Sobre o amor

Uma conversa com os pais do artista Pedro Moraleida (1977–1999), cuja exposição foi alvo de ataques em Belo Horizonte

Beatriz Goulart
Revista Bravo!
14 min readNov 14, 2017

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Da vasta obra que o artista Pedro Moraleida (1977–1999) deixou, seus pais, Luiz Bernardes e Nilcéa Moraleida, cuidam de cerca de 1450 desenhos, 450 pinturas, 120 vinhetas musicais, centenas de textos em forma de poemas, crônicas e manifestos. O acervo inclui um livro inacabado, Faça Você Mesmo sua Capela Sistina — título da exposição que causou mais um episódio de intolerância e tentativa de censura na grande galeria do Palácio das Artes, em Belo Horizonte. No livro há referência aos textos sobre a criação do mundo que Pedro pretendia desenvolver, muitos desenhos e pinturas que estão na exposição — que termina essa semana na capital mineira, mas segue para São Paulo em 2018, como parte da maior exposição individual do artista já feita. Com previsão de ocupar seis salas da Galeria do Instituto Tomie Ohtake, a mostra está sendo preparada pelo coordenador do Núcleo de Pesquisa e Curadoria do Instituto, Paulo Miyada, que traçou uma linha de apresentação da obra sublinhando o artista como um intelectual da arte abrangendo as linguagens imagética e literário-poética.

O trabalho de Moraleida é marcado por fortes críticas sociais, políticas, comportamentais e ao mundo da arte, com pinturas expressivas, iconoclastas, com forte teor emocional. Realizou em poucos anos diversas séries temáticas, numa proteica, indigesta e grandiosa narrativa, onde não faltam alusões e homenagens explícitas a autores com Gilles Deleuze e artistas como Arthur Bispo do Rosário. A seguir, uma conversa com os pais de Pedro sobre vários temas — infância e formação, obras, a morte precoce e dos protestos contra a exposição.

O menino

Nilcéa Moraleida: Ele desenhou sempre e muito, aproveitando o que tinha na geração dos 80/90, por exemplo, com relação as histórias em quadrinhos, influenciado sobretudo por Angeli e Laerte, pela revista Mad e pelo Pasquim. Pedro fazia histórias meio surrealistas em torno dos 11, 12 anos. Criava heróis retirados de objetos do cotidiano, como a “Escova de dentes assassina”, reflexo dos filmes da época que autonomizavam objetos domésticos. Outra característica era a visão de inventário. Filho único, passava muito tempo lendo e fazendo grandes catalogações biológicas, desenhando protozoários, seres microscópicos, povoando coleções com formas que tangenciam o desenho abstrato, como um mundo infra-humano.

Luiz Bernardes: Quando ele começou a fazer as próprias histórias, desenvolveu aventuras no estilo TimTim e outras ligadas à música. As séries eram divertidas como a banda de música que cantava no banheiro — “Os Pimentões“, a “Revolução da geração Mickey Mouse”, e uma figura que ele chamava de “O Moraleida”, uma espécie de alterego que entrava nas aventuras junto a personagens curiosos como o “Caralho a quatro”. E desde pequeno arriscou a fazer poemas e mais tarde a compor trilhas sonoras. Como adorava bichos pré-históricos ganhou uma coleção de livros sobre o tema e quando nos demos conta ele tinha aprendido a ler praticamente sozinho, desenhando os bichos alguns com nome científico e vulgar.

N.M.: Pedro desenvolveu uma relação muito forte com a música eletrônica alemã mais radical. Preparava fitas cassete que dava para as meninas — era uma espécie de educação musical arrojada, com muito Jimi Hendrix, e sempre pesquisando outras linguagens musicais.

L.B.: Volta e meia a gente ia a São Paulo levá-lo à loja Baratos Afins. Ele também pedia discos pelo correio, assim foi absorvendo e se inspirando na cultura independente da época. E, como disse a museóloga, diretora do setor de artes plásticas do Palácio das Artes na época de sua primeira exposição, Maria Inês Coutinho, naquele momento em que predominavam as instalações, apareceu alguém que desenha e pinta e que não se pode dizer que não seja contemporâneo.

