Tássia Reis: “ Tudo o que vem acontecendo com as mulheres é resultado da luta”

Paula Carvalho
Revista Bravo!
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5 min readApr 26, 2017
Foto: Kevin Yule

Ouça meu grito / Invadindo os teus ouvidos / Tomando a sua casa e tocando lá no seu radinho / Se o que eu digo lhe fizer algum sentido / É porque o sangue de rainha Ginga ainda corre em mim / Simples assim, os meios irão justificar os fins / E as manas e minas que colam comigo também tão afim / De ter sua voz ouvida e não mais oprimida / Equalizada por todos cafundós e confins”. Os primeiros versos de Ouça-me, embalados por um atabaque e um grave combinados, dão o recado. Outra Esfera, primeiro disco da rapper Tássia Reis, pede atenção para os seus relatos sobre o bairro em que vive (“Subiu mais oito de novo / (…) Vários louco / Resolvem no pipoco / É Deus por nós / E um contra o outro”), para a cor do rap (“A revolução será crespa / E não na TV”), mas também faz poesia com o jeito “desapegado” (“Meu espírito livre, só se apegou a missão de ser o campeão de esquecer aniversários / Eu me importo, e até decoro as datas / Mas o que mata é que eu nunca uso calendários”) e também desfila versos mordazes para o cara que some com outra e reaparece quando sente que foi trocado (Semana Vem). “95% autobiográfica”, Tássia diz que nunca pensou em escrever uma música especificamente sobre a luta de mulheres (pretas), mas acaba retratando essa situação por ser algo muito relacionado ao que vive.

Natural de Jacareí, no interior de São Paulo, Tássia estudou moda e começou a se tornar conhecida no rap escrevendo refrões para rappers como Rashid, Marcelo D2 e Slim Rimografia. Em 2014, lançou o EP Tássia Reis, que tem a sua primeiras música a se tornar mais conhecida, Meu Rapjazz. No ano passado, veio Outra Esfera. Nesta sexta (28), a cantora apresenta as canções do disco mais recente no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo. Ela conversou com a Bravo! por e-mail sobre o seu trabalho.

Como está sendo a turnê de “Outra Esfera”? É seu primeiro disco?

Desde que iniciamos a #OutraEsferaTour tem sido muito emocionante e maravilhoso nos deparar com todo o amor, carinho e respeito pelo qual as pessoas abraçaram o disco. Digamos que sim [é o primeiro disco], anteriormente lancei o EP Tássia Reis que apesar de não ter sido pensado em unidade, tem um conceito amarrado também. Mas Outra Esfera veio já sabendo o que queria dizer, de uma maneira plural, a busca pelo autoconhecimento, que apesar de eterna, tem suas constatações e evoluções.

Como você chegou no rap? A cena do hip hop em Jacareí é forte?

Eu conheci a cultura hip hop através das danças urbanas, dancei por mais ou menos 7 anos, comecei quando tinha 14. Meu irmão ouvia e cantava rap, na época toda a região do Vale do Paraíba estava aquecida com a cultura, havia muitos eventos de rua. Como um dos elementos, o rap também estava lá. Eu e minhas amigas, brincávamos muito de fazer rimas, indo e voltando dos eventos, até que um dia me chamaram pra rimar no mic, fazer um freestyle. Já havia começado a fazer musica e escrever outras coisas, mas desse dia em diante me concentrei em fazer rap.

- Em “Outra Esfera”, além de muitos elementos do rap, dá pra perceber influências do dancehall, reggae, jazz, enfim. Como foram criados os arranjos do disco? Como foi o processo de ajuste das letras ao som que você queria?

Tenho muitos processos criativos, não acho que exista um certo ou errado. Então toda vez que percebo que algo está querendo ganhar vida, eu tento apenas não interferir naquilo que está chegando. Nesse disco tem música que começou letra e melodia por mim, e depois foi arranjada, e também escrevi em cima de alguns beats já prontos. O Dia, que produziu o disco juntamente com o Grou, souberam captar o sentimento do disco, e chegamos nesse resultado.

O que você tem ouvido? Quais as suas influências na música?

Atualmente estou ouvindo o Damn, recente lançamento do Kendrick Lamar, também outro lançamento, o álbum São Paulo Não é Sopa, da banda Aláfia, voltei a ouvir But you can’t use my phone, da Erykah Badu. Adoro o som da SZA, Malibu do Anderson Paak está demais. Volta e meia escuto Djavan e Clara Nunes. De um certo modo tudo isso acaba influenciando, mas não tenho o costume de usar uma referência pontual para criar.

O rap já está mais aberto às mulheres MCs? Como você tem visto a questão do machismo no rap?

O mundo não está aberto as mulheres, tudo que vem acontecendo com as mulheres é resultado da luta das mulheres. Nenhuma porta se abriu, foi e é preciso brigar pra que não exista uma porta a ser aberta. O rap não é diferente dos outros estilos musicais nesse sentido, são todos assim. Os feminismos vem se tornando pautas em diversos espaços, mas vejo que ainda a muito o que se discutir e entender, em todos os âmbitos.

Suas letras também falam muito da situação de mulheres, mulheres negras, e felizmente vemos que algumas vozes vão ganhando mais força (você, Djamila, MC Carol, entre outras) na sociedade, especialmente com a amplificação da internet. Como você está vendo essa questão? Quais são os próximos passos da luta?

Minha música é auto-biografica em 95% das letras. Poucas vezes segurando a minha caneta pensei em escrever uma música de luta. Minha música fala de mim, de como eu enxergo a vida, de como o medo nos impede, de como a autoestima e escolhas bem direcionadas são importantes. Estrutura emocional é importante. E como a realidade do mundo pode ser cruel conosco. Minha música se torna de luta, porque minha voz (digo da mulher preta) geralmente é silenciada, e agora que finalmente ela pode, através da internet e outros meios, ser “equalizada pelos cafundós e confins”, nos damos com essa questão.

Sigo fazendo música.

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Paula Carvalho
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jornalista, doutoranda em sociologia na usp. quase tudo em torno de som 🎛 pra mandar mensagem: paula.cncarvalho@gmail.com