Richard Wagner e ‘Tannhäuser’ em Manaus

Andrei Reina
Revista Bravo!
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8 min readMay 13, 2017
Cena da montagem brasileira de “Tannhäuser” (Foto: Divulgação)

O conflito entre a carne e o espírito, entre o amor profano e o sagrado, está no centro de Tannhäuser. E, como não poderia ser diferente em se tratando de uma ópera de Richard Wagner, tudo vem em grandes proporções e é servido ao espectador sem economia de recursos. Não é à toa que, desde a estreia em 1845, sua recepção tenha variado entre o terror e o fascínio.

A ópera antecipa o ciclo O Anel de Nibelungo, no qual o compositor alemão procurou, em trabalhos como O Ouro do Reno e A Valquíria, realizar o que chamava de “obra de arte total”. No enredo, Wagner recupera a figura de Tannhäuser, um Minnesänger (espécie de trovador ou menestrel) da Alemanha medieval, para colocá-lo entre o amor de Vênus, que o leva à danação, e o amor da virginal Princesa Elizabeth, através do qual busca se redimir.

A ópera é motivo de polêmica desde o século XIX até hoje, seja em sua estreia parisiense de 1861 — cuja débâcle teve entre seus cronistas Charles Baudelaire, membro da minoria que saiu em defesa de Wagner à época — ou na versão encenada em Düsseldorf em 2013, que ambientou o enredo em um campo de concentração nazista e teve de ser cancelada. No Brasil, o histórico de montagens de Tannhäuser inclui uma das incursões operísticas do diretor Werner Herzog, que em 2001 encheu o Theatro Municipal do Rio de Janeiro com pára-quedas flutuantes para encenar o que via como o caráter “imaterial” da ópera de Wagner.

Um filme de Herzog, aliás, bem poderia ser evocado para descrever a nova adaptação brasileira, que é o grande destaque da 20ª edição do Festival Amazonas de Ópera e será apresentada a partir de amanhã (14) no Teatro Amazonas. Mas levar algo da dimensão de Tannhäuser para o Norte do país já não é tanto a tarefa de um Fitzcarraldo, uma vez que se tem no estado — sem a necessidade de expedições amalucadas e barcos a vapor — uma porção de corpos estáveis, um teatro com 120 anos de fundação e um festival que completa duas décadas. Talvez surpreenda, isso sim, os apreciadores, artistas e trabalhadores da música de concerto do Sudeste, que semana sim e outra também (não) são surpreendidos por novos cortes em seus equipamentos de cultura.

A montagem amazonense mobiliza um grande número de artistas, oriundos de diversos corpos estáveis da região, como a Amazonas Filarmônica e o Corpo de Dança do Amazonas, e conta com a regência de Luiz Fernando Malheiro, também à frente da direção artística do evento. A direção cênica é assinada pelo jovem diretor carioca Caetano Pimentel, que desde 2016 é diretor de palco e diretor cênico residente do Theatro São Pedro, em São Paulo. Na casa, ele se envolveu na montagem de trabalhos contemporâneos, como a ópera-fantasia Onde Vivem os Monstros, do compositor escocês Oliver Knussen, e a estreia mundial, em março passado, da ópera O Espelho, com música de Jorge Antunes e libreto escrito por Jorge Coli a partir do conto homônimo de Machado de Assis.

A ópera Onde Vivem os Monstros — baseada no livro de Maurice Sendak — também será apresentada no FAO e é rara oportunidade de assistir um trabalho lírico voltado ao público infantil. Composta no início dos anos 1980 com libreto assinado pelo próprio Sendak, a ópera mostra de forma mágica, segundo Caetano Pimentel, o “processo de elaboração da raiva” por parte das crianças — algo que não diz respeito somente a elas. “O que me atraiu para fazer esta direção foi: ok, a criança aprende a dominar os monstros internos; e os adultos, como estão fazendo?”, pergunta.

O Festival Amazonas de Ópera conta ainda com recitais, concertos, palestras e workshops que ocupam, além do Teatro Amazonas, o Teatro da Instalação e o Centro Cultural Palácio da Justiça em Manaus. A programação completa pode ser conferida aqui.

A famosa abertura de “Tannhäuser” em interpretação de Georg Solti e a Orquestra Sinfônica da Rádio de Stuttgart

Em entrevista à Bravo!, o diretor Caetano Pimentel comenta a atualidade de Tannhäuser e o desafio em montá-la, além das perspectivas para a música de concerto do país e as crises que tem enfrentado. Leia a seguir:

Tannhäuser é uma ópera monumental em muitos níveis — em dimensão, duração, intensidade e, no que diz respeito à sua recepção e interpretação, algo polêmica. Em quais linhas de força da obra se baseia a encenação que estreia neste final de semana?

Por ser uma ópera que mistura lendas e fatos históricos, tentamos fazer uma reconstituição de época com os figurinos. Os cenários vão pela mesma linha, dentro do possível. Mas a dinâmica de relações estabelecidas entre os personagens é que dão a força desta encenação. No fundo, não se sabe se o período que Tannhäuser passou em Venusberg é realmente uma alucinação ou uma realidade. As pulsões reprimidas num ambiente muito conservador podem ter consequências inesperadas, ainda mais com um indivíduo que tenha como força motriz a criatividade, que é uma coisa muito sexual. No final, quando Vênus volta, ele parece estar alucinado ou possuído — de tesão. E o dilema de Tannhäuser, de ficar entre o amor carnal e experimentar o amor mais espiritual, morre com ele. Não há uma solução para esta questão, que acredito, seja um tema universal.