Post Mortem

L.B.: O Pedro morreu 15 dias depois de completar 22 anos, um artista que não teve a oportunidade de desenvolver e amadurecer o seu trabalho, e que, ao que tudo demonstra, tinha um talento enorme e instrumental cultural suficiente para fazer as costuras necessárias para processar, compreender e propor saídas para os dilemas contemporâneos. Ele não teve tempo nem de terminar o curso de Belas Artes, mas desenvolveu uma atividade intensa pintando, desenhando, fazendo música e literatura. Viveu sob o signo da urgência, com um sentido apurado do que é essencial, não estava aqui para perder tempo. Ele se opunha à idéia recorrente de que a pintura e o desenho nas artes plásticas tinham morrido, numa época em que predominavam as instalações e as novas técnicas. Contestava a suposição de que a arte tinha que ser neutra em relação aos impasses sociais. Ele não realizou uma arte comportada, no conteúdo ou na forma. E através de uma técnica própria que misturou pintura com desenho e literatura, foi construindo um trabalho perturbador, radical, típico dos momentos em que a humanidade passa por períodos de grande tensão, talvez preparando-se para dar passos mais largos. Após a sua morte, um grupo de amigos fez uma espécie de curadoria, uns na parte de literatura, outros na música, no desenho e na pintura e foram identificando e percebendo um trabalho vigoroso e inovador.

N.M.: A primeira exposição post mortem foi feita num grande espaço, com vários patamares, que estava bem detonado, era um hospital infantil estadual, abandonado. Haviam nichos para a pintura, para os desenhos, e o último andar era uma pequena torre onde foi instalado o estúdio de gravação com as mixagens das músicas, era o espaço experimental. Foram expostos vários trabalhos com alguns daqueles bichos pré históricos e seres do campo da biologia ressurgindo na pintura e no desenho, uma fauna que interage com os humanos, mistura do pagão com a religião cristã, imagens sacras imbricadas com o universo anímico. Ele criou um mundo em que tudo está conectado, não se separa o campo da natureza e o da racionalidade. Veio juntando coisas, emendando corpos que ele chamou de Vasos Intercomunicantes.

L.B.: Em seus textos Pedro se define como um bricoleur — misturando coisas díspares, recriando um universo num contexto intuitivo, procurando aderências com percepções fragmentadas. Expressou-se de forma vigorosa, as vezes ácida. E, curiosamente, muito novo buscou construir uma percepção apurada não somente da mera crítica, mas também propondo, por exemplo misturando cores que canonicamente não se misturam. Creio que ele estava fazendo algo antecipatório, na música e na pintura. Houve um episódio interessante, quando uma conhecida chegou da Europa trazendo uma publicação dizendo que tinha se surpreendido com um trabalho do Pedro publicado numa revista alemã. Quando fomos verificar, era impressionante a semelhança de linguagens, cores, de escritos, da temática com o artista Jonathan Meese, a ponto dela achar que esse trabalho tinha sido feito pelo Pedro e publicado oito anos depois de sua morte. Nessa exposição atual, no Palácio das Artes, a fala do Secretário Estadual de Cultural, Ângelo Osvaldo, vai nesse sentido, afirmando que ele previu e vivenciou o Século 21, embora tenha morrido antes.

N.M.: Quando foi feita a primeira mostra, Gastão da Cunha Frota, na época um jovem professor da escola de Belas Artes, o primeiro empreendedor do projeto, afirmava: “Tem que fazer logo porque está no ar, tem frescor e impulso criativo e na arte há conexões sutis entre os artistas.”

L.M.: Após o período de crise, quando o Pedro pensou em abandonar a escola de Belas Artes chegando a cogitar o curso de letras, ele intensificou seu propósito. Grande parte do trabalho foi realizada nesse período de três anos, dos 19 aos 22. Na época eu percebi a consistência da sua opção quando ele me mostrou um esboço de pinturas da Capela que caberiam em sete salas, com uma espécie de proposição de um mundo novo. Eu vi os inúmeros rascunhos que projetou e esse foi um momento elucidativo, percebi que era uma coisa extremamente complexa, começava com a gênese, desenhada com a presença da escatologia, dos fluidos humanos, denotando duplos sentidos, abrangendo a doutrina do fim do mundo, do Apocalipse. E ainda haviam as séries sacras, as séries germânicas, históricas. No projeto original a primeira sala exibiria mais de 400 quadros.

