Retrato em branco e preto

O fotógrafo Mauro Restiffe fala sobre o “Álbum” de retratos analógicos que exibe na Estação Pinacoteca

Andrei Reina
Revista Bravo!
12 min readAug 16, 2017

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“A Caça”, de Mauro Restiffe (Foto: Divulgação)

O fotógrafo Mauro Restiffe passou por um longo caminho até chegar nas 143 fotografias que expõe na Estação Pinacoteca, em São Paulo. O processo de montagem de Álbum, mostra que tem curadoria de Rodrigo Moura, começou com a análise de quatro mil rolos de filme, totalizando cerca de 30 mil fotos.

As selecionadas pela exaustiva peneira variam nos temas e motivos retratados, passando do funeral de um político à intimidade de um casal em questão de poucos passos. Há, no entanto, uma continuidade estrutural no conjunto: todas as fotografias são em preto e branco, tiradas com a câmera analógica que o fotógrafo usa há 20 anos.

A exposição percorre a trajetória de Restiffe desde o início de sua carreira, no final dos anos 80, e é sua primeira individual panorâmica em um museu brasileiro. Apesar de apresentar trabalhos em sua maioria inéditos, Álbum propõe também um balanço da produção do artista.

“Sua obra tem sido simultaneamente encarada como a de um fotógrafo da grande tradição realista assim como a de um artista contemporâneo empenhado na desconstrução da imagem fotográfica”, escreve o curador Rodrigo Moura em texto para o catálogo da exposição. “É justamente nessa ambivalência, resultada da fricção entre esses dois mundos, que encontramos a sua maior potência e singularidade”, conclui.

“Mirante #6”, de Mauro Restiffe (Foto: Divulgação)

As fotografias de Mauro Restiffe estão expostas ao lado de telas de pintores ativos no Brasil nos séculos XIX e XX, como Almeida Júnior e Guignard, selecionadas dos acervos do MASP e da própria Pinacoteca. “A inclusão dessas obras tem vários sentidos, mas deve ser compreendida sobretudo como uma maneira de apropriação, como artefatos culturais que alimentam uma relação profunda com as fotografias do artista, admirador e colecionador de imagens ele mesmo”, explica o curador.

Ocupando todo o quarto andar da Estação Pinacoteca, a exposição é dividida em três salas contíguas. Naquela dedicada a Paisagens e multidões, cliques históricos — como os feitos nos Estados Unidos, na primeira posse do presidente Barack Obama, e no funeral de Fidel Castro, em Cuba — estão ao lado de paisagens litorâneas e rurais. Há ainda uma fotografia da série Empossamento, feita em Brasília durante a primeira posse do presidente Luís Inácio Lula da Silva, em 2003.

“O preto e branco traz essa qualidade pasteurizada do tempo, que a gente às vezes confunde o momento em que a foto foi feita”, diz Restiffe. De fato, ver as posses de Lula e Obama em preto e branco, ao lado de pinturas históricas coloridas, pode nos distanciar da realidade representada nas fotografias. Ao mesmo tempo, concretiza a distância que aqueles momentos históricos, passados poucos anos, têm do presente.

“Dinner Party”, de Mauro Restiffe (Foto: Divulgação)

Já a sala Enquadramentos e construções tem maior apelo às formas, combinando registros de arquitetura, fotos tiradas em exposições de museus mundo afora, além de cliques do processo de revelação fotográfica, em uma espécie de metalinguagem. Não por acaso, é em uma das paredes desta sala que se dá o curioso diálogo entre um Metaesquema de Hélio Oiticica, feito em 1957, e a fotografia de um armário de parede, tirada em 2013. Assim como as formas geométricas da tela neoconcreta, as portas do móvel tem tamanhos parecidos, mas não idênticos, e são distribuídas de modo irregular.

Entre as duas — operando como um centro gravitacional, afetivo e estético — está a sala Álbum, que nomeia o conjunto. Com retratos domésticos, ligados ao cotidiano familiar do fotógrafo, ela apresenta de forma cronológica, de 1995 a 2017, um “políptico de 73 fotos”, como define Mauro Restiffe. A disposição das fotos tem algo de diário pessoal e passa por momentos-chave da vida do artista, como nascimento de filhos, e do dia-a-dia com a mulher. Na sala, autorretratos do fotógrafo estão em diálogo com outros de nomes como José Pancetti, elevando cliques diante do espelho à estatura de telas consagradas.

