Radicais em museus

Sem a ingenuidade de pensar que a arte está livre do mercado, exposição na Pinacoteca ainda inspira discursos ousados

Paula Carvalho
Revista Bravo!
7 min readAug 29, 2018

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"Biscoito-arte", Regina Silveira (1976)

No livro Amuleto, Roberto Bolaño mergulha na memória da poeta uruguaia Alcira Scaffo para lembrar da sua heroica história durante a invasão do exército na Universidade do México (UNAM) em 1968, quando ela passou duas semanas no banheiro da universidade, alimentando-se de papel higiênico, por não ter se entregado aos militares. Scaffo viraria a “mãe de todos os poetas” e símbolo de resistência dos artistas do México. Além de jovens terem sido detidos e torturados em consequência dos diversos protestos estudantis (na onda dos movimentos da França), o país viveu um momento traumático em outubro de 68 quando um massacre na Plaza de las Tres Culturas, em Tlatelolco, deixou centenas de mortos — muitos deles, nunca mais encontrados. O quanto conhecemos destas histórias?

Na exposição Mulheres Radicais: arte latino-americana,1960–1985, em cartaz na Pinacoteca, casos de resistência como este são foco da curadoria da venezuelana-britânica Cecilia Fajardo-Hill e da ítalo-argentina Andrea Giunta. Como está no nome, se propõe expor trabalhos de mulheres artistas de diversos países da América Latina realizados entre 1960 e 1985, período de ditaduras e repressões na maior parte deles. Inclui também artistas latinas radicadas nos Estados Unidos, as chicanas.

Dividida entre os espaços do primeiro andar da Pinacoteca, Mulheres Radicais tem uma expografia acessível, mas não excessivamente didática ou engessada. Não se propõe uma divisão cronológica, e sim a partir de 8 núcleos temáticos — Corpo (pele); Autorretrato; Mapeando o Corpo; Feminismos; O Poder das Palavras; Resistência e Medo; Lugares sociais e O Erótico. Várias das obras são acompanhadas de pequenos textos que apresentam os trabalhos sem muito hermetismo ou divagações, tentando explorar o contexto de cada país e a história de cada artista.

Uma premissa aqui é que mulheres da exposição (assim como Scaffo na poesia) não tiveram tanta entrada no Brasil. São pouco conhecidas do público. Se pensarmos na década de 60 e 70 em Nova York — lá sim, pólo dominante das artes, tanto em sua vertente mais experimental como no pop orbitante à The Factory — diversos nomes chegaram como os grandes da arte, sendo Andy Warhol caso exemplar. Dentre as mulheres há alguma ressonância de trabalhos como os de Nico, Yoko Ono, Patti Smith, Laurie Anderson. Não é um rol tão extenso como o dos homens, para variar, porém são fundamentais e hoje consagradas. O ponto é que esse não é o caso, ainda, de boa parte das 120 artistas reunidas em Mulheres Radicais, como as venezuelanas Maria Luisa Gonzales ou Jennifer Hackshaw, a peruana Teresa Burga, as argentinas Liliana Maresca e Marie Orensanz e mesmo algumas das brasileiras, como as mineiras Wilma Martins e Liliane Dardot e a alagoana Martha Araújo. As Lygias Pape e Clark, estas sim consagradas pela importância que o neoconcretismo adquiriu, estão presentes, mas não com seus trabalhos mais conhecidos.

Sem querer cair num pensamento dualista estilo yankees-go-home, vale lembrar ainda que, nessa mesma época em que Nova York fervilhava, nos países latino-americanos universidades eram fechadas, jovens simplesmente desapareciam da noite para o dia (como também retrata Bolaño em várias de suas obras), grupos de artistas eram perseguidos e forçados ao exílio e ditaduras de extrema direita espionavam a esquerda, muitas vezes com apoio de agências americanas. Nos próprios Estados Unidos, latinas estavam sendo esterilizadas à força em Los Angeles em procedimentos ginecológicos e partos — caso que ficou conhecido como Madrigal vs. Quilligan. Mulheres como essas estão representadas nas fotografias de Sandra Eleta, fotógrafa panamenha que fez retratos de domésticas chicanas em casas norte-americanas em postura de afronta, como se estivessem na posição de donas da casa. Nessa época, a segunda onda do feminismo (liderado por mulheres brancas americanas) pouco se importou com os casos de esterilização — história que é contada no documentário No Más Bebes, dirigido por Renee Tajima-Peña.