N.M.: E ele apresentava uma voracidade na leitura, lia em campos diferentes — filosofia, psicanálise, literatura, poesia. Tinha uma relação muito estreita com um psicanalista amigo com quem teve um trânsito intelectual muito grande. Em seus escritos e pinturas há referências e apropriação de conceitos lacanianos e freudianos. No campo da imagem estão claros seus registros referentes aos cineastas prediletos, como o Fassbinder. O mesmo Gastão Frota, citado acima, dizia que ele era uma espécie de artista no sentido do romantismo do século 19, com essa ideia de uma obra de arte total, Pedro queria abranger tudo e falar de muitas coisas articuladas ao mesmo tempo. Nesse sentido ele estava tentando conectar conceitos, percepções, de forma febril e elaborada no seu trabalho. No próprio processo da feitura percebe-se a influência do surrealismo e do automatismo psíquico — deixando o inconsciente orientar o labor na escrita, na pintura. A gente se surpreendia porque ele pintava coisas enormes, muito rapidamente, e apagava, em uma espécie de transe, que é o processo da escrita automática, e isso vale para o gestual na pintura, mesmo a figurativa. Eu penso que muito do volume e do caráter compulsivo tem a ver com isso — para uma pessoa que consegue eventualmente chegar a essa instância, que libera certas forças, a produção fica mais fácil do que para nós que somos muito racionais. Algumas pinturas dão a sensação de repulsa talvez pelo excesso ou pela falta, por serem inacabadas — isso é próprio da linguagem do inconsciente, é ai que ele se (re)produz.

Amor fatti

L.B.: Existe uma frase do Karl Marx que afirma que a história forja os homens certos nos momentos certos, as circunstâncias sociais, humanas, exigem determinadas respostas e isso de certa forma predispõe aos seres humanos com maior sensibilidade a capacidade de enfrentar um grande desafio. Aliado ao fator inato, há a aproximação com a visão do Nietzsche, inclusive na relação com o amor fatti, traduzindo a visão de que temos que nos render ao destino. Pedro cita e adota essa premissa, mas não inteiramente, ele também se coloca as vezes no contra pé do destino.

N.M.: A minha interpretação do amor fatti é um pouco diferente, creio que no Ecce homo ele aponta para a premissa de que você precisa “tornar-se quem tu és”. Então, trata da “fabricação“ de um conhecimento próprio, uma noção de que você tem algo a que se submete, mas para se transformar naquilo precisa investir em si mesmo e no que vai produzir nas vísceras desse destino. Não só como indivíduo, mas na relação com o outro, na interconexão, como nas relações dos Vasos Intercomunicantes com os demais. Isso vai produzindo a si mesmo, eu acho que o amor fatti também abrange a superação de si.

L.B.: Quando um pensamento tem forte conteúdo revolucionário às vezes também contém algo conservador que tende a aparecer na medida em que avança. Parece que o Pedro abraça esse lado revolucionário inclusive do culto, do direito ao prazer e ao mesmo tempo em um dos seus textos ele fala claramente que sempre foi um apaixonado. Afirma que isso é algo que vai “além do bem e do mal”.

O olhar do outro

N.M.: Uma coisa interessante é a dimensão do jovem que vai surgindo. Existe a percepção da sensibilidade da pessoa querida por todos, que trabalha febrilmente, mas o que ele deixa, essa concepção de mundo, da arte, nós só vamos perceber depois. Eu me refiro ao enorme investimento em expressar-se, ao volume de coisas que foram deixadas, tanto que até hoje as pessoas perguntam detalhes e vamos tentando rememorar, como era esse cotidiano, o que era feito na escola, o que era feito em casa. No apartamento em que morávamos ele não tinha exatamente um atelier, usava o espaço de um dos cômodos. Ele fazia trabalhos até na quadra de esportes do prédio, coisas grandes e depois apagava. Penso nas madrugadas em que ele produziu, então quando se viu o acervo que ele deixou totalmente aberto, foi surpreendente verificar, num período muito curto, a enorme compulsão de fazer, de mostrar, de deixar.

