Quando dançam as penas do Boi

Documentário inédito destaca caboclos de pena do Bumba Meu Boi maranhense

Rafael Ventuna
Revista Bravo!
6 min readNov 21, 2019

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Frame do documentário Coreografias Maranhenses: Caboclo de Pena © Centro Cultural Vale Maranhão

Se eu tivesse que escolher duas palavras para definir o lançamento do projeto Coreografias Maranhenses, eu não hesitaria em dizer: timing perfeito.

Afinal, o ano de 2019 tem sido um ano peculiarmente desafiador para os nordestinos. Com impacto em todo o Nordeste, a declaração preconceituosa do Presidente da República atingiu em cheio o Maranhão. Assim como o misterioso óleo despejado no oceano, que manchou praias da região inteira e ainda sujou os paradisíacos Lençóis Maranhenses.

Felizmente, nem tudo é ataque e ameaça. Em dezembro, membros da Unesco vão se reunir na Colômbia para avaliar a candidatura do Bumba Meu Boi, que pleiteia o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. O Centro Histórico da capital São Luís já detém o título de Patrimônio Cultural da Humanidade.

E é lá no meio dos casarões antigos que foi fundado em 2014 o movimentado Centro Cultural Vale Maranhão. Que conta com a curadoria da diretora Paula Porta, idealizadora do projeto Coreografias Maranhenses. Ela assina o roteiro e a direção com Calu Zabel e Gabriel Gutierrez.

Trailer do documentário Coreografias Maranhenses: Caboclo de Pena

Estive em São Luís, a convite do CCVM, para uma das duas sessões de pré-estreia realizadas nos dias 25 e 26 de outubro na sede do centro cultural. Quando cheguei ao Centro Histórico, meu coração disparou.

Uma fogueira ardia na esquina enquanto a noite caía suavemente. Os tocadores do Boi da Madre Deus “aqueciam” seus tambores esquentando o couro nas labaredas. Aquele “ensaio” era só um breve anúncio das fortes emoções que eu viveria a seguir.

O auditório do CCVM repetiu a lotação do dia anterior. O filme, que tem duração de cerca de 30 minutos, é uma sequência de imagens de uma beleza sem fim. A mesma sensibilidade que transbordou pelo olhar do diretor de fotografia Vinícius Berger é notável no trabalho dos roteiristas.

Importante ressaltar que a equipe fez uma aposta alta e arriscadíssima. O caboclo de pena é uma dentre tantas outras personagens do Bumba Meu Boi. A ideia original era justamente criar um recorte ampliado do bailado desta personagem. Porém, o descolamento isolado dos caboclos para o palco do icônico Teatro Arthur Azevedo para as filmagens poderia significar uma descontextualização empobrecida. Aconteceu o contrário.

O roteiro do documentário habilmente nos conduz a adentrar o universo particular dos caboclos. São eles que têm total protagonismo na fala. Dançam lindamente e contam detalhes preciosos sobre o que é ser este dançarino coberto de penas de ema na festa de São João que perpetua a centenária manifestação popular do Bumba Meu Boi no Maranhão.

A gente fica tão envolvido pelos depoimentos, coreografias e canções que não acredita que o filme chegou ao fim. Por sorte, a pré-estreia ainda reservou uma surpresa extra. A cada noite, metade dos dançarinos entrevistados se apresentava após a projeção, acompanhados dos cantadores e tocadores do Boi de Maracanã e do Boi da Madre Deus.

A plateia, que reagia desde a exibição, foi ao delírio com a dança. E eu também.

Foi uma oportunidade para ouvir Canário, cantador do Boi Tremor da Campina e compositor da toada original do filme Brilho no Seu Bordado. Quando perguntei sobre a inspiração para a música, ele me contou todo orgulhoso que, após receber o convite, a toada “veio todinha à cabeça” em apenas dois dias. Flamenguista “até debaixo d’água”, como mesmo se definiu, o compositor, com casaco e chapéu bordados com as cores do seu time, conseguiu traduzir em poucas palavras na letra da canção a essência do caboclo de pena.

