Quando o tempo não apaga

“Me Chame Pelo Seu Nome” conta a vida amorosa homossexual como deve ser mostrada: com menos clichês e muitas nuances

Igor Zahir
Revista Bravo!
7 min readFeb 19, 2018

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Cena do filme homônimo de Luca Guadagnino

Muito tem se falado sobre o filme Me Chame Pelo Seu Nome, do diretor Luca Guadagnino, em partes por entrar na lista de títulos cult LGBT, em partes pelo hype em torno da indicação ao Oscar 2018. Inspiração para o longa, o livro homônimo de André Aciman acaba de ser lançado no Brasil, e antes mesmo de ver o filme, me entreguei àquelas páginas.

À primeira vista, a trama não tem nada de excepcional. Elio é um garoto de 17 anos, ingênuo e tímido, meio desajeitado, filho de um respeitado professor universitário que recebe jovens aspirantes à carreira acadêmica em sua casa no litoral da Itália. Eis que surge Oliver, de 24 anos, atraente, sedutor, descolado, que vai passar uma temporada naquela mansão para trabalhar em seu manuscrito sobre Heráclito. Elio, que até então se considerava heterossexual, fica completamente atordoado com a presença de Oliver, e parte daí a narrativa do livro, que de início parece apenas um diário sobre o despertar sexual (e sentimental) de um adolescente.

Confesso que, até certo ponto, me senti incomodado com toda aquela história. Pensei que os detalhes eróticos e tolos da mente de Elio iriam conduzir o enredo até uma espécie de Cinquenta Tons de Cinza gay; ou que ia me deparar com uma versão de O Segredo de Brokeback Mountain ambientada na Riviera italiana. Não que o livro tenha tantos clichês. Absolutamente, não: nenhum dos dois morre tragicamente após um acidente ou doença terminal. Ninguém é consumido por HIV até ficar com uma aparência chocante. Não há brigas familiares pela homossexualidade do filhinho de papai. Nem mesmo cenas de homofobia e preconceito. Nada disso. Ainda assim, algo me deixava desconfortável demais naqueles protagonistas.

O que eu temia — e descobri após ler boa parte do livro — é que meu incômodo se deu pela nostalgia que suas páginas me trouxeram. Um completo filme passou dentro de mim, e certamente, pelos pensamentos de parte dos leitores que nem sequer viram o longa de Guadagnino. Por tal razão, essa resenha seguirá com um tom mais íntimo do que o habitual. Ao escrever Me Chame Pelo Seu Nome, Aciman escavou a vida amorosa de muitos homossexuais que estavam cansados dos estereótipos. Apesar dos pesares, a gente tenta levar uma vida normal, e principalmente no que se trata de relacionamentos, estava mais do que na hora da literatura e do cinema nos representarem em nossos dilemas triviais. O livro faz isso da maneira mais delicada e devastadora que eu já vi.

Há alguns anos, eu já fui o Oliver de alguém. Consequentemente, tive um Elio na minha vida. Um jovem que, apesar de se sentir diferente, não sabia (ou preferia não pensar) sobre sua atração por pessoas do mesmo sexo. Até que conhece alguém como Oliver, como eu, como tantos: mais experiente, cosmopolita, capaz de conversar sobre qualquer assunto, e acostumado a jogos de sedução. A mente do mais jovem vira pelo avesso. Todas as suas convicções, tão complexamente construídas, vão por água abaixo. As fantasias sexuais se misturam a sonhos afetivos, aos ideais de romantismo que só fazem sentido nos contos de fadas e nas cabeças de meninos inocentes. Ter (e ser) um Oliver no caminho de um garoto que ainda não se descobriu é importante, e eu diria que é inevitável. Mas é muito, muito massacrante. Para as duas partes. Para o mais jovem, por causa do tsunami de sentimentos que lhe dominam. Para o mais experiente, porque, se não bater um remorso ou vazio, o jogo se inverte (como foi no meu caso) e você percebe que levou uma rasteira da vida e não tira mais o outro da cabeça.

Por um lado, você deseja que a pessoa fique longe, a quilômetros de distância, para tentar esquecer e seguir com sua rotina. Ao mesmo tempo, precisa dela por perto caso não consiga dar conta da tortura que se instala. Você necessita daquela pessoa ao seu lado na hora de descansar no travesseiro — porque, sim, aquele clichê da Internet que diz que “a pessoa que lhe tira o sono é a mesma que lhe faz dormir melhor”, é a mais pura verdade.

Quando não conseguem resistir, vocês se entregam a uma caliente relação que não se rotula como namoro, nem como caso passageiro, enfim, não há rótulos, porque o laço entre ambos é muito mais forte do que qualquer formalidade. Pensam na sorte que têm em ter se encontrado nessa vida. Aliás, repetem que “é um amor que deve vir de outras vidas”, caso acredite na teoria. Refletem sobre como um é melhor do que o outro, com aquele suspiro seguido de um silencioso “ele é demais pra mim”.

