde por falta de gente dentro, que se demore nelas. Mas claro, a compreensão de um texto com sete palavras correndo no seu feed de notícias é mais acessível do que aquela joia rara que é Dom Casmurro. Há também algo de maravilhoso na possibilidade de o microconto alargar o ofício da escrita. Não é preciso ficar na plateia. É um gênero que convida todo mundo a experimentar subir no palco, colocar as palavras para duelar. Dialogar com a forma artística que cabe como luva no seu tempo me parece inteligente, mas quero acreditar que ainda há espaço (a brecha da flor que fura o asfalto) para todas as formas caducas.

Fale um pouco da sua experiência com a Hecatombe, na coleção Quem dera.
A publicação dos Nanuscritos dentro da coleção Quem Dera é motivo de muito orgulho. Todo o processo de publicação foi muito tranquilo (a ponto de já estarmos pensando em um segundo volume). Estou agora, aos poucos, conhecendo as outras autoras que participaram e tendo uma série de surpresas positivas. Torço para que as listas de autores-referência do futuro tenham mais mulheres do que a minha. Está aí a importância da Urutau, da Hecatombe, da Quem Dera.

--

--