Equipe no Teatro Arthur Azevedo durante filmagens © Carlos Sadao Miyabara

Naquela noite, Joaquina Salazar estava em cena. Enquanto guardava seu peneiro, batemos um papo bem feminista. Ela, aos 51 anos, dançou pela primeira vez com a indumentária completa neste ano. Revela que chegou ao Boi da Pindoba para pagar uma promessa feita por sua avó há 20 anos.

Quando eu pergunto sobre o futuro e se ela continuará, ela é firme na resposta. “Tenho certeza que vou continuar. Até para influenciar outras mulheres. Tem poucas. Só uma aqui, outra acolá”. Acredita ainda que é aumentando o número de dançarinas que o respeito será conquistado e denuncia o machismo. “Os homens precisam entender que mulher também pode e precisa ser caboclo”, afirma, confirmando a forte ligação entre a festa popular e a religiosidade.

Mas, sem dúvida, o grande astro da noite era Manoel Correia, mais conhecido como Guará. Ele tem 102 anos (repito: 102 anos!) e não parava de dançar. Caboclo do Boi de Juçatuba há 45 anos, conta que mesmo “aposentado” do Boi ainda seguirá dançando. “Faz 15 anos que papai morreu. Agarrei o peneiro dele. Mas venderam achando que eu não ia mais usar. Este que eu uso é alugado. Já falei para comprarem um para eu dançar no ano que vem”.

A indumentária é cara. E é difícil calcular o custo total. Já que os ornamentos com penas, bordados e tecidos variam de peneiro para peneiro. Sem contar a manutenção anual. O que representa um valor alto para a população de baixa renda que em geral atua como caboclo de pena.

Eu estava curioso para saber como o centenário Guará treina para a dança e para suportar o peso da roupa e do gigantesco capacete. Ao questioná-lo sobre sua preparação, ele respondeu. “Sim, me preparo. Compro roupa e sapatos”. Decidi repetir a pergunta pedindo que especificasse quais exercícios físicos fazia. “Eu acordo e vou para o Boi. Por mim, eu danço a noite inteira”.

Estima-se que no Maranhão existam pelo menos 40 Bois de matraca © Walter Firmo

Ainda extasiado, consegui bater um papo com Paula, Zabel e Gutierrez que narraram o processo de pesquisa e produção do documentário, que teve um tempo recorde de cerca de três meses. E, generosamente, me deram uma aula intensiva sobre o Boi maranhense.

O desafio deles não foi pequeno. No filme, há o registro do bailado de 29 caboclos de pena, oriundos de onze Bois de sotaque de matraca, que é predominante nos quatro municípios da Ilha de São Luís e na cidade de Icatu. O mapeamento e seleção exigiu muita pesquisa e visitas às comunidades. Relatam também a contribuição espontânea da população com indicações para localizar os caboclos, uma vez que, fora do São João, eles estão ocupados com seus afazeres cotidianos.

Explicaram também que o documentário deve iniciar uma trajetória por festivais de cinema até ganhar exibição por alguma plataforma. Mas, alguns trechos do material, como entrevistas e solos, estarão disponíveis no canal do CCVM no YouTube.

Como o projeto foi configurado para ser uma série, quis logo saber qual será a próxima personagem do Boi a ser pesquisada. O trio de diretores-roteiristas acreditam que será o cazumbá, uma figura mística e mascarada que apresenta uma performance ritualística.

Durante o período que permaneci em São Luís, fosse noite ou fosse dia, uma fila de navios era uma constante no horizonte. Partiam do porto da Ponta da Madeira, carregados de minério de ferro, rumo ao mar aberto.

Dona deste porto e do ferro, a Vale do Rio Doce, que mantém o CCVM e financiou o filme, é uma empresa mineradora que atua há mais de trinta anos em solo maranhense e há mais de setenta no país. Diante da paisagem, refleti bastante sobre onde de fato está o valor do dinheiro e o verdadeiro patrimônio do Brasil. De dentro de um sistema econômico paradoxal — que só gera riqueza quando extrai — também podem surgir coisas belas.

Vídeos com entrevistas e solos de dança da série Coreografias Maranhenses estarão disponíveis no canal do Centro Cultural Vale Maranhão no YouTube

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