Pra que discutir com madame?

Seria a bossa nova um bom exemplo de apropriação cultural?

Acauam Oliveira
Revista Bravo!
9 min readDec 3, 2020

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Foto: Tuca Vieira

PAUSA DE MIL COMPASSOS | coluna semanal

por Acauam Oliveira

Uma polêmica recorrente no interior da música popular brasileira diz respeito à relação da bossa nova com o samba. Desde seus primeiros acordes dissonantes o debate a respeito da apropriação cultural, promovida ou não pelo movimento (ainda que não colocado precisamente em termos raciais), é uma presença constante. E como acabei de certo modo voltando a esse ponto a partir da postura “problemática” de um dos figurões do movimento, decidi avançar um pouco mais no debate a partir de um elemento fundamental: o bruxo de Juazeiro, baiano encantado, senhor da batida e das encruzilhadas sonoras.

1.

O historiador José Ramos Tinhorão é um dos que desde o surgimento da bossa nova já declarava se tratar de uma apropriação descarada do samba popular autêntico por setores da classe média carioca, dispostos a criar um produto tipo exportação, devidamente “higienizado”, i.e., branco. Perspectiva essa que não se alterou substancialmente desde então, pois ainda em 2015 ele fazia questão de reforçar, com a ironia de sempre: “Tenho uma pena do Tom Jobim. Como pessoa, era excelente. Mas tinha um equívoco fundamental. O Tom achava que compunha música brasileira.” Para Tinhorão, a bossa nova é muito mais um falseamento do samba e um rebaixamento do jazz. Mais recentemente, o babalorixá Rodney William também apresentou a bossa nova como um exemplo clássico de apropriação da cultura negra, em um livro que trata precisamente do tema. “Alguns avaliam a bossa nova como uma sofisticação do samba, mas analisando letras, depoimentos e o perfil dos expoentes, percebe-se que foi muito mais uma tentativa de depuração, o que a enquadra perfeitamente no conceito de apropriação cultural”.

2.

A propósito, não deixa de ser interessante o apelo contemporâneo de certas posições críticas de Tinhorão, pautadas por um modelo de marxismo pouco afeito à dialética, e que já sofreu inúmeras críticas dentro de sua própria escola de pensamento. Se por um lado certa reabilitação contemporânea do historiador — que confere o merecido reconhecimento a um trabalho fundamental em termos de preservação da memória da música brasileira — indica que os interesses de autopreservação da MPB e da crítica acadêmica contribuíram para obscurecer aspectos relevantes de sua perspectiva, por outro cabe reconhecer o retorno, sob nova chave, de alguns vícios interpretativos, sobretudo no que se refere a certo essencialismo de algumas de suas posições.

3.

A meu ver, um bom caminho para tornar o debate mais nuançado é afirmar de saída (como hipótese argumentativa, e não verdade absoluta) que a bossa nova não é samba, mas sim um método de composição de tipo novo, que permite incorporar o samba, mas não apenas ele, como parte constituinte de sua linguagem. Nesse sentido, as comparações frequentes com a postura de Elvis Presley em relação ao rock negro estariam equivocadas, pois Elvis efetivamente faz o mesmo rock — ou melhor, um rock bem menos inovador — que o de pioneiros como Chuck Berry, Bo Diddley e Sister Rosetta Tharpe, enquanto a bossa nova é matriz de criação de uma linguagem outra. Brancos que fazem samba são Adoniran Barbosa, Beth Carvalho e Zeca Pagodinho, dentre tantos outros, e dos quais acredito que não se possa falar em apropriação. A bossa nova, ao contrário, é o momento de fundação de uma nova linguagem chamada a partir de então de MPB.

4.

A bossa nova, como o romance moderno, é o gênero que surge para acabar com todos os outros, estabelecendo a si próprio como seu próprio fundamento. O paradoxo constitutivo das formas modernas de escritura inscreve-se também na MPB, fundamento autorreflexivo que se aproxima/distancia de pilares tradicionais em direção à autonomia estética, à procura de um sentido pra chamar de seu.

5.

Existe um argumento que simplifica o processo ao extremo, mas que interessa precisamente por seu desdobramento lógico: se a bossa nova é no limite a mistura do samba, que é negro, com o jazz, negro também, em termos de linguagem não existe uma descaracterização branca do samba, mas uma reorientação diaspórica que será consumada expressivamente pelo violão de Baden Powell, Gilberto Gil e, sobretudo, Jorge Ben.

6.

