(Re)Existências poéticas
17ª edição do festival Goiânia em Cena valoriza artistas goianos na programação e promove troca de livros por ingressos
Marci Dornelas e eu presenciamos o nascimento do festival Goiânia em Cena no ano 2000. O parto havia sido conduzido pelo professor e diretor teatral Sandro Di Lima, secretário municipal de Cultura à época.
Marci trabalhava na produção. Eu era um adolescente e aspirante a jornalista. O festival foi o primeiro evento cultural de grande porte que cobri no início da minha carreira jornalística. É ainda uma alegria imensa na semana em que a capital goiana faz aniversário. No próximo dia 24 de outubro, a cidade celebrará seus 86 anos.
Em calendários mais brutos, o festival não foi realizado. Eis que chegamos a 2019 contando 17 edições em vez de 19, em mais uma das incontáveis administrações do prefeito Íris Rezende. Quem é goiano sabe que eleições passam. Íris fica.
Embora o atual secretário municipal de Cultura Kleber Adorno atue como um aliado, nota-se que — usando uma linguagem agropecuária — é tempo de vacas magras. Na programação, não se vê produções de alto custo.
Dez anos depois da última cobertura que fiz do festival, (re)encontro Marci como diretora de Políticas e Eventos Culturais da Prefeitura de Goiânia e na coordenação do festival. Na ficha técnica, (re)conheço gente muito querida, como Roosevelt Saavedra na coordenação técnica e Júlio Vann e Hélio Fróes na curadoria nacional. Com estes últimos, eu aprendi a ver teatro.
O orçamento enxuto não diminuiu o valor artístico. Muito pelo contrário. O festival coloca — no sentido literal — Goiânia em cena. É bonito ver como as companhias de artes cênicas goianas ocupam horários nobres e são a “maioria absoluta” em cartaz.
A atração internacional é a peça Josefina La Gallina, Puso Un Huevo Em La Cocina, dos mexicanos do Vaca 35 Teatro en Grupo. Entre os nacionais, destaque para a imperdível e necessária A Invenção do Nordeste, do potiguar Grupo Carmin, e Prego na Testa, com os paulistanos da Parlapatões.
Entre as novidades desta edição está a troca de livros literários por ingressos. As trocas serão feitas na bilheteria do Centro Municipal de Cultura Goiânia Ouro. Os livros arrecadados vão compor o acervo da biblioteca do Goiânia Ouro e também serão destinados a outros projetos realizados ou apoiados pela Prefeitura de Goiânia.
A cena goiana — sobretudo a goianiense — cresceu muito em quantidade e qualidade. Quasar Cia. de Dança, Cia. de Teatro NU Escuro, Grupo Teatro que Roda e Grupo de Teatro Guará já se tornaram clássicos. Há muito para descobrir como Indelicada Cia. Teatral, Projeto Caixa de Memórias, Giro8 Companhia de Dança e Anna Behatriz e Jeferson Leite, entre outros.
Coerência nas incongruências
Com o tema “(re)existências poéticas”, que norteia todos os eixos de atividades do festival, nenhuma escolha seria mais alinhada a este propósito do que a decisão de ter o Ateliê do Gesto na abertura desta edição.
É sabido que festivais gostam de apresentar estreias. É o caso de CRU. Além disso, o cálculo para compor a programação também considera a disponibilidade de agenda das companhias convidadas.
O Ateliê surgiu em 2015 em Goiânia a partir da união dos esforços dos bailarinos Daniel Calvet e João Paulo Gross. Com o anúncio da paralisação da Quasar em 2016, onde os dois trabalhavam, a autoria coreográfica da dupla ganhou força e velocidade com a participação da peça O Crivo no Palco Giratório, que permitiu uma curtíssima temporada no Sesc Bom Retiro. Ainda no ano passado, se apresentaram na Virada Cultural de São Paulo.
Em 2017, no Festival de Dança de Joinville, fui testemunha da excelente recepção que o trabalho teve. Notei quando Ana Botafogo se levantou para aplaudi-los no ano em que iniciou seu mandato trienal como curadora.
O trabalho inaugural também rendeu convites para apresentações em diversas cidades de norte a sul do país, e em países como República Tcheca, França, Peru, Costa Rica e Cingapura, para onde embarcam na próxima sexta.
A força poética de Guimarães Rosa os acompanha. E é justamente esta força que é expandida em CRU.
Na segunda-feira (14), a dupla me recebeu para assistir a um ensaio. Pudemos falar sobre a trajetória e sobre as expectativas com a nova criação, que tem como proposta cênica uma ação no centro de uma plateia dividida em duas laterais. O espaço cênico corre por entre duas arquibancadas como o leito de um rio seco, de onde brotam dois corpos cobertos por argila e que na coreografia tensionam mutuamente o estar no mundo.
Assim, essa (re)existência poética do Ateliê do Gesto só prova que nos lugares mais áridos podem surgir coisas muito belas.
Em 2008, quando ainda era um estudante de Jornalismo e cobria pela primeira vez o festival pelo jornal da universidade, eu não tinha uma credencial. Havia um acordo com a direção que permitia meu acesso às peças desde que houvesse lugar disponível. Todas as noites era Marci quem abria a porta dos teatros para eu passar, imediatamente após a entrada do público com ingresso.
Ainda penso muito no simbolismo do gesto dela. Uma década depois, é Marci quem novamente “abre a porta” ao me convidar para (re)existirmos poeticamente e juntos. (Re)Encontro.
17º Goiânia em Cena — Festival Internacional de Artes Cênicas. 16 a 24 de outubro. Programação completa em www.goianiaemcena.com.br