“Tempestade”, de Mauro Restiffe (Foto: Divulgação)

A Bravo! visitou a exposição Álbum, na Estação Pinacoteca, e conversou com Mauro Restiffe. O fotógrafo falou sobre a relação de seu trabalho com a pintura, o processo de montagem da mostra e a predileção pelas fotografias analógicas em preto e branco. Leia os principais trechos da conversa a seguir.

Como foi a decisão de fazer essa espécie de “retrospectiva de inéditos”? Você estava num momento de olhar pro seu arquivo?

Em 2013, 2014 fui convidado a fazer uma exposição sobre um material que eu tinha feito sobre a Rússia — um material dos anos 90 que um ex-professor meu, o fotógrafo Allen Frame, conhecia e solicitou para uma mostra na Itália. Nesse processo, passei a rever as folhas de contato de época e a escaneá-las.

Foi a primeira vez que revisitei meu arquivo atrás de novas imagens e encontrei ali um material até então desconhecido para mim. Fiquei entusiasmado em poder acessar estas imagens de forma instantânea, porque até então eu somente as via através das folha de contato, com auxílio de uma lupa, e então tinha que ir ao laboratório para ampliar e entender o conteúdo e o sentido destas imagens. Com acesso a um escâner eu acelerei o processo de entendimento deste material — por ocasião dessa exposição sobre a Rússia — e me fascinei por encontrar imagens que não imaginava que possuía no arquivo. Sabia da existência delas, porque sempre vejo as folhas de contato (uma vez que revelo os filmes), mas não sabia do potencial que tinham.

Depois dessa fase, comecei a escanear intensamente os negativos, rever as folhas de contato e, aí, encontrei dentro deste material um corpo de trabalho — agrupei um conjunto de fotos e vi que ali tinha uma história, algo que começava desde os anos 90 e que seguia até o presente com uma certa visão, uma certa coerência — e que não é aquilo que eu geralmente mostro em minhas exposições, era uma produção paralela. Por exemplo, os retratos, as cenas de família, cenas de viagens, fui achando coisas.

A revisitação do arquivo veio desse momento pontual, e que depois foi se intensificando e passamos então a escanear, escanear, escanear…

“Tim Smoking”, de Mauro Restiffe (Foto: Divulgação)

E como vocês preparam a exposição?

Quando houve a aprovação do projeto pela Pinacoteca, a gente intensificou ainda mais o escaneamento das imagens. Eu revi todo o meu arquivo — que está em torno de quatro mil rolos de filme. Então a gente escaneou cerca de 30 mil imagens e, dessas, 10 mil eu revi juntamente com o Rodrigo Moura. Daí a gente foi vasculhando, selecionando e enxugando as coisas que achávamos mais relevantes, até que chegamos em torno de 400–600 imagens. Quando chegamos nesse número, começamos a agrupá-las por temas, afinidades, gêneros. E aí chegamos neste conjunto de imagens que compõem esta exposição.

Mesmo sendo de anos diferentes e de variar nos temas, a técnica das fotografias é sempre a mesma: preto e branco e, salvo engano, analógicas.

Tudo analógica. Mesma câmera, mesma lente. Elas tem uma certa continuidade.

“Coqueiral”, de Mauro Restiffe (Foto: Divulgação)

Por que esta escolha?

Quando eu entendi, isso ainda nos anos 90, que pra mim era mais importante ter menos equipamento e estar sempre de posse da câmera, eu percebi que esta simplicidade me proporcionava também uma linguagem, uma voz, algo que carrego comigo até hoje, quase que uma assinatura.