É claro que essa percepção não muda o fato de que essa reorientação é feita (e exportada) por uma intelectualidade branca de classe média da zona sul carioca, que é precisamente o ponto principal das críticas. Voltaremos a isso. Por ora, cabe ressaltar o caráter de novidade dessa linguagem, que cria um método de composição de tipo novo que não deriva diretamente do sistema de organização estrutural do samba, tornando possível todo um desenvolvimento original de noções diversas de obra, autoria e autonomia estética no campo da música popular.

7.

Problemas estéticos similares aos da bossa nova são encontrados em outros campos da cultura, como por exemplo na literatura. Guimarães Rosa e Mário de Andrade são autores que se utilizam do material popular na criação de suas obras, mas estas não podem ser interpretadas como um desdobramento imediato desse campo. Como bem nos demonstra Alexandre Nodari, em Macunaíma ocorre uma transfiguração profunda que reorienta os paradigmas do modelo ocidental de construção da linguagem, mas não propriamente apropriação (algo muito comum de acontecer no Romantismo com a matéria indígena, por exemplo). O que, por outro lado, não livra a literatura de seu fracasso em reordenar as coordenadas do presente. Mas esse não é um fracasso do Macunaíma, mas da literatura como sistema, e do país enquanto nação. Acredito que algo similar possa ser pensado em relação à bossa nova.

8.

Além disso, João Gilberto em certa medida “resolve” o impasse modernista em sua tentativa até certo ponto frustrada de criar uma música clássica à brasileira. Digamos que os esforços da intelectualidade mais empenhada até então estavam orientados para o uso da linguagem clássica europeia como uma base a partir da qual seriam acrescentados elementos genuinamente nacionais, até o ponto desta se tornar orgânica, difundindo-se por todo corpo social. Não deu certo: faltava fôlego popular à equação. João Gilberto simplesmente inverte o modelo, tomando o samba, e não a música de concerto, como base estrutural. Obviamente, foi encarado com desconfiança por todos os lados: “Então tá certo, espertão. Me diz como é que a gente vai transformar o que é da ordem do rito em um sistema modelar de linguagem abstrata? Como se coloca a festa em partitura?”. E disse João: “Só preciso de um ano.” E assim o fez. Alguns incrédulos defendem até hoje ter sido obra de bruxaria, à moda de Robert Johnson. Eu mesmo sou dos que desconfiam do dedo de Exu no processo. João nunca negou.

9.

O conceito de apropriação pensado em relação à linguagem (i.e., a bossa nova como um “samba branco”) também precisa dar conta do pós-bossa nova, ou seja, aquilo que só emerge por conta de seu gesto inaugural. Sem ela, não existiriam (tal como as conhecemos) as sonoridades negras de Gilberto Gil, Jorge Ben, Milton Nascimento, Djavan, dentre tantos outros. Todos esses artistas reconhecem o quanto a bossa alargou os horizontes da canção e tornou possível a elaboração de suas estéticas particulares. Não que esses artistas sejam uma reprodução ou derivação imediata daquilo que a bossa nova inaugurou. Jorge Ben, por exemplo, é quase uma antítese de João, devolvendo a batucada a seu lugar de direito. Mas, definitivamente, o lugar para o qual ela retorna já não é o mesmo.

10.

O impulso original presente no gesto do Bruxo de Juazeiro é, portanto, desmistificador, antiprovinciano e antirracista em sua base, na medida em que torna o conhecimento negro inscrito na linguagem do samba a medida de todas as utopias futuras. O que não significa que as críticas feitas ao movimento não tenham sua razão de ser: afinal, a bossa é também o espaço da atualização perversa de mitos como os de diplomatas brancos mais pretos do Brasil. Passemos a eles.

11.

A bossa inaugura um tipo específico de clivagem no interior da música popular, uma “cisão irreparável e fecunda” (Wisnik) entre campos distintos mais ou menos intelectualizados. Reatualiza, nesse sentido, uma clivagem de classe — que será não por acaso questionada pelos códigos da própria MPB conforme essa for progressivamente se engajando. O resultado é que a linguagem vendida para o exterior como a forma não provinciana, intelectualizada e moderna da canção brasileira é representada por brancos de classe média, com muito de Tom e Vinicius e pouco de Johnny Alf e Alaíde Costa — o que não deixa de ser bem provinciano a seu modo. Ser o branco mais preto do Brasil parece não ter feito tanta diferença assim no momento de distribuição diplomática de espaços de poder.

12.