Sandra Eleta, “Edita (la del plumero)”, 1977

É uma visão contraposta a esse movimento americano branco que está expressa na sessão Feminismos, que reúne o único grupo da exposição — mexicano — que se definia como feminista. Artistas como Ana Victoria Jimenez, Yolanda Andrade, Mónica Mayer e Maris Bustamante começaram a produzir, a partir de 75, obras mais políticas de afirmação da arte feita por mulheres e em 83, lideradas por Bustamante, Mayer y Herminia Dosal, formariam o Polvo de Gallina Negra, primeiro grupo de arte feminista do México. Pretendiam não só expor o sistema patriarcal em seus projetos, mas também estudar a imagem da mulher no país. Entendiam, assim como no feminismo chicano, a espiral de desigualdades em que estão envoltos gênero, etnia, raça e classe. Abrindo a sessão na Pinacoteca, o Cuaderno de tareas de Jimenez é um dos trabalhos que mostra, com fotografias, a rotina doméstica de reprodução do sistema patriarcal nos afazeres de casa.

Foto da série "Cuaderno de Tareas", de Ana Victoria Jimenez

Além da Feminismos, a outra seção que é destaque é a da união de artes visuais e poesia, O Poder das Palavras. E lá o Brasil está representado com obras importantes — Biscoito Arte (1976) de Regina Silveira, o Poema (1979) de Leonora de Barros, ou o vídeo Marca Registrada (1974) de Letícia Parente, em que ela costura num pé o registro de exportação made in brasil. Trabalho da primeira leva da videoarte, ele fala da marca a ferro e fogo (ou agulha e linha) da ditadura e da tortura nos corpos.

Já na sessão Lugares Sociais, o destaque é para trabalhos que se preocupam ou se colocam no lugar de pessoas de classes sociais menos favorecidas (normalmente diferentes da das artistas). Há diversas correlações entre as obras dentro da exposição. Em várias das salas, um vídeo é destaque — sejam produções das Lygias Pape ou Clark ou na ênfase na entrada para Me gritaron negra, de Victoria Santa Cruz (que por sinal também está presente na exposição Historias Afro-atlânticas, no Tomie Ohtake). O privilégio de Santa Cruz na expografia — a poeta representa o ativismo afro-peruano — demonstra uma preocupação com a interseccionalidade entre as lutas de mulheres na mostra.

O foco da curadoria, claramente, esteve em obras com suportes menos tradicionais. Pintura e escultura não são tão presentes quanto as fotografias, as videoinstalações e registros de happenings, fato também simbólico — é só pensar da tradição da história da arte e da consagração de artistas homens nos suportes mais tradicionais.

Outro ponto interessante é que parte considerável dos trabalhos vem do acervo das próprias artistas, o que indica uma reunião de obras pensada mais a partir da proposta das curadoras do que por possíveis intervenções de colecionadores e galeristas. Mas, que não haja ingenuidade: toda grande exposição, sobretudo em nível internacional, acaba reordenando ofertas e demandas no mercado da arte. Vale lembrar que a vinda ao Brasil (Mulheres Radicais foi inaugurada no Hammer Museum, em Los Angeles, e depois foi para o Brooklyn Museum, em Nova York) foi financiada por um “exhibition circle”, isto é, um grupo de patrocinadoras, todas mulheres, dentre galeristas, colecionadoras, empresárias e donas de organizações sociais.

Antes da entrada nas salas da Pinacoteca, linhas do tempo de diversos países latino-americanos retraçam alguns dos principais fatos políticos da segunda metade do século 20, reforçando a ideia da exposição de que se tratam de obras que enfatizam o viés radical — isto é: comprometido até o limite, artisticamente e, às vezes, com as próprias vidas — das artistas. Nesse sentido, algumas das seções esfriam um pouco a proposta, agrupando-se em torno de pesquisas sobre o corpo e sobre o erótico.

No geral, o intuito de resgate de obras de mulheres latino-americanas — por vezes não lembradas, ou não tão celebradas — embora possa ter algum quê de interesse na valorização desses nomes no próprio mercado artístico, nem de longe invalida a importância de trazer à tona estes trabalhos, de fazer com que se circule mais exemplos de artistas comprometidas. E sobretudo, de trazer, em 2018, discursos que falavam a partir de um lugar de repressão num momento político complicado em todo o mundo, com o aumento inclusive de discursos de misoginia entre políticos (vide Trumps, Bolsonaros e afins). Nesse sentido, a bonita história de Alcira Scaffo, assim como muitas destas artistas — Victoria Santa Cruz, no caso, é trunfo principal — transcendem muitas das questões de mercado e relembram de como a arte, ainda que tão imbricada com o poder, é capaz de inspirar a resistir.

Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960–1985
Curadoria de Cecilia Fajardo-Hill e Andrea Giunta. Colaboração de Valéria Piccoli
Até 19/11.De quarta a segunda-feira, das 10h00 às 17h30 — com permanência até às 18h00.
Pinacoteca: Praça da Luz 2, São Paulo.
Ingressos: R$ 6,00 (entrada); R$ 3,00 (meia-entrada para estudantes com carteirinha). Entrada gratuita aos sábados.

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Paula Carvalho
Revista Bravo!

jornalista, doutoranda em sociologia na usp. quase tudo em torno de som 🎛 pra mandar mensagem: paula.cncarvalho@gmail.com