Eu venho de uma época de formação fotográfica em que o preto e branco era visto com muito preconceito, como uma linguagem “classicona”, muito tradicional. A cor, naquela época, trazia uma suposta ação de ruptura com esta tradição na fotografia, [que] almejava ser inserida no meio das artes plásticas. Eu nunca acreditei nesse movimento sobre a cor, como a imposição de uma linguagem que rompia com o tradicional na fotografia. Sempre achei que o preto e branco, por si só, também poderia se impor, ter uma autonomia, porque o que importava pra mim era o conteúdo das imagens — e não se é colorida, se é pintura, se é escultura, mas sim o que se quer dizer e expressar através da feitura de uma imagem. Eu sempre me preocupei com a relação que a fotografia exerce sobre o espaço, em como ela se manifesta no espaço expositivo, em como ela é instalada e experienciada pelo espectador. E o preto e branco é parte inerente de todo este processo.

Com o passar do tempo, acho que a fotografia mudou muito, principalmente com o advento do digital. E a leitura do preto e branco mudou mais ainda, principalmente do preto e branco analógico.

Eu passei a mostrar mais assiduamente meu trabalho a partir dos anos 2000. Logo em seguida surgiu o digital, e então passei a ter mais afeição ainda ao método tradicional. E ele passou, de certa forma, a me favorecer, no sentido de que na manufatura artesanal do processo analógico, existe uma textura, uma referência que é somente característica deste processo, e que às vezes se confunde com o desenho, principalmente nas fotos mais gráficas, e que se distancia da característica mais aguda, ultra definida, do processo digital.

O preto e branco traz essa qualidade pasteurizada do tempo, que a gente às vezes confunde o momento em que a foto foi feita. [Aponta para uma fotografia.] Foi feita há 50 anos atrás? Isso é da natureza do preto e branco. E eu venho utilizando dessa característica, da virada de interpretação, de leitura da imagem, porque a fotografia pra mim é um dos meios de representação que melhor lida com a questão do tempo. Isso desde o advento da fotografia. Você tira uma foto, o tempo passa e você interpreta essa foto com um outro olhar com o passar do tempo. Essa exposição é muito sobre isso, sobre como a fotografia se relaciona com a passagem do tempo.

“Pausa”, de Mauro Restiffe (Foto: Divulgação)

Qual influência a pintura tem no seu trabalho?

É uma relação já evidenciada no meu trabalho há muito tempo, tem vários trabalhos que lidam com essa relação da pintura com a fotografia, em que a pintura é o assunto e tema de várias de minhas imagens. Mas aqui nós decidimos traçar esta relação num embate ainda mais físico, ao trazer as próprias pinturas pra dialogar diretamente com as fotografias. Esse contraponto físico é fundamental nesta exposição.

Como é o seu trabalho com a câmera na mão? Como você trabalha o enquadramento e a composição em movimento?

Isso varia muito de intenção, dependendo do que eu estou fazendo. Se eu estou fazendo um projeto específico, pra alguma coisa, eu geralmente clico mais, fotografo mais, vario mais os ângulos, mas no meu dia-a-dia tudo é mais instantâneo. Se tem algo que me atrai ali, eu vou até lá e tiro a foto e está feito, entende? Na grande maioria das minhas fotos, é um clique. É uma resposta meio rápida e intuitiva ao presenciar certas cenas.

Mesmo em relação à pintura, ao fotografar o espaço da arte, acho que isso ocorre também. Eu sempre fotografo em museus, desde que eu comecei a fotografar. Quando me mudei pra Nova York, nos anos 90, fiquei fascinado pela quantidade de arte que via nos museus e estava sempre fotografando — e continuo fazendo isso. É algo intuitivo, um certo fascínio, de ver algo no espaço e fotografar — e a pintura passa a ser também um assunto pra mim.

O quadro dentro do quadro é um pouco o tema da sala Enquadramentos e construções: essas camadas, a imagem dentro da imagem, e como isso se repete e se perpetua dentro desse ciclo. Eu estou aqui, estou vivenciando algo, eu fotografo. Estou enquadrando algo que depois é reenquadrado, vai pro espaço onde depois o espectador está vendo. É muito sobre o fotografar, sobre o processo, esse ato de perpetuar o ato da visão.

“Lab Mirrors”, de Mauro Restiffe (Foto: Divulgação)

E na hora de expor as fotografias, quais são as preocupações?

Uma vez que a gente está olhando pra fotografia, ela já apresenta uma materialidade. Aqui, o nosso corpo está se relacionando com ela, tem uma fisicalidade que sempre me interessou. Por isso acho que a montagem de uma exposição é muito importante.

