Prazer absurdo

Guilherme Werneck
Revista Bravo!
Published in
8 min readMay 3, 2017
Rodrigo Campos, Gui Amabis e Juçara Marçal em foto de Luan Cardoso

CRÍTICA

O álbum Sambas do Absurdo nasce influenciado pela filosofia de Albert Camus no livro O Mito de Sísifo. Ao escolher um ponto de partida com esse peso, o curto e denso disco conceitual de Rodrigo Campos, Juçara Marçal, Gui Amabis e Nuno Ramos tem de ser ouvido no que ele tem de audível mas também nas frequências menos ruidosas desse diálogo com o absurdo proposto por Camus.

Se fosse para colocar em um tuíte, o Mito de Sísifo considera que “só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio.” Antes de cogitar se lançar ao desafio da baleia azul é preciso ir além do tuíte. No ensaio, o escritor e pensador argelino aponta que os sistemas filosóficos não dão conta, nem com o racionalismo tampouco com a metafísica e a fenomenologia, de enfrentar a questão do sentido da vida, ou, pelo menos, se vale a pena vivê-la.

Ao contemplar o suicídio a partir de sua filosofia existencial, Camus rechaça o ato e argumenta que “viver é fazer viver o absurdo. Fazê-lo viver é, antes de tudo, encará-lo. Ao contrário de Eurídice, o absurdo só morre quando alguém se desvia dele. Assim, uma das únicas posições filosóficas coerentes é a revolta. (…) Essa revolta é apenas a certeza de um destino esmagador, sem a resignação que deveria acompanhá-la”. E conclui: “Pode-se acreditar que o suicídio se segue à revolta. Mas é engano. Porque ele não representa o resultado lógico.”

O disco “Sambas do Absurdo” trabalha com a filosofia do Mito de Sísifo em diferentes camadas de significado. Assim como do tuíte para o ensaio de Camus há todo um mundo existencial e sensível a ser explorado, o disco também flerta, numa camada superficial e enganosa, com a ideia de suicídio. A ordem regressiva das canções, que vão do Absurdo 8 para o Absurdo 1, pode ser lida como uma dessas pistas falsas. Os contatos mais profundos do disco com a filosofia do absurdo, porém, se dão em três planos diferentes. No lírico, no da composição e no dos arranjos.

Para analisar esses três planos é bom antes entender um pouco mais do que Camus considera o absurdo. Das várias aproximações que faz do absurdo no texto, uma das mais sintéticas é a que diz que “o absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e silêncio despropositado do mundo. (…) O irracional, a nostalgia humana, o absurdo que surge do diálogo entre eles: eis os três personagens do drama que deve, necessariamente, acabar com toda a lógica de que a existência é capaz.”

Mas essa existência sem lógica não leva à inação, ela tem a sua beleza e sedução. Lembrando que todo absurdo só pode ser considerado assim se for comparado a algo, esse é também um universo de sedução intelectual. “Para um homem sem antolhos, não existe espetáculo mais belo que o da inteligência lutando contra uma realidade que o ultrapassa”, como coloca Camus.

Essa é uma das chaves para ouvir o álbum. O que torna esses sambas absurdos? Como eles lidam com essa realidade que nos ultrapassa?

Num primeiro momento, de forma ruidosa, exigente. É preciso prestar atenção para começar a compreender as oito canções. Um processo que começa pelo que dizem as palavras, sem perder de perspectiva que elas são uma informação que disputa espaço com a informação musical.

As letras de Nuno Ramos falam sempre de uma perspectiva particular. Mesmo quando começa uma narrativa em terceira pessoa, a letra sempre volta a um sujeito que olha pro mundo e constrói sua visão a partir de fragmentos. Sem antolhos, no transe da lucidez, cria um diálogo particular e navega tangenciando o essencial, a revolta, a resignação, a violência, o sexo e a paixão. Sentimentos sempre no presente, que ecoam o Don Juan visto por Camus, na sua urgência quase funcional, essencial.

Em todo o disco a sensação é de que as narrativas estão abertas, as conclusões não são definitivas, são antes enganadoras, pausas. Há uma melancolia, talvez um dos pontos de contato menos absurdo com o samba, mas há também um sentimento de ter consciência dentro do turbilhão do existir.

Camus usa a figura mitológica do homem que é condenado pelos deuses a rolar um rochedo montanha acima, sem parar, para ao chegar ao cume ver a pedra rolar montanha abaixo. Para os deuses, não haveria punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança. Para Camus, Sísifo é o herói abusrdo.

“É durante esse retorno, essa pausa de Sísifo me interessa. Um rosto que pena, assim tão perto das pedras, é já ele próprio pedra. Vejo esse homem redescer, com o passo pesado, mas igual, para o tormento cujo fim não conhecerá. Essa hora que é como uma respiração e que ressurge tão certamente quanto sua infelicidade, essa hora é aquela da consciência. A cada um desses momentos, em que ele deixa os cimos e se afunda pouco a pouco no covil dos deuses, ele é superior ao seu destino. É mais forte que seu rochedo.”

As letras do Nuno Ramos no fundo falam desses heróis do absurdo cotidiano que, ao nomear os absurdos ao redor, atingem uma felicidade quase que a contragosto. Se considerar como são diretas as letras de samba, como se repetem para que gravem na memória, as letras aqui se mostram totalmente absurdas. É uma narrativa sem volta. As repetições ficam nas figuras de linguagem, no entrelaçar das palavras, nas estruturas da canção. Uma vez que a letra é entregue, passamos ao próximo absurdo.