Segundo o site Operabase, 102 produções de Tannhäuser foram levadas ao palco ao redor do mundo no biênio 2015/2016. Na sua opinião, o que explica a atualidade e o interesse por esta ópera?

Em 2010, foi publicada a compilação A Nova Idade Média, com textos de Umberto Eco, Giuseppe Sacco e outros, em que a tese sustentada é que os retrocessos da civilização levariam a uma nova Idade Média. O crescimento do cristianismo que demoniza religiões de matriz africana é apenas um sintoma de uma crise global em que tráfico de pessoas, corrupção na política e nas grandes corporações seriam a barbárie na versão contemporânea.

Cena da montagem brasileira de “Tannhäuser” (Foto: Divulgação)

Por outro lado, Aleister Crowley escreveu Tannhäuser — A Story of All Time, que estabelece um caráter mais universal sobre o destino de um homem que ficou, literalmente, entre a cruz e a caldeirinha, ou seja, entre o amor carnal e o amor espiritual. Além disso, fala da jornada de um artista em busca do divino, o que me atrai mais. Só a grande transformação (a morte) revoluciona o estado das coisas.

Além de Wagner, você também apresenta Onde Vivem os Monstros, de Knussen — que, imagino, seja um tanto mais leve — no festival. Esta montagem já estreou no Theatro São Pedro, na capital paulista. Como foi a recepção? O que achou de dirigir uma ópera com temática infantil?

Foi uma surpresa. Se tivéssemos feito récitas extras, teria lotado. Conversei com vários pais e todos sempre falavam da falta de opção deste tipo de programa para as crianças. E foi emocionante ver a resposta dos pequenos, como eles se empolgavam — alguns até se assustavam com os bonecos dos Monstros. A obra literária, que inspirou a ópera, é de uma delicadeza e ao mesmo tempo de uma profundidade ímpar. O [Maurice] Sendak conseguiu, em poucas páginas e poucas palavras, mostrar o processo de elaboração da raiva das crianças. Mas o que me atraiu para fazer esta direção foi: “ok, a criança aprende a dominar os monstros internos; e os adultos, como eles estão fazendo?” A maioria das pessoas não está conseguindo fazer este processo de elaboração, por isso usamos tanta anestesia; mas o uso destes recursos levam à insensibilidade — e à inconsciência do que nos afeta. E o Oliver Knussen conseguiu fazer uma adaptação que tornou a obra mágica. Na montagem que estreou no Theatro São Pedro, os efeitos ficaram lindos, muito lúdicos.

Em março deste ano, você dirigiu a estreia da O Espelho, de Jorge Antunes. Como você avalia a cena lírica brasileira atual?

A música tem a missão de resgatar, preservar e inovar. O Jorge conseguiu botar um lundu no meio da ópera. Eu achei genial, foi um resgate de parte da nossa história que ninguém quer falar muito a respeito. Lembro que na minha infância eu ouvia as pessoas mais velhas se referirem à “música boa” — a música erudita. Eu achava engraçado, mas hoje penso que se a “música boa” não absorver a música contemporânea (danças, ritmos, estilos) e se o público conseguir ouvir sem preconceito, estaremos no caminho certo.

O Theatro São Pedro, assim como muitos equipamentos culturais — e, especificamente, de música de concerto — tem sofrido cortes e demissões. Qual horizonte você enxerga para o setor?

Por um lado, é triste ver o quanto a arte está sendo desvalorizada, e isso está acontecendo em vários lugares do mundo. A música erudita nunca foi prioridade para os nossos governantes, e isso torna a situação ainda mais triste. Num curto prazo, não vejo muitas possibilidades de melhora, será difícil recuperar o que estamos perdendo com o encerramento de atividades de teatros, orquestras e casas de ópera.

Caetano Pimentel, diretor cênico de “Tannhäuser” (Foto: Helóisa Bortz)

Falando especificamente do Theatro São Pedro, a orquestra da casa, Orthesp, especializada no repertório operístico, tendo à frente o maestro Luiz Fernando Malheiro, uma das maiores autoridades em ópera do Brasil, foi desmontada de uma maneira muito cruel. Com promessas de que nada ia mudar, do dia para a noite veio a notícia do desmanche. Em pouco dias, ficou claro que o Governo do Estado de São Paulo decidiu internamente que a casa de ópera da cidade é o Theatro Municipal — e que a mais rica e populosa cidade do Hemisfério Sul não precisa de mais do que isso.

Trabalhando aqui em Manaus, fiquei surpreso com a competência técnica dos corpos estáveis e da parte técnica para realizar o festival. Mas isso não aconteceu do dia para a noite, foi um processo de alguns anos até eles chegarem nesse patamar. Outro dia, numa palestra do secretário de cultura do estado do Amazonas, Robério Braga, ficou claro que não foi apenas o desenvolvimento dos profissionais envolvidos, a economia da região também cresceu com o Festival Amazonas de Ópera. Nesta edição, o FAO será realizado inteiramente com recursos da iniciativa privada. Ou seja, investir em cultura dá certo, mas tem que ser um projeto contínuo, com planejamento artístico de longo prazo.

Tannhäuser no Teatro Amazonas

Dias 14, 17 e 20 de maio. Sábados às 19h e quarta às 20h. Ingressos: R$ 2,50 a R$ 60. Para o restante da programação do Festival Amazonas de Ópera, veja aqui.

Teatro Amazonas: Avenida Eduardo Ribeiro, 659 — Centro — Manaus.

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