L.B.: Quando o Pedro morreu a gente resolveu reunir os amigos e tentar ver os trabalhos, catalogar, fazer uma exposição. Nós não tínhamos noção do que iríamos encontrar, sequer do seu significado. O grupo era formado por Gastão Frota, Cinthia Marcelle, Emilio Maciel, depois entrou a Sara Ramo e o Pedro Bozolla. A primeira coisa que eu que falei é que a gente não queria expor o Pedro, e que não tínhamos convicção de que o trabalho tivesse valor artístico. E o Gastão, que tinha sido seu professor na Guignard, retrucou categórico: “Ele foi o melhor entre nós, muito melhor do que os professores.” A artista plástica Marilá Dardot também fez uma fala nessa direção, e aí começamos a perceber que o que ele produziu tinha um significado, uma repercussão, ao menos para as pessoas da área, muito diferente da nossa visão de pais.

Exposições

L.B.: Na exposição Faça Você Mesmo sua Capela Sistina, através dos livros de presença, pudemos observar as reações ambíguas que o trabalho do Pedro gera. Tem os que escrevem: Genial. Ou como o artista plástico Warley Desali que declarou ter recebido grande influência do seu trabalho. Mas também há os que afirmam que aquilo não é arte, é uma deformação, acontecem reações antagônicas. As pessoas não ficam indiferentes.

N.M.: No passado teve gente que afirmou que ver a exposição do Pedro foi uma espécie de permissão para pintar. Aquele era justamente o momento em que a pintura no Brasil não era tão importante, ela estava velada por outras linguagens. Também sobre os conteúdos ouvimos observações daqueles que se sentiram completamente contemplados como os anarquistas, LGBT, isso há 18 anos.

L.B.: Foram várias exposições coletivas e algumas individuais, em diversas cidades brasileiras e países europeus, dentre elas destaco a primeira, póstuma, Coisas para se fazer Hoje, no casarão do Ipsemg, em frente ao Belas Artes, em abril de 2002; Confissões de Um artista Plástico enquanto Jovem diante do Séc. 21, também em 2002 no Palácio das Artes; Conjunção de Fatores, montada no Museu de Arte da Pampulha em 2005; As Lembranças são outras Distâncias, realizada em 1988, Grande Círculo das Pequenas Coisas, em 1999, a coletiva Condoam-se F.D.P. junto com Frederico Ernesto; a exposição Alvorada do Homem, na Galerie Le Maudite em Paris em 2014 e a Mostra itinerante Imagine Brazil, que percorreu vários países, entre 2013 e 2016. Nessa última, Pedro expôs junto a Cildo Meireles, Paulo Nazareth, Sara Ramo, Tunga, Adriana Varejão, Cinthia Marcelle, entre outros. Um dos curadores, Hans Ulrich Obrist, caracterizou sua obra como ‘extraordinária, a grande revelação da exposição’

N.M: Sobre Faça Você Mesmo sua Capela Sistina, pude perceber o que na época das primeiras mostras não estava tão visível — a quantidade de seres humanos esfacelados, esquartejados, e que é concernente ao estado do mundo de hoje. Isso nos faz lembrar da pergunta nietzschiana — o que nós estamos fazendo do humano? Percebi o espelho de como estamos vivendo hoje pintado há 20 anos atrás.

L.B.: É o que está em um de seus textos “Meu nome é Pedro Moraleida, (…) Eu uso isso pra mostrar o mundo como ele é (….) . Creio que o que se vê em sua obra é um questionamento a diversos aspectos da vida humana, incluindo as questões de gênero, de liberdade sexual, de repressão sexual, sob forte influência da psicanálise. Trata-se de uma arte envolvida, militante, em íntima sintonia com as dubiedades do ser humano, também do ponto de vista político e social. Acredito que o forte teor erótico que está presente, por exemplo, na série Presidentes Americanos e Líderes Comunistas Vendem Pornografia, que representa o caráter grotesco e as deformações que o autoritarismo outorga para a sociedade a que submete.

Também na série Deleuze, Corpo sem Órgãos — há pintura, desenho, textos e em uma das pinturas que nós só encontramos o esboço ele faz essa pergunta: “afinal deve-se criar um corpo sem órgãos?” Ele trata exatamente disso — “precisamos de um ser humano todo feito, costurado, sem órgãos?” Quer dizer, sem ser Humano? É preciso desumanizar o ser humano?