Com base no que foi dito até aqui, creio ser possível afirmar que a classe média carioca (graças, contudo, a um baiano que estava longe de ser um playboy) conseguiu desenvolver um método de aproximação dos materiais populares e reorientá-los a partir de princípios novos de organização que não são uma decorrência direta de seu contexto de origem. Ou seja, como na melhor literatura, a bossa nova criou uma maneira original de reconfigurar o material de origem popular em um sistema estético autônomo. Dito isso, é verdade também que tal modelo não subverte o regime de desigualdades de base que organiza o sistema, repondo mecanismos de exclusão e inclusão e também inaugurando novos padrões de segregação. Em suma, pretos pobres fazem samba como reis e rainhas, mas não são reconhecidos como linha de frente da bossa nova, servindo mais como fonte de inspiração, ou objeto de pesquisa. Estamos ainda no horizonte do racismo estrutural. Daí a melancolia profunda do canto de João Gilberto, ciente de que sua visão dos encantos do Brasil possui uma limitação de origem a lhe tolher o voo.

13.

A devoção religiosa que João Gilberto tem pelo samba (um dos “não sambistas” que mais amou e compreendeu toda sua potência e radicalidade) não permite afirmar que a bossa não compreendeu o significado profundo do samba para além do puro formalismo, como um modismo entre outros — ao contrário, João fez questão de repetir ao longo de toda sua obra que ali estava o que o Brasil possuía de melhor e mais profundo. É por amor, e não por artificialismo técnico, que ele repetia eternamente as mesmas canções.

14.

Por outro lado, é certo que o racismo estrutural atravessa e organiza todo o sistema, permitindo que em diversos momentos a negritude seja sustentada enquanto fetiche. É nesse sentido que pode ser interpretada a recepção posterior da bossa nova, quando esta se torna uma espécie de signo meramente ornamental de distinção social, que faz da música uma espécie de objeto cultural decorativo em ambientes como sala de espera de hospitais, restaurantes chiques, elevadores de hotéis e saguões de aeroporto. Esse caráter artificioso deriva em parte do próprio posicionamento ideológico daqueles sujeitos que tomam a bossa nova como exemplo de música brasileira “civilizada”, tomando como signo dessa distinção a eliminação do batuque — e do corpo — negro. Isso, porém, é uma subversão perversa da devoção religiosa de João Gilberto ao samba, para quem a força da cultura brasileira ou era negra, ou não existia. É toda a diferença entre apagar o batuque e sublimá-lo. De todo modo, o interessante é que essa possibilidade conservadora está inscrita no mesmo gesto a princípio revolucionário, assumindo uma dialética particular que faz parte das particularidades de nosso racismo.

15.

A diferença entre pensar a bossa nova não como um tipo particular de apropriação, mas como um sistema igualmente atravessado pelo racismo estrutural, é que nesse caso o problema é colocado em uma perspectiva mais ampla em que o gênero talvez não seja nosso principal vilão, caso pensemos, por exemplo, que da ampliação do gesto inaugural da bossa emergem figuras como Jorge Ben, Gilberto Gil, Luiz Melodia e Itamar Assumpção. Enquanto isso, estilos como o sertanejo contemporâneo, além de apagar completamente suas origens étnicas, eliminam ostensivamente o negro de seu campo de representação. Valendo: cite uma dupla negra de sertanejo universitário.

16.

Finalizo com essa percepção bastante feliz de Liv Sovik, para quem o principal interesse desse debate é menos a delimitação precisa das origens da bossa, que condenaria ou absolveria seus agentes (a raiz é o samba negro ou o gosto cool da classe média carioca?), do que o próprio deslocamento de sentido da questão, cuja matriz é histórica: “Assim, o paradoxo de hoje não é que a bossa nova seja vista como uma fantasia romântica de brancos, enquanto de fato é samba: todos conhecem essa discussão, que surge da luta em torno dos sentidos da mestiçagem. É que, embora a elite econômica brasileira tenha muito mais recursos e ligações com os centros de poder, a cultura cosmopolita mais dinâmica e menos subserviente da atualidade globalizada pertence menos a essa elite, na sua versão ideal bossa-novista de homens e mulheres lindas e quase-brancas, do que à diáspora africana, igualmente idealizada na forma do rapper consciente, que encena a consciência social vinda de baixo e que faz sucesso comercial.” O setor mais rico e dinâmico da cultura mudou radicalmente de vetor. E, com ele, a própria apreensão dos significados históricos das nossas realizações culturais.

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Acauam Oliveira
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Enquanto existir Deus no céu, urubu não come folha.