E aí vem a queda da separação. No começo achamos que é apenas o remorso de não ter tentado algo a mais, a inconformidade de pensar o que poderia ter feito. Um monte de “E se tivesse sido daquela forma” parece prevalecer nos primeiros dias. Mas a fase mais perigosa vem em seguida, quando, no auge da modernidade líquida, a gente bota em prática o patético orgulho humano pra tentar esquecer e dar uma de forte, de quem está por cima da carne seca.

Sobre isso, o pai de Elio fala uma das maiores verdades que eu li: “Se houver dor, cuide dela, e se houver uma chama, não a apague, não seja bruto com ela. Arrancamos tanto de nós mesmos para nos curarmos das coisas mais rápido do que deveríamos, que declaramos falência antes mesmo dos trinta e temos menos a oferecer a cada vez que iniciamos algo com alguém novo. A abstinência pode ser uma coisa terrível quando não nos deixa dormir à noite, e ver que as pessoas nos esqueceram antes do que gostaríamos de ser esquecidos não é uma sensação melhor. Mas não sentir nada para não sentir alguma coisa… que desperdício!”.

Sobre a sensação de ser esquecido, ela é, sim, avassaladora. Mesmo que você tente mostrar ao mundo que superou, no fundo do seu coração, você se pergunta se aquela pessoa ainda pensa em você. Se você foi assim tão descartável que ele já partiu pra outra. Ninguém almeja isso. Tudo o que você mais quer é ouvir da pessoa: “Me chame pelo seu nome e eu vou chamar você pelo meu”, como Elio e Oliver. Sim, o desejo de ser apenas um só é o que sobressai. Infelizmente, nem tudo é como planejamos, aqui estamos falando da vida como ela é, e precisamos seguir em frente.

Os anos passam. Você conhece outras pessoas, umas mais marcantes, outras tão insignificantes que você nem se lembra de detalhes dos encontros. E aquela pessoa continua lá na memória. Nas palavras de Elio, como um divisor de águas que reflete em todas as suas experiências futuras. As lágrimas secam e talvez demorem a escorrer novamente. Você fica mais frio e calejado. Antes de se entregar a outro, lembra-se do que viveu. O “antes de fulano X depois de fulano” serve de bússola para guiar seu caminho.

Até esse ponto, quando você acha que deu a volta por cima, está tudo bem. De repente, vem outra reviravolta da vida. Ah, que sacanagem! “Que pateta”, como diria Oliver. Você inesperadamente encontra a pessoa depois de tantos anos. Ou se cruzam de maneira inevitável por qualquer motivo sem explicações. Ou simplesmente seu coração não resiste, cede um pouquinho e procura saber por onde anda aquele que — embora você não diga em voz alta — sempre será o amor da sua vida. Você descobre onde ele trabalha, que lugares frequenta, e vem aqueles questionamentos mais maduros: será que vale a pena me meter nessa cilada? Será que eu sou capaz, que consigo mexer nessa ferida?

A propósito, agora que os anos se passaram, você analisa: é justo fazer isso com aquela pessoa? Por mais que você queira chamá-lo pelo seu próprio nome e abraça-lo de olhos fechados por longos minutos, por mais que sinta que vocês sempre serão um do outro e que o tempo parece não ter passado, eu lamento informar, mas passou sim. O tempo não para, meu amigo. Cada um tem sua vida, suas responsabilidades, e provavelmente, suas outras pessoas.

O livro de André Aciman escancara todos esses pensamentos. Particularmente, ele reabriu uma ferida que eu considerava cicatrizada. Fez com que eu percebesse que não adianta tentar esquecer um amor inesquecível. Ele sempre vai estar lá. Ainda que você insista em varrer a sujeira dos momentos ruins pra debaixo do tapete. De repente o mais correto é colocar aquela pessoa numa estante velha e não mexer. Quando estiver empoeirada, limpa e protege com naftalina, mas sempre coloca de volta na estante, no seu lugar de direito. Um lugar que, já ficou claro, ninguém vai ocupar.

Como eu disse no começo do texto, ser um Oliver na vida de alguém, por mais divertido que seja no início, torna-se perigoso. Nas inúmeras voltas que o mundo dá, você deixa de ser o Oliver e se torna o Elio da situação. Você pode lidar com isso numa boa e achar toda essa história sensível e poética, digna de um livro ou filme. Mas você pode constatar — da forma mais dilacerante possível — que o tempo nem sempre cura tudo. Muitas vezes, como Elio descreveu, “o tempo nos deixa sentimentais. Talvez, no fim, o tempo seja o motivo pelo qual sofremos”.

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Me Chame Pelo Seu Nome, de André Aciman. Tradução: Alessandra Esteche. Intrínseca, 288 páginas. R$ 39,90.

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Igor Zahir
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Art advisor. Comentarista da rádio CBN. Crítico cultural. Colunista da Bravo!.