Note como é usada a repetição, seja das palavras como da estrutura logo na faixa de abertura, Absurdo 8:

(…) Pra não ter, pra não ter, pra não ter
De acabar
Pra não ter, pra não ter, pra não ter
De parar

(…) Pra não ter, pra não ter, pra não ter
De cantar
Pra não ter, pra não ter, pra não ter
De sambar

(…) Pra não ter, pra não ter, pra não ter
De parar
De enfiar, de enfiar, de enfiar

(…) Pra não ter, pra não ter, pra não ter
De acabar
De enfiar, de enfiar, de enfiar, de enfiar

(…) Pra não ter, pra não ter, pra não ter
De enfiar, de enfiar, de enfiar, de enfiar

(…) Pra não ter, pra não ter, pra não ter
De acabar
De enfiar, de enfiar, de enfiar, de enfiar

Outro exemplo vem de Absurdo 5, em que o uso da repetição no fim de cada estrofe culmina com o embaralhamento delas na penúltima estrofe e na não conclusão na última estrofe:

(…) Ladeira, ladeira, ladeira, mulher

(…) Na beira, na beira, na beira, mulher

(…)Inteira, inteira, inteira, mulher

Na beira, na beira, na beira, mulher
Ei, então tá bom
Vou dar um jeito de morrer, de renascer feito capim
Cantiga, um som
Notícia ruim, baião, meu nome de neon
Inteira, inteira, inteira, mulher

Ladeira, na beira, inteira, mulher

O jogo de palavras e a escrita super impressionista contribuem para a sensação de absurdo, e a própria prosódia particular vai criando esses caminhos difusos, que encontram âncoras ora nas rimas e nas partes com a métrica mais constante ora nas repetições, quando a métrica fica menos domesticada. E aí ter Juçara Marçal cantando faz toda a diferença.

Em um jogo arriscado como esse, em que muito do significado vem pela correlação de figuras dispersas, de infusão de significado pela aproximação fonética ou pela citação, há momentos mais felizes e outros em que cabe discussão. A brincadeira com Águas de Março, de Tom Jobim, em Absurdo 2 me parece muito mais interessante, por exemplo, do que o jogo com o refrão clássico do samba laia laiá com aiatolá, em Absurdo 1.

Bunda peito flora fauna
Já felicidade
É pau, pedrada
No meu caminho
Um resto de toco
Um corpo sozinho

Não parece ao acaso a citação a Tom Jobim nesse disco. Existe um paralelo entre suas composições e as de Rodrigo Campos. As duas trabalham melodias incríveis usando pouca pirotecnia harmônica. E assim como os sambas de Jobim não são exatamente sambas, esses do absurdo podem ser considerados cubistas.

Rodrigo Campos é mestre em criar tensão. Não é à toa que as letras de Nuno Ramos se encaixam tão bem em suas composições. Assim como acontece com as palavras, musicalmente muitas das composições não se resolvem. Ou são feitas de duas partes que são só tensão sobre tensão, ou, quando apresentam refrões, vem em uma embalagem menor de cortar os pulsos. Esse caráter de não-resolução das músicas, de nos deixar esperando uma parte que não vem, está totalmente em linha com a exploração do absurdo de Camus.

Já que estamos no plano da composição, um último elemento é essencial. O que fazem dos sambas do absurdo sambas? Obviamente não é a estrutura. São os traços de DNA que se encontram dispersos na música. O uso das claves, das figuras musicais do samba. Uma troca entre duas notas que lembra um agogô, por exemplo. Uma levada, por mais breve que seja.

Essas composições não flertariam tanto com a filosofia existencial sem os arranjos. É aí que o trabalho de Gui Amabis eleva as canções para um plano pouco visto na música brasileira. O que ele faz com samples, não só do ponto de vista rítmico, mas sobretudo no diálogo orquestral com as cordas de Rodrigo, é impressionante. O uso das flautas, dos metais, os samples dobrados, os glissandos que dão um caráter cinematográfico para as canções, esses elementos juntos trazem profundidade, conduzem o ouvinte meio maravilhado pelas palavras e pelas cordas.

Os samples complementam o cavaquinho de Rodrigo Campos de uma forma muito instigante. Lembrando que nos arranjos do álbum o cavaquinho, esse senhor do samba, indica um caminho rítmico para logo se dissipar numa melodia dedilhada. É um cavaquinho meio jazz modal. Os samples de Gui Amabis servem de comentário e contraponto. Muitas vezes introduzem uma dissonância que ajuda a contar a história. Num samba com cara de samba mesmo como Absurdo 5, por exemplo, Rodrigo faz a levada em modo menor e lá no fundo do mix o sample de Gui traz uma segunda. Isso cria uma dissonâcia sutil, que não chega a confrontar a canção mas aprofunda seu campo.

Por alcançar sucesso de tantas formas diferentes, seja no diálogo que se propõe com o ensaio de Camus, seja pelo que diz do presente, não sem angústia, ou pela exuberância dos arranjos — tão meticulosos e pertinentes como os de Claus Ogerman para Urubu, do Tom Jobim, ou os de Rogério Duprat para Construção, de Chico Buarque — , essa coleção de Sambas do Absurdo me parece fundamental para se ouvir neste momento político.

Mas não espere muito prazer nesses vinte e poucos minutos de contato com o Sambas do Absurdo. Ouvir esse disco é rolar a pedra ladeira acima. O que se pode esperar é que, em algum momento, você encontre a felicidade de ser mais forte que o rochedo.

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