Desde o começo, desde a minha primeira exposição eu venho prestando muita atenção para este aspecto, em como o espectador se relaciona com a obra, com a imagem. Por isso essa fisicalidade, esse ritmo [da exposição]. Meu primeiro livro eu fiz somente no final do ano passado, então eu sempre tive uma relação com a fotografia ligada ao espaço expositivo. Como interpretar este espaço e responder de uma maneira efetiva à interlocução entre o espectador e as imagens — pra mim isso é muito importante.

Você acha que isso oferece uma alternativa à relação descartável que as fotografias digitais proporcionam?

O analógico já é uma resposta a isso. Até o título da exposição se refere a isso: o Álbum já deriva de um sentimento nostálgico, de uma prática — a de fazer álbuns fotográficos — que não existe mais, que pouquíssimas pessoas ainda fazem.

“Charles Henry’s Desk”, de Mauro Restiffe (Foto: Divulgação)

Quando as fotos da sala Álbum foram tiradas, você estava numa situação particular, familiar. Provavelmente não foi premeditado que elas virassem um trabalho, mas ao mesmo tempo dá pra ver que existe uma preocupação estética nelas.

Essa sala é muito importante, no sentido de ela resumir o que é esse trabalho, o que é essa exposição. Ela fala um pouco sobre como eu me relaciono com a fotografia.

O que me interessa aqui é pensar que essas imagens, esses retratos, tem uma relação direta com as que estão nas outras salas. Apesar de serem assuntos e gêneros diferentes — ali estamos falando de paisagem, ali estamos falando mais de construção e espelhamento, aqui o tema é mais intimista, cotidiano, diarístico — tento pensar isso tudo como uma coisa só, porque é sobre o ato de fotografar. O elemento temporal, de ocorrer uma passagem de tempo, entra aqui de uma forma muito intensa.

Mostrar esse lado mais íntimo me interessa também porque está na natureza da imagem. Quando a gente revela algo, mesmo que não seja tão intimista como essas imagens, estamos sempre mostrando alguma coisa, uma particularidade nossa em relação à nossa visão de mundo. E aqui eu tentei olhar, ver o material que sempre coletei sobre a minha família e que nunca imaginei que fosse chegar em algo dessa natureza.

Não é que eu estava fazendo um trabalho, eu estava fotografando, fazendo o que eu gosto. Eu tenho o mesmo prazer de tirar fotos da minha família que tenho de tirar foto de um quadro, de uma paisagem. Acho que é jogar tudo dentro do mesmo plano, de um mesmo interesse. É pensar um pouco esse interesse pela vida mesmo, pela imagem. Acho que é o trabalho mais estruturado da exposição, é quase uma instalação.

“Warchavchik”, de Mauro Restiffe (Foto: Divulgação)

No seu caso, parece que a fotografia não é só um ofício, mas também uma maneira de lidar com a vida.

É exatamente isso. No final, a gente faz aquilo que está às nossas mãos… Eu me inclinei pra fotografia porque era uma atividade muito fácil: você necessitava de uma câmera, pegava os filmes, fotografava, ia lá revelar e já tinha [a foto]. Não precisava de uma habilidade — pra pintar, esculpir ou mesmo escrever. Foi algo que eu peguei muito rápido, de uma maneira muito intuitiva e que retratava o meu viver. É sobre isso, a gente está falando de viagens, falando de paisagens, da vida cotidiana, de família , às vezes algo mais documental, mais histórico — acho que é um emaranhado de tudo. Meus assuntos fotográficos não têm fim. Qualquer coisa me interessa.

Eu também nunca estou atrás de fotografar algo específico. Estou com a câmera na mão e pronto para fotografar qualquer situação que me interesse. Meu trabalho é sobre isso. Às vezes tem projetos que você vai mais determinado a focar em certas coisas específicas, mas eu gosto mesmo é de fotografar. É isso o que eu gosto de fazer. E acho que essa é a ideia dessa exposição.

Álbum, de Mauro Restiffe

Visitação: quarta a segunda, das 10h às 18h. Até 6/11. Ingressos: R$ 6 (grátis aos sábados).

Estação Pinacoteca: Largo General Osório, 66 — Luz — São Paulo.

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