Fundamentalismos

L.B.: Faça Você Mesmo sua Capela Sistina, curada por Augusto Nunes-Filho, vinha tendo uma receptividade muito diferente das anteriores, talvez por causa do tempo, 18 anos após sua morte. Fomos percebendo uma aceitação maior do que nas exposições anteriores, e, creio que o tempo contribuiu para que ela se tornasse mais compreensível. Após cerca de 6 mil visitas, sem grande cobertura da imprensa, alguns elementos começaram a se rebelar, questionando se o trabalho do Pedro é arte, assediando as pessoas, gritando que o trabalho incita a pedofilia, revelando uma enorme ignorância, agindo como milícia. Para nós parece que isso tudo faz parte de um processo mais amplo, não é um ato isolado, está acontecendo na seqüência do que foi em Porto Alegre, do que aconteceu no MAM. Tudo isso tem culminado no grande sucesso da exposição, estando hoje, registradas 14.500 visitas.

Que o trabalho exposto não seja arte e que o conteúdo seja de estímulo a pedofilia me parecem acusações oportunistas, de pessoas sem princípios, que estão querendo surfar nessa onda de forma eleitoreira. Um dos pastores, dos mais truculentos, que participam desse processo, foi candidato a vereador e obteve 80 votos, então o fato dele se arvorar como representante da população se desmascara aí, assim como se explicita a obra de arte pela grande presença de pessoas na exposição, para os padrões de Belo Horizonte, mesmo antes deles intervirem com a recomendação de que a exposição fosse suspensa.

Creio que o outro objetivo advém do fato de que desde que o país foi mergulhado nesse golpe, esse debate tem servido muitas vezes, independente do absurdo da premissa, como instrumento para desviar a atenção da população dos reais problemas que o país está passando, do desastre que esse pessoal está provocando, destruindo o país como nação. O desmonte de setores inteiros da economia nacional, essa justiça de guerra que as elites brasileiras protagonizam, pois independente de provas, eles convictamente penalizam as pessoas. Desde que esse golpe foi efetuado, são inúmeras as medidas destinadas a desarticular a área da cultura e da arte, e curiosamente é o campo em que eles mais têm sido derrotados. De cara tentaram desativar o Ministério da Cultura, não conseguiram graças à reação, houve várias ocupações de espaços culturais de norte a sul, de leste a oeste do país e eles foram obrigados a recuar. Tudo isso tem uma vinculação clara que parece importante — porque a área cultural? Trata-se de um modus operandis. Hitler também passou por essa etapa de tentar amordaçar o pensamento, a criatividade. Promoveu a campanha contra a arte dita degenerada, depois se descobriu que degenerados na verdade eram eles que produziram os campos de concentração. O pressuposto é que as artes são, do ponto de vista da organização social, da correlação de forças, mais frágeis do que um movimento operário. Mas a arte tem um papel específico no processo de evolução do pensamento humano, ela não vem do terreno do pensamento racional, caminha ao lado da intuição, da emoção, é visceral, e, como diz a artista mineira Liliane Dardot, enquanto a agricultura tem 12 mil anos de existência, uma forma de organização social complexa, a pintura tem 40 mil anos, é uma das primeiras formas de expressão humana que se situa no terreno do conhecimento. É uma forma iniciática de se enxergar o que está acontecendo ao redor, o que está em processo de extinção, o que está em processo de crescimento, de surgimento. Por isso ela tem esse caráter visionário, intuitivo, de perceber antes, tanto o que está decadente, que precisa ser superado, quanto o que está nascendo.

Em qualquer regime autoritário torna-se vital controlar esse processo, então é por isso que eu acho que o Caetano Veloso tem razão, independente de ser o Pedro, e me refiro aos outros artistas que estão expondo lá também, ao Desali, à Marta Neves, ao Randolpho Lamonier, independente de gostar ou não do trabalho deles temos que nos posicionar contra essa tentativa de censurar e aprisionar a criatividade, o pensamento humano. Essa não é uma questão focal da exposição, de Belo Horizonte, é uma discussão de toda a sociedade brasileira.

Luiz Bernardes é jornalista, economista, vinculado, desde antes de 64, aos processos de luta social, trabalhou nos Jornais Opinião e Movimento. Nilcéa Moraleida é socióloga, artista plástica, historiadora, foi professora universitária no departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais e teve também uma grande participação na luta contra